TECENDO A MANHÃ
Um galo sozinho
não tece uma manhã:
ele precisará
sempre de outros galos.
De um que apanhe
esse grito que ele
e o lance a outro;
de um outro galo
que apanhe o grito
de um galo antes
e o lance a outro;
e de outros galos
que com muitos
outros galos se cruzem
os fios de sol de
seus gritos de galo,
para que a manhã,
desde uma teia tênue,
se vá tecendo,
entre todos os galos.
E se encorpando em
tela, entre todos,
se erguendo tenda,
onde entrem todos,
se entretendendo
para todos, no toldo
(a manhã) que
plana livre de armação.
A manhã, toldo de
um tecido tão aéreo
que, tecido, se
eleva por si: luz balão.
O CÃO SEM PLUMAS
A cidade é passada
pelo rio
como uma rua
é passada por um
cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de
um cão
ora o ventre
triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano
sujo
dos olhos de um
cão.
Aquele rio
era como um cão
sem plumas.
Nada sabia da
chuva azul,
da fonte
cor-de-rosa,
da água do copo de
água,
da água de
cântaro,
dos peixes de
água,
da brisa na água.
Sabia dos
caranguejos
de lodo e
ferrugem.
Sabia da lama
como de uma
mucosa.
Devia saber dos
povos.
Sabia seguramente
da mulher febril
que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos
peixes,
ao brilho,
à inquietação de
faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em
peixes.
UMA FACA SÓ LÂMINA
Assim como uma
bala
enterrada no
corpo,
fazendo mais
espesso
um dos lados do
morto;
assim como uma
bala
do chumbo mais
pesado,
no músculo de um
homem
pesando-o mais de
um lado;
qual bala que
tivesse um
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
igual ao de um
relógio
submerso em algum
corpo,
ao de um relógio
vivo
e também
revoltoso,
relógio que
tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
assim como uma
faca
que sem bolso ou
bainha
se transformasse
em parte
de vossa anatomia;
qual uma faca
íntima
ou faca de uso
interno,
habitando num
corpo
como o próprio
esqueleto
de um homem que o
tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se
ferisse
contra seus
próprios ossos.
ALGUNS TOUREIROS
Eu vi Manolo
Gonzáles
e Pepe Luís, de
Sevilha:
precisão doce de
flor,
graciosa, porém
precisa.
Vi também Julio
Aparício,
de Madrid, como
Parrita:
ciência fácil de
flor,
espontânea, porém
estrita.
Vi Miguel Báez,
Litri,
dos confins da
Andaluzia,
que cultiva uma
outra flor:
angustiosa de
explosiva.
E também Antonio
Ordóñez,
que cultiva flor
antiga:
perfume de renda
velha,
de flor em livro
dormida.
Mas eu vi Manuel
Rodríguez,
Manolete, o mais
deserto,
o toureiro mais
agudo,
mais mineral e
desperto,
o de nervos de
madeira,
de punhos secos de
fibra
o da figura de
lenha
lenha seca de
caatinga,
o que melhor
calculava
o fluido aceiro da
vida,
o que com mais
precisão
roçava a morte em
sua fímbria,
o que à tragédia
deu número,
à vertigem,
geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e
medida.
MORTE E VIDA SEVERINA
— O meu nome é
Severino,
como não tenho
outro de pia.
Como há muitos
Severinos,
que é santo de
romaria,
deram então de me
chamar
Severino de Maria;
como há muitos
Severinos
com mães chamadas
Maria,
fiquei sendo o da
Maria
do finado
Zacarias.
Mas isso ainda diz
pouco:
há muitos na
freguesia,
por causa de um
coronel
que se chamou
Zacarias
e que foi o mais
antigo
senhor desta
sesmaria.
Como então dizer
quem fala
ora a Vossas
Senhorias?
Vejamos: é o
Severino
da Maria do
Zacarias,
lá da serra da
Costela,
limites da
Paraíba.
Mas isso ainda diz
pouco:
se ao menos mais
cinco havia
com nome de
Severino
filhos de tantas
Marias
mulheres de outros
tantos,
já finados,
Zacarias,
vivendo na mesma
serra
magra e ossuda em
que eu vivia.
Somos muitos
Severinos
iguais em tudo na
vida:
na mesma cabeça
grande
que a custo é que
se equilibra,
no mesmo ventre
crescido
sobre as mesmas
pernas finas,
e iguais também
porque o sangue
que usamos tem
pouca tinta.
E se somos
Severinos
iguais em tudo na
vida,
morremos de morte
igual,
mesma morte
severina:
que é a morte de
que se morre
de velhice antes
dos trinta,
de emboscada antes
dos vinte,
de fome um pouco
por dia
(de fraqueza e de
doença
é que a morte
Severina
ataca em qualquer
idade,
e até gente não
nascida).
Somos muitos
Severinos
iguais em tudo e
na sina:
a de abrandar
estas pedras
suando-se muito em
cima,
a de tentar
despertar
terra sempre mais
extinta,
a de querer
arrancar
algum roçado da
cinza.
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