domingo, 15 de novembro de 2015

Cora Coralina: "5 Poemas"

MÃE

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.
Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.



ANINHA E SUAS PEDRAS

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.


POEMA DO MILHO

Milho...
Punhado plantado nos quintais.
Talhões fechados pelas roças.
Entremeado nas lavouras,
Baliza marcante nas divisas.
Milho verde. Milho seco.
Bem granado, cor de ouro.
Alvo. Às vezes vareia,
- espiga roxa, vermelha, salpintada.

Milho virado, maduro, onde o feijão enrama
Milho quebrado, debulhado
na festa das colheitas anuais.

Bandeira de milho levada para os montes
largada pelas roças:
Bandeiras esquecidas na fartura.
Respiga descuidada
dos pássaros e dos bichos.

Milho empaiolado.
abastança tranqüila
do rato,
do caruncho.
do cupim.
Palha de milho para o colchão.
Jogada pelos pastos.
Mascada pelo gado.
Trançada em fundos de cadeiras.

Queimada nas coivaras.
Leve mortalha de cigarros.
Balaio de milho trocado com o vizinho
no tempo da planta.
"- Não se planta, nos sítios, semente da mesma terra".

Ventos rondando, redemoinhando.
Ventos de outubro.

Tempo mudado. Revôo de saúva.
Trovão surdo, tropeiro.
Na vazante do brejo, no lameiro,
o sapo-fole, o sapo-ferreiro, o sapo-cachorro.
Acauã de madrugada
marcando o tempo, chamando chuva.
Roça nova encoivarada,
começo de brotação.
Roça velha destocada.
Palhada batida, riscada de arado.
Barrufo de chuva.
Cheiro de terra; cheiro de mato,
Terra molhada, Terra saroia.
Noite chuvada, relampeada.
Dia sombrio. Tempo mudado, dando sinais.
Observatório: lua virada. Lua pendida...
Circo amarelo, distanciado,
marcando chuva.
Calendário, Astronomia do lavrador.

planta de milho na lua-nova.
Sistema velho colonial.
Planta de enxada.
Seis grãos na cova,
quatro na regra, dois de quebra.
Terra arrastada com o pé,
pisada, incalcada, mode os bichos.

Lanceado certo-cabo-da-enxada...
Vai, vem... sobe, desce...
terra molhada, terra saroia...
Seis grãos na cova; quatro na regra, dois de quebra
Sobe. Desce...
Camisa de riscado, calça de mescla
Vai, vem...
golpeando a terra, o plantador.

Na sombra da moita,
na volta do toco - o ancorote d'água:

Cavador de milho, que está fazendo?
A que milênios vem você plantando.
Capanga de grãos dourados a tiracolo.
Crente da Terra, Sacerdote da terra.
Pai da terra.
Filho da terra.
Ascendente da terra.
Descendente da terra.
Ele; mesmo; terra.

Planta com fé religiosa.
Planta sozinho, silencioso.
Cava e planta.
Gestos pretéritos, imemoriais...
Oferta remota; patriarcal.
Liturgia milenária.
Ritual de paz.
Em qualquer parte da Terra
um homem estará sempre plantando,
recriando a Vida.
Recomeçando o Mundo.

Milho plantado; dormindo no chão, aconchegados
seis grãos na cova.
Quatro na regra, dois de quebra.
Vida inerte que a terra vai multiplicar

E vem a perseguição:
o bichinho anônimo que espia, pressente.
A formiga-cortadeira - quenquém.
A ratinha do chão, exploradeira.
A rosca vigilante na rodilha,
O passo-preto vagabundo, galhofeiro,
vaiando, sorrindo...
aos gritos arrancando, mal aponta.
O cupim clandestino
roendo, minando,
só de ruindade.

E o milho realiza o milagre genético de nascer:
Germina. Vence os inimigos,
Aponta aos milhares.
- Seis grãos na cova.
- Quatro na regra, dois de quebra,
Um canudinho enrolado.
Amarelo-pálido,
frágil, dourado, se levanta.
Cria sustância.
Passa a verde.
Liberta-se. Enraíza,
Abre folhas espaldeiradas.
Encorpa. Encana. Disciplina,
com os poderes de Deus.

Jesus e São João
desceram de noite na roça,
botaram a bênção no milho,
E veio com eles
uma chuva maneira, criadeira, fininha,
uma chuva velhinha,
de cabelos brancos,
abençoando
a infância do milho.

O mato vem vindo junto,
Sementeira.

As pragas todas, conluiadas.
Carrapicho. Amargoso. Picão.
Marianinha. Caruru-de-espinho.
Pé-de-galinha. Colchão.
Alcança, não alcança.
Competição.
Pac... Pac... Pac...
a enxada canta.
Bota o mato abaixo.
arrasta uma terrinha para o pé da planta.
"...- Carpa bem feita vale por duas..."
Quando pode. Quando não... sarobeia.
Chega terra O milho avoa.

Cresce na vista dos olhos.
Aumenta de dia. Pula de noite.
Verde Entonado, disciplinado, sadio.

Agora...
A lagarta da folha,
lagarta rendeira...
Quem é que vê?
Faz a renda da folha no quieto da noite.
Dorme de dia no olho da planta,
Gorda; Barriguda. Cheia.
Expurgo: nada... força da lua..,
Chovendo acaba - a Deus querê.

"O mio tá bonito..."
"-Vai sê bão o tempo pras lavoras todas."
"-O mio tá marcando..."
Condieionando o futuro:
"- O roçado de seu Féli tá qui fais gosto...
Um refrigério"
"- O mio lá tá verde qui chega a s'tar azur..."
- Conversam vizinhos e compadres.

Milho crescendo, garfando,
esporando nas defesas...

Milho embandeirado.
Embalado pelo vento.

"Do chão ao pendão, 60 dias vão".

Passou aguaceiro, pé-de-vento.
"- O milho acamou..." "- Perdido?"... Nada...
Ele arriba com os poderes de Deus..."
E arribou mesmo; garboso, empertigado, vertical

No cenário vegetal
um engraçado boneco de frangalhos
sobreleva, vigilante.
Alegria verde dos periquitos gritadores...
Bandos em seqüência... Evolução...
Pouso... retrocesso.

Manobras em conjunto.
Desfeita formação.
Roedores grazinando, se fartando,
foliando, vaiando
os ingênuos espantalhos.

"Jesus e São João
andaram de noite passeando na lavoura
e botaram a bênção no milho".
Fala assim gente de roça e fala certo.
Pois não está lá na taipa do rancho
o quadro deles, passeando dentro dos trigais?
Analogias... Coerências.

Milho embandeirado
bonecando em gestação.
- Senhor!... Como a roça cheira bem!
Flor de milho, travessa e festiva.
Flor feminina, esvoaçante, faceira.
Flor masculina - lúbrica, desgraciosa.

Bonecas de milho túrgidas,
negaceando, se mostrando vaidosas.
Túnicas, sobretúnicas...
saias, sobre-saias...
Anáguas... camisas verdes.
Cabelos verdes...
- Cabeleiras soltas, lavadas, despenteadas...
- O milharal é desfile de beleza vegetal.

Cabeleiras vermelhas, bastas, onduladas.
Cabelos prateados, verde-gaio.
Cabelos roxos, lisos, encrespados.
Destrançados.
Cabelos compridos, curtos,
queimados, despenteados.
Xampu de chuvas...
Flagrâncias novas no milharal.
- Senhor, como a roça cheira bem!...

As bandeiras altaneiras
vão se abrindo em formação.
Pendões ao vento.
Extravasão da libido vegetal.
procissão fálica, pagã.
Um sentido genésico domina o milharal.
Flor masculina erótica, libidinosa,
polinizando, fecundando
a florada adolescente das bonecas:

Boneca de milho, vestida de palha...
Sete cenários defendem o grão
Gordas, esguias, delgadas; alongadas
Cheias, fecundadas.
Cabelos soltos excitantes.
Vestidas de palha.
Sete cenários defendem o grão,
Bonecas verdes, vestidas de noiva
Afrodisíacas, nupciais...

De permeio algumas virgens loucas...
Descuidadas. Desprovidas.
Espigas falhadas. Fanadas. Macheadas.

Cabelos verdes. Cabelos brancos.
Vermelho-amarelo-roxo, requeimado...
E o pólen dos pendões fertilizando...
Uma fragrância quente, sexual
invade num espasmo o milharal.
A boneca fecundada vira espiga.
Amortece a grande exaltação.
Já não importam as verdes cabeleiras rebeladas
A espiga cheia salta da haste.
O pendão fálico vira ressecado, esmorecido,
No sagrado rito da fecundação.

Tons maduros de amarelo.
Tudo se volta para a terra-mãe.
O tronco seco é um suporte, agora,
onde o feijão verde trança, enrama, enflora.

Montes de milho novo, esquecidos,
marcando claros no verde que domina a roça.
Bandeiras perdidas na fartura das colheitas.
Bandeiras largadas, restolhadas.
E os bandos de passo-pretos galhofeiros
gritam e cantam na respiga das palhadas.

"Não andeis a respigar" - diz o preceito bíblico
O grão que cai é o direito da terra.
A espiga perdida - pertence às aves
que têm seus ninhos e filhotes a cuidar.
Basta para ti, lavrador,
o monte alto e a tulha cheia.
Deixa a respiga para os que não plantam nem colhem
- O pobrezinho que passa.
- Os bichos da terra e os pássaros do céu.



A ENXADA

Paráfrase de um conto de
Bernardo Eli

Piano carece de uma enxada.
Vai ao padre.

- Seu padre, m’impresta uma enxada.
Tou carecendo demais.
- Tinha. Tem mais não.
Outro levou. Nem sei quem.

- Seu vendeiro, me vende uma enxada.
Fiado. Na colheita lhe pago.
- Tem não. Sei bem como são.

- Minha gente do porco,
me prouve uma enxada.
Caco que seja me serve.
- Tem não.
- Aquela acolá,
pinchada, m’impresta.
- Essa não, é do minino bricá.

- Bão dia, patrão.
Vim buscá sua semente, plantá.
- Leva, preguiçoso, ladrão.
- Preguiçoso, ladrão, num sou não.
Vou plantá seus arrôis.
Inté amanhã tá tudo plantado.
No rancho não tem decumê.
Somente guarapa fria de rapadura.

O bobo regogou,
rugido de fome.
Barriga vazia.

Piano, calado, puxou manso
beira baixeiro.
Enrodilhou.
Sono canino sonhou.
Espeto de carne pingando na brasa.
Farinha bem cheia de monte.
Panela de arrôis gordurando.

Enxada! Tanto de enxada
entrando no rancho!
Enxada encabada, sem cabo.
Libra e meia, duas libras,
duas caras de marca,
tinindo de novas, lumiando,
relanciando, dadas de graça
pra escolhê.

Piano acordou.
Manhã, nem.
Lua no alto parada no céu.
Passarinho dormindo,
o mato dormindo.
O saco nas costas,
caminho da roça,
patrão muquirana, acredos!

E baixou, bicho no chão
e furou
e plantou,
agachado, arrastando.
Toco de pau. Toco de braço.

Coragem de pobre,
seu medo de pobre
furando,
plantando
arrôis do patrão.

Prazo vencido.
Pua de pau furava.
Toco de dedo sangrava,
plantava.
O dia alto,
alto ia o sol,
tinia de quente.
Passarinho cantava.
Deus do céu espiava.
Tudo, quasinho acabado.
Roça furada,
plantada.
Um toco de pau,
um toco de braço,
cinco puas de dedos,
feridos na carne.
Restinho de arrôis
no fundo do saco.

Eis chegam dois ferrabrases.
Jagunços mandados, armados.
Patrão mandou vê...

Piano aprazível:
- Nhorsim. Arrôis já plantado.
Coisinha de nada
sobrando no fundo do saco
indoje plantado.

Os dois ferrabrases:
- Patrão mandô exemplá ocê.
Risca ligeiro, na frente.

Pou!
um tiro estrondou.

Passarinho assustou,
não cantou.
Atrás do toco
Piano acabou.

A roça plantada.
Semente de arrôis
tiquinho de nada
sobrado no fundo do saco.

- Alvíssaras, patrão!
Serviço bem feito.
Ninguém viu nada.
Ninguém falou nada.
Sua roça plantada
com toco de pau.
Piano caído de toco na mão.
Alvíssaras, patrão!
Seu mando bem feito.

Patrão, sossegadão:
- Assim se pune
preguiçoso, ladrão.

No meio da roça
Piano já frio.
Sangue coalhado no chão.
Formigas em festas fartando.
Restinho de arrôis
no fundo do pano,
passarinho cantando.

Tempos passados...
na festa da vila.
Fogos queimando,
estourando,
bandinha tocando,
meninos brincando,
foliando.
Viram quando
velha aleijada,
amontada na cacunda do bobo
esmolando.
Gritaram, vaiaram:
- Tomove! Tomove!

Da ponta do boteco
alguém reparou:
- A mó qui é gente do Piano...

Pedras jogadas,
risadas.
Crianças correndo,
com medo.
Os abantesmas...
O bobo espantado
com a mãe na cacunda
montada
virou pra trás.
Roeram sua fome,
miséria, aleijume
no fundo do mato.

Os compadres
proseando de manso:
- E a roça de arrôis,
saiu bem?
- Patrão colheu tudo.
Num ficou satisfeito,
mandou ferrabrais
no rancho do desinfeliz
arrecadá algum leitão magro,
galinha de pinto que fosse,
ajutorá pagamento restante.
Os home chegaro,
viro miséria:
o mudo,
a veia aleijada.
Metero deboche:
se era casado,
marido e muié.
O bobo infezou,
sabe cumo é, bobo infezado.
Garrou porrete,
escorou,
sem midi fraqueza.
Os barzabu isso quiria.
Dero piza.
Só num quebraro de tudo
que a veia se arrastando
pidia pru amô de Deus
deixasse o fio,
sua valença.

Em antes,
derrubaram o rancho,
dero fogo.
O tonto,
co’a mãe na cacunda
ganharo o mato
e foro saí na toca
da Grotinha.
Lá se intocaro
co’s mulambo do corpo.

- E cumo veve, cumpadre?
- Deus dá.
Tendo água de bebê
e fogo pra esquentá
isso pobre veve muito.

Aleijado, cego e bobo
é nação de gente vivedô,
duença num entra neles.

Diz que lá em tempos,
tinha inté pexe bagre na cacimba.
Alimparo tudo.
Num tem mais nem inseto.
Passou lá o Militão,
o veio raizero,
inté posô.
Deu conseio.
Espiritou o bobo fazê tocaia
na grota da noite,
sentá porrete,
bicho miúdo com sede,
cutia, preá, cachorrinho do mato,
inté ratão.
Deu certo. Muqueia, sapeca,
num passa fome não.
Insinô a fazê arapuca
pegá passarinho.
Deu.

- Agora, cumpadre,
tão contando visage.
Lá na roça tem vela acendida
na cabeça dos toco,
diz qui o sufragrante
tá fazendo milagre.
Já viro, das veiz,
cavoucando, gemendo.
Diz qui deu carrera
em gente viva.

- E os quinhoado
levam sustento,
algum trapo de cubri?

- Isso num informo, cumpadre.
Mais o processo qui o Juiz
abriu deu in nada.
E o delegado feiz diligença,
num teve testemunha,
diz que num foi crime.
Morte de acauso,
os home caçava era tatu.
Viro um rebolo no chão,
dero tiro de longe,
acertaro no desinfiliz.

Aí, andaro na lei.
Levantaro o cadave,
mandaro intregá
pra famia fazê sepurtamento.

- E daí, cumpadre?
- Um crente piedoso sidueu.
Levou carroça de noite,
meteu o falecido num saco,
tocou pra vila,
deixou no portão do sumitero.

- Bamo chegando pra frente, cumpadre.
Musca tá chamando nós.



HUMILDADE

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura,
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.

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