sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Valdomiro Silveira: "Última Carpa"

ÚLTIMA CARPA

O cancã não fugiu do trato: fez, no talhão marcado, as duas primeiras limpas, com trabalho horrível porque a trapoerada e o marmelada estavam altos, o picão florescido, o caruru de semente, e o ora-pronobis com grande viço de fartura e de sombra. O administrador não teve incômodos: antes do romper do sol escutavam-lhe a voz entre as ruas do cafezal, e o anúncio da noite já era bem negro no céu, quando aquela voz cessava.
A tempo e hora, foram feitas as replantas; os cafeeiros aparados tiveram ligeira poda; aos mais velhos foram tiradas as saias; e, por último, o Cancã chegou terra a cada pé, quebrando galhos secos, amassando ramagens e folhas. A não ser a galinhada de sua cria, e algum tizio ou patativo assustado, quando não um bando errante de papagaios curraleiros, não tinha companhia no serviço.
Afizera-se bem à vida solitária: vivia em qualquer rancho de sapé, com a purunga de água e as vasilhas de mantimentos, anos e anos, aturando empreitadas desconformes, pouco se lhe dando das festas que faziam na capela. Agora, como a terra ajudava, teve licença de plantar no café novo, e arranjara um pouco de tudo: feijão e milho, mangarito e abóbora, mandioca e gergelim.
Mão abençoada era aquela! O feijão, que por toda parte andava sofrendo o rigor da seca, e mal embainhara e granara, chocando lamentavelmente, viera-lhe às mil maravilhas, enrodilhara bem, alastrara pelo chão, +++ pesado de vagens cheias; as bonecas do milho davam bom jeito; o mangarito enfeixara-se todo, como um pequenino capão; e até a mandioca vassourinha, que todos diziam ser novata por aqueles cantos, frondejava em rica vitória de força e frescura.
O administrador, que era cabroche enjoado e intiquento, varava horas e horas o olhar para as plantas do Cancã, entusiasmado, chegando a dizer-lhe frases de meia adulação:
— Home! Você tá suparado p’ra temperar um chãozinho! Jugou as sementes e deitou as ramas, e não teve batimento nem um de pacuera, porque tudo rompeu dereito, que foi uma boniteza!
o Cancã tratava de atenuar os gabos, muito modesto:
— Qual nada! Daqui p’ra deante é que é o feio! Um pé de vento pode ainda derrubar o cateto; uma tempestade de muitos dias é capaz de estragar o mulatinho; o gergelim não tá livre de estorar fora do tempo, co’este solão que tem havido; a abób’ra ás vez fica um horror, de aguada...
O administrador apartava-se, contemplava de longe o porte, a verdura do milharal, andava um tanto, voltava-se outra vez, desaparecia para tornar no dia seguinte, menos por tomar fé no estado do talhão que por se entreter com a roça do empreiteiro. O Cancã era um simples, um largado; mas não faltou quem o advertisse:
— Olhe, que o Veríssimo tá aguando p’ro amor de as suas plantas. E fique sabendo que aquilo é um gaudério dos mais piores que Deus ponhou neste mundo: um larifo excumungado, que tem fel no logar onde os outros tenham o coiração!
Para o Cancã, tudo era nada: não lhe passava pela mente que o Veríssimo fosse capaz de cobiçar-lhe as posses, quando tinha de seu, a par com a fazenda do patrão, um sítio encantado, de bom. A inveja é para os fracos; é para os que não acham encosto nem valedouro em ninguém; é para os que muito querem e nada podem... Não atentava nos ditérios e conselhos dos outros parceiros ou camaradas: ia enfiando os dias, calmo e confiante, à espera da quebra do milho e do malhar do feijão, das mais tardias feituras do polvilho azedo e da farinha de beju.
Aproximava-se a lua da última carpa do talhão. O Cancã cuidou do que relevava na própria roça, porque não tivesse de interromper a limpa do café para olhar pelo que era de casa, afiou as enxadas, encabou-as de novo, esperou. Houve uma chuva atrasada, que se prolongou por dias e, depois, calor de fornalha. Parecia levantar-se da terra, às horas mais quentes, fumaça clara com vivos de fogo, que tremia e dava tonturas; os coleirinhos, que de manhã esvoaçavam pela erva em bandos turbulentos, aquietavam-se entre as árvores das capoeiras, cansados e silenciosos: e era tão áspero, na transparência dos ares, o rouquejar dos caranchos, que se imaginava estar ouvindo a cada instante, uma trovoada longínqua.
Certo dia, por volta de uma da tarde, o Cancã teve que abrir mão do eito: doíam-lhe os olhos, um forte peso nas costas o arcava para a frente, sentia frouxas as pernas e os braços bambos. Deu parte da doença ao administrador:
— Seo Veríssimo, vim-lhe dar definição de um causo que me sucede. Hoje eu arreio um tiquinho: tou morrinhento, não sei do que, mas porém me representa que panhei um ramo de influência: preciso de beber um café com limão e suar algum pouco. Vou p’ro rancho.
O outro mostrou-se compadecido:
— Ora já se viu só que infalência tão sem graça, esta agora, quando a gente véve apurada duma vez, por via do patrão que tá chega-não-chega! Não há de ser nada: cuide premeiro do corpo, depois vigie os tratos.
Retirando para o ermo, a um lado do talhão, junto já da capoeira, viu o Cancã que um curiango dos grandes se desmanchou no carreadouro, debatendo as asas longas, e abriu o vôo curvo para a escureza de u’a moita de mamoneiros. Entristeceu-se:
— Não mal-agoure um pobre, pass’o triste! Eu não quero bater o trinta e um ainda: tou muito moço, coitado de mim!
Entrou no rancho, ingeriu a xapoeirada, acomodou-se. As ripas da cumiada estreitaram-se, baixaram, entrançadas de sapé muito escuro e muito quente, abafaram no com o peso. Onças irosas miaram pelos arredores. Jaguariaivas malcriados ladraram ao doente, ensurdecendo-o, atormentando-o. Um desconhecido sacou de uma azagaia, com feições ferozes, e ia cravar-lh’a no peito, quando, a romper-lhe o delírio, veio dizer o administrador:
— Antão, como vai essa quitanda? A mó’ que já tá cuo semblante mais sussegado!
O Cancã levantou-se num dos quadris:
— Agora, louvado Deus, tou tendo u’a melhorinha! Aminhã garro cedo no serviço.
Não mancava nem torcia nas promessas: logo ao alvorecer, de feito, achou-se no talhão da empreitada. Mas havia gente a fazer aquela última carpa, e ele admirou-se:
— Como é, seu Veríssimo? Pois este talhão é meu ou não é meu?
O Veríssimo olhou-o de alto, muito sério, duramente:
— Já foi seu: como houve apuro, e você teve sua manha, entreguei p’r’outro.
— E as minhas plantas, seu Veríssimo?
— As plantas do empreteiro que larga o serviço, de quem é que são? São do que manda na terra!
O Cancã fez-se lívido e pegou a tremer. Contem- piou demoradamente, com amor e quase já com saudade, a verdura tenra dos arbustos. Funda tristeza principiou a tremer-lhe o coração e os olhos. Levou-os ao céu, que se ria todo azul e sem nuvens, e, caindo na crueldade do mundo, implorou com humildade de cachorro, que rasteja e lambe os pés do senhor:
— Por tudo quanto é segrado, patrão, não me tire as minhas plantas! Ao menos me dê licença p’ra mim fazer a colheira: eu acupo só por mais uns dias o rancho, e depois mexo!
Mas o Veríssimo fechou-se no dito. E houve tanta lágrima, e tanta queixa, e tanta importunação, que mais tarde, como já desse de pretejar a barra do céu, e a teima não cessasse, foi preciso chamar uma escolta de seis soldados, que mandou sair aquele vagabundo, desaforado e cabeçudo, para além das porteiras da fazenda...


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Contos Paulistas - Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015

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