
“Não pode haver amizade entre
homem e mulher.
Pode haver paixão, hostilidade, adoração, amor – amizade, nunca. “
(Oscar Wilde)
A vila de pescadores de Mangue Seco tem esse nome porque a areia fina e
cortante trazida pela ventania costuma pentear as folhas das palmeiras,
formando nelas uma cabeleira estilo afro. A areia em seguida avança
ferozmente sobre o manguezal, sufocando, matando, deixando as raízes das
árvores totalmente secas, transformadas em figuras pré-históricas, fantasmas
horripilantes que nem a imaginação fértil de um escultor poderia imaginar. O
motor da picape que Daniel dirigia resmungou avançando aceleradamente nas ruas
desertas da vila. O carburador soluça, o cano de descarga tosse, o acelerador
geme, todo o veículo palpita a cadência diferente como se fosse o velho e meigo
coração se despedindo emocionado da paisagem.
Anoitece, a viração transforma o que resta do fulgor em leve ardência de
sangue que se funde com o horizonte, sabe-se lá em quais lonjuras. Ele inventou
a correria para fingir que tem pressa. Ao pensar que vai a algum lugar, obriga
a picape saltitar como peixe na corredeira, levantando da piçarra nua a poeira
esbranquiçada. O pó emaranhado e confundido com a vasa que vem da praia se
transforma em essência que rasga o manguezal e se entranha na noite, na pele,
nas almas, nas pessoas.
Mas na verdade ele morre de
amores e de saudades de Gardênia...
Daniel ligou o rádio do carro esperando sufocar com a música outros sons
que se confundem com os ruídos corporais. Ele mesmo é uma coisa qualquer,
ambulante e inquieta, cheia de sensações, dores, gemidos. [O cantor jamaicano
Derrick Harriott com sua voz exultante recicla "Be True" , um
reggae da década dos '60 tão antigo como a dor de deixar alguém.] A nuca de
Daniel dói a dor funda, o braço esquerdo acusa adormecimento repentino, o peito
espreme o coração como um tirador de sucos, afloram as mais estranhas memórias
de enfartes, taquicardias, palpitações, morte. Do jeito que está, pensou, nem
mesmo o cardiologista mais famoso, com toda a medicação prescrita e seguida à
risca poderia salvá-lo.
As luzes do Aeroporto, luminosas como as estrelas que socorrem na
solidão do mar os pescadores, surgem salvadoras, capazes de evitar o colapso de
Daniel. E podem, afinal, alavancar com seu farol as asas brilhantes do avião
rumo ao espaço, mar de estrelas que engole tudo quanto for comoção. Daniel diz
adeus à vila de seu primeiro amor.
DEPOIS DE UM BANHO na cacimba ao jorro da água fresca que cai de uma
cuia à luz das estrelas, Gardênia enrola o corpo na canga estilo rasta e
segue para casa. Na escuridão, o passo em falso foi suficiente para fazer o pé
resvalar nos degraus do destino, torcendo o tornozelo. E ocasionalmente
aparecer – como realmente foi – um desconhecido para massagear o pé machucado,
ouvir estórias bem sucedidas, felizes, trocar frases de efeito, ilusórias, das
muitas que guardou com o aprendizado oriental. Foi assim que se conheceram: o
resto era teatro de camelô, música de cantor de bolero, de quem finge apaixonamento repentino. Sabe? Como as almas
conectam os polos positivos.
As frases serpenteiam bonitas pelo pensamento. Daniel e Gardênia
caminham juntos em busca de respostas, procurando desesperadamente um farol,
algo que os guiasse para a luz, na noite de pecadores. E assim foi. O casal de
namorados diz frases que só têm valência para quem precisa e para ouvi-las
silencia tudo. Tipo assim como religião, uma reza ou oração. Cala até o ruído
exterior, coral formado pelo som da gritaria, para que Daniel possa gravar a
voz de Gardênia nalgum canto do coração e da mente. Só assim funcionam as
frases de quem se enamora do amor – de outro modo, acabam se transformando em
galhofa.
O frio da noite cruza as roupas leves de Gardênia e arrepia seu corpo.
Ele acolheu os pés debaixo da camisa de malha para aquecê-los junto ao peito.
Os pés criaram nova vida, agradecidos, acariciaram o tórax, o mamilo direito,
deixando os pelos do corpo e as coisas mais eriçadas. Ele gosta, ela gosta.
Tudo foi mudando, tudo então virou brincadeira, tudo se transforma em
irmandade, união alegre e logo se travestiu em tempero erótico, cheiro do peixe
assado na brasa. Sabe aquela história de amor à primeira vista?
Na noite escura outra vez o farol da barra gira continuamente. Sob a sua
luz salvadora, o casal rasga latas de cervejas, se acaricia à exaustão, brinda
com taças de vinho, o prazer de ter-se conhecido. A luz do farol focaliza o
grito cadenciado e envolvente dos regueiros, exibe o destaque, o jeito saliente
dos passos, as cinturas, os seios, os quadris tirados do ritmo, meio chegados
entre a dança-do-ventre árabe e o tambor-de-crioula africano.
Num átimo o cabelo de Gardênia voou na noite e ela sumiu. Como estrela
cadente. Nem ela está mais ali sentada na cadeira ao lado nem os pés precisam
de calor dele nem a fala macia soluça necessidades nem precisa mais ouvir
histórias das mil e uma noites nem o riso valente e libertário ecoa na
gargalhada vistosa. Gardênia sumiu como tinha aparecido, tipo gata borralheira.
Ela não está mais ali, ficou somente o cheiro do corpo todo, ardido como
pimenta, sufocante como o cheiro de amêndoa doce. Para Daniel aquilo era o
inferno. Em tudo, em tudo, em tudo ele sente exalar o peculiar cheiro de
Gardênia. No altar sagrado, na quebrada das ondas, na areia da praia, na
distância, até mesmo no mar, persiste o sentimento perene do odor. Aroma,
perfume, fragrância, essência, olor, cabelos, lábios, olhos, nariz, seios, umbigo.
Em tudo, em tudo exala o cheiro de óleo de amêndoa doce que Gardênia
usa. Na distância, na dormência, na constância, mesmo nas coxas, no sexo, mesmo
nas nádegas, sobrevive a percepção eterna do frescor de Gardênia.
A luz insistente do cheiro de maresia finge demonstrar ao navegante que
é regaço tranquilo a baía formada pelas ondas traiçoeiras, mas acolhedoras do
delta das coxas dela.
Sem ela Daniel flutua no mar sem salva-vidas...
O corpo de gardênia reluzia na noite, entre os lençóis verdes das ondas
do mar. O som era o mar. O ardor era a vasa. O ritmo de vai-e-vem era as ondas
que vinham parir na areia. E enquanto as nuvens cinzentas sobrevoaram a praia
em volta deles tudo era morno e gris. E nenhum dos dois sentiu vontade de saber
se o sol ia aparecer para tirá-los daquele calor. O cheiro de amêndoa doce
guiava o caminhante para a presa favorita. Igual animal noturno, Daniel fareja
os poros doces e dali tira sustento para mais um dia.
Nada de pressa, nada de prisão, nada de dominação a não ser aquela que
liberta e dá asas para voar como a águia caçadora que vai e vem ensinada pelos
Mestres Caçadores. O cheiro de amêndoa doce traduz ao amante ternura e
contentamento. Antes de ser agressor era agredido, antes de ser senhor era
escravo, antes de ser mestre era aprendiz. E na contínua guerra de carinhos
sobrevivem as carícias espontâneas de Gardênia, indicando ao caminhante o
roteiro de gozo e prazer. Sempre farol, nunca escuridão. O cheiro de amêndoa
doce tira o apetite pelas coisas banais e frívolas como um raro pôr-do-sol
qualquer, mesmo que o sol fosse o sol dourado de Van Gogh sobre o vale de
girassóis dourados.
E a maré vem e a maré volta, surfistas flutuam sobre as ondas em busca
da melhor para lançar-se e alcançar as manobras radicais, adivinhando o êxtase
para o qual estão preparados espiritualmente. O supremo prazer aqui é trazido
pelo cheiro de amêndoa doce mesclado ao suor dos corpos de Gardênia e Daniel
entrelaçados. A pele dos corpos grudados reluz e torna mais clara a negrura do
quarto, o lençol mais alvo.
Como repentino luar vara as cortinas e banha de luz difusa os dois surfistas, que não precisam de pranchas, não carecem de água, não flutuam sobre ondas verdes nem voejam no sonho de campeonatos mundiais.
No entanto múltiplos eles são tudo isso, por conta do cheiro de amêndoa
doce que incensa o ambiente com a mesmíssima intensidade estonteante de gozo e
prazer das tendas de fumadores de haxixe. E quando o tempo esquecer de tudo e
deslembrar até de passar, quando as radiolas de reggae calarem os decibéis,
quando os tonéis e vidros de óleo de amêndoa doce esgotarem seus mananciais,
quando, até mesmo, as odaliscas deixarem de colear a dança-do-ventre, é hora de
Gardênia reaparecer.
De fato ela pegou carona no anjo de aço e atravessou de noite os cinco
mil quilômetros que os separavam em busca do manancial de palavras, agora não
tão ricas em saberes, vazias de ilusões, sem nenhuns poderes de persuasão. E
retornou aos braços do verdadeiro amante. Mas não havia mudado o encanto mágico
que os uniu na primeira noite? Os olhos de Gardênia luziam de verde. Daniel
chorou porque seus lábios ainda se compreendiam, mesmo sem palavras. Quando
seus corpos de novo se uniram o que estava em jogo não era nada irreal, mas o
líquido finíssimo e perfumado do óleo de amêndoa doce.
E de novo escolheram a vila de pescadores, a solidão da noite e o ruído
sinfônico das ondas do mar se lascando na areia da praia. Buscaram a poesia dos
sons emitidos em surdina, dos gemidos que todos entendem, os violentos e
carinhosos arranhões, dos intermináveis beijos que premiam roxos medalhões, os
desfalecimentos temerosos, que deixam a nuca doendo a dor profunda.
Daniel esqueceu a dor do braço direito, não gemeu na dormência demorada
nem lembrou o peito mais tenso que rolo de aço. Largou o pobre coração
comprimido tremendo como britadeira, dominou as trágicas histórias de
taquicardias e palpitações, desdenhou dos colapsos fatais, legou para o cinema
e TV toda aquela maquinaria cheia de monitores, tubos, unidades hiper-modernas
de UTI. Com Gardênia a seu lado ele pode prolongar ou salvar a estranha e
comovida existência, acomodada e pré-programada para viver apenas cinquenta e
sete anos de vida cigana e atribulada.
É neste exato momento que se inicia uma nova estória de amor. Não é a
continuação daquela ocorrida na vila de pescadores de Mangue Seco, é a estória
de um casal apaixonado que por ninguém jamais será contada. Porque o amor está
fora de moda.
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Do livro:
Sonja Sonrisal
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