sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "Bahia até morrer..."

BAHIA ATÉ MORRER...

José Alexandre da Silva, apelidado Zé Bahia, considerava-se o primeiro entre todos os torcedores do Esporte Clube Bahia, daí a razão desta alcunha.

Sua intensa paixão pelo tricolor baiano, no entanto, não despontou de um instante para o outro; não fora consequência de uma escolha minuciosa e  caprichosamente ponderada, nem foi o resultado de uma feliz aposta que lhe pudesse ter rendido alguns bons trocados.  Este gosto vivo pelo tricolor baiano já se manifestava desde seus oito anos de idade, quando passou a receber forte influência do pai, que o levava religiosamente aos estádios, e ainda com mais entusiasmo à Fonte Nova, para assistir ao que dizia ser o “melhor e mais verdadeiro futebol do Brasil”.

Aos dez anos de idade, quando ainda  era tratado pelo apelido de Zezinho, que lhe dera a mãe, fora convencido pelo pai a ingressar num grêmio recreativo dedicado ao célebre clube baiano, no qual alçou, seis anos depois, ao cargo de presidente, quando só então foi cognominado Zé Bahia.

– Bahia até morrer! bradou no seu discurso de posse, tomando de empréstimo um trecho do conhecido hino do Flamengo. Esse passou a ser o seu lema, o grito de guerra quando se dirigia aos estádios, ou quando via seu estimado Bahia granjear mais um título.

Porém, conquanto estivesse muito satisfeito com o desempenho de seu time no âmbito regional, uma vez que este tinha constante hegemonia no Estado, Zé Bahia ainda nutria dentro de si um profundo resquício de insatisfação, algo que geralmente o levava a uma mesa de bar, onde buscava extravasar seu descontentamento  ao som de Amado Batista e de uma garrafa de Pitu. Atormentava-lhe o fato de o tricolor de aço nunca  ter conquistado um título nacional, algo que lhe arrancaria esta imensa angústia, além de fazer calar  a boca dos rivais torcedores rubro-negros. 

Anos depois, para seu pleno delírio, este dia chegou. Finalmente, o Bahia, pela primeira vez na sua história, erguia a tão almejada taça do Campeonato Brasileiro.

– Bahia até morrer!... Bahia até morrer!...  Bahia até morrer!... gritava alucinadamente ao mesmo tempo em que era conduzido pela ambulância ao pronto-socorro, após sentir forte dor aguda no peito, em conseqüência do intenso extravasamento emocional que lhe dominou. 
–  A próxima será a Libertadores, ainda conseguia gritar enquanto a sirene gemia pelas ruas da cidade.– Depois o mundial em Tóquio, prosseguia quando dava entrada no hospital, calando-se logo em seguida, após a aplicação de um forte sedativo que lhe fez adormecer até o dia seguinte.

– Seu José, dizia o médico enquanto lhe dava alta, - o senhor precisa controlar melhor seus nervos. Seu coração, embora não apresente nenhuma anomalia grave, não pode suportar emoção assim em excesso.

– Pelo meu Bahia, respondeu com uma rima, - pelo meu Bahia, que importa morrer de alegria, doutor?

O tempo passava, e Zé Bahia mostrava-se realmente feliz. Nunca fora visto tão visivelmente deslumbrante, tão provocativo aos rivais torcedores do Vitória. O problema no coração, embora agravado pelos seus hábitos, não lhe trazia nenhuma preocupação, apesar das constantes advertências da mulher e dos filhos.

Todavia não veio a Libertadores, e Tóquio parecia um sonho inatingível. O Bahia, não obstante continuasse mantendo a supremacia regional, já não brilhava como dantes. E o Vitória, o seu temido rival, parecia disposto a tomar-lhe esta posição no cenário baiano.

Com o decorrer do tempo acometeu-lhe mais uma vez aquele antigo descontentamento, ao qual se seguiu certa melancolia futebolística, tão própria daqueles que se apegam com mais intensidade aos seus times. Junto com a melancolia, veio também um pressentimento de que algo ruim parecia está prestes a suceder ao seu estimado tricolor. Zé Bahia, além de melancólico, tornou-se também pessimista, algo que se acentuava, dia após dia, com a péssima posição em que seguia seu clube no Campeonato Brasileiro, do  qual logo passou a ser o lanterninha.

Este estado sorumbático em que vivia Zé Bahia, alcançou o seu clímax quando o Bahia ficou a uma partida da Segunda Divisão.

– Vamos dar à volta por cima... Bahia até morrer! tentava consolar-se a si mesmo, enquanto seguia para o estádio, no dia do jogo decisivo.

Durante toda a partida, Zé Bahia permanecia em visível agonia. Seu semblante fazia transparecer as dores de um parto feito com fórceps. Quando o adversário enfiou o primeiro gol, sentiu novamente uma fisgada no coração, sendo de imediato conduzido ao hospital antes mesmo que terminasse a partida.

Contudo, mais uma  vez ele resistiu. Zé Bahia sobreviveu. Após sete dias de internação e sob fortes cuidados médicos, recuperou suas forças, e sua paixão pelo tricolor de aço parecia renovar-se como a mitológica Hidra de Lerna. 

– Senhor José Alexandre, falava com ar de severidade o médico. - O seu coração está por demasia enfraquecido. Além desses medicamentos, o senhor precisa controlar melhor suas emoções, do contrário não sobreviverá a outro baque deste. Evite ir aos jogos e procure outro entretenimento que não seja futebol, advertiu-o com rigor de voz o medicinal.

O tempo passou e, além de não seguir as prescrições médicas, Zé Bahia recuperou com mais tenacidade as esperanças em seu time, dedicando-lhe todas suas energias à sua causa.
– Voltaremos ao nosso lugar. Vocês verão, cambadas de bestas! Berrava e gesticulava para um grupo de torcedores do Vitória. – Bahia até morrer!, bradava entusiasmado. – Bahia até morrer!...

Entretanto este otimismo não se prolongou por muito tempo, pois um novo golpe veio disposto a revolver-lhe toda esperança. O Bahia, o grande tricolor baiano, estava, desta feita, a um passo de cair para a Terceira Divisão.

– Voltaremos ao nosso lugar, murmurava consigo, enchendo os olhos de lágrimas. – Meu Bahia, meu querido Bahia...

No dia do jogo, não obstante a situação de seu time ser  ainda mais dramática do que em outras ocasiões, Zé Bahia esforçava-se por ofuscar a realidade.

– Venceremos. Sim, venceremos!... Bahia até morrer!... Bahia até morrer!...  gritava a pleno pulmões na arquibancada, enquanto via com entusiasmo o tricolor adentrar o gramado.

Os resultados dos outros jogos estavam propensos ao Bahia. Este só dependia dele mesmo para sair daquela desastrosa posição. No primeiro tempo, o time jogou bem melhor, quase marcando um gol bem logo no início da partida, o que fez avivar ainda mais os ânimos de Zé Bahia.

– Bahia até morrer! tentava desesperadamente animar o seu time.

Todavia, quando tudo parecia culminar em contentamento, eis que o seu tricolor leva um gol. Então ele sente uma nova pontada no coração.  Mais um gol, mais uma pontada; outro gol, outra pontada, e mais outra... e outra...


- Bahia até morrer!... Bahia até morrer!... Bahia até morrer!..., sussurrava, cada vez mais brandamente, enquanto seu coração pouco a pouco parava de bater...

São Paulo, 2002.

Nenhum comentário:

Postar um comentário