MARIA DO AHÚ
Muitas vezes me lembra a Maria do Ahú, que ainda conheci. Viveu em Retorta, aldeia ou sítio na margem esquerda do Ave, quase em frente de Vila do Conde. Aí se conhece a história que lhes vou contar. Não digo que seja muito divertida: nem muito palpitante, embora um pouco estranha. Mas quase todas as histórias verídicas são mais ou menos assim.
O pai de Maria era
um pobre cabouqueiro que trabalhava de vez em vez, se embebedava quando podia,
e não tinha o que se diz mau fundo. Acabara por ficar viúvo com dois grandulos
e cachopita.
Criados aqueles,
mortos dois, a cachopita nascera quando já se não esperavam mais filhos. De aí
não terem grandes manifestações de regozijo saudado a sua entrada no mundo. Ao
ser-lhe apresentada a recém-nascida, a mãe dissera:
— Escusava-se cá este
emplastro!
Era uma triste
mulher azedada pela miséria, o vinho do marido, as dores no baço, os
nascimentos e mortes dos filhos, o trabalho contínuo. O pai mais ou menos
estava formulando consigo opinião idêntica à da consorte. Acabou por ter um
alçar de ombros e um movimento do queixo, como quem aventa qualquer coisa ao
destino:
— Há de se criar
p’r’aí...
E criou. Mas era
urna rapariguita escanzelada, esverdeada, olheirenta, muito mexida não obstante
e com grandes olhos inquietos, ao mesmo tempo assustados e como sôfregos, ao
fundo do bioco sempre repuxado à frente da testa. Sim, esta era uma sua santa
mania! Fosse ele um velho lenço, um bocado de xale, uma roda de saia rota, fosse o
que fosse, sempre Maria havia de trazer qualquer coisa pela cabeça, puxada para
diante, achegada à cara, — e os olhos salientes a escabulhar lá dentro. A mão
esquerda prendia o capuz sob o queixo, muitas vezes por cima da boca; e a
direita é que varria, é que esfregava, é que arrastava, é que arrumava, é que
fazia todo o serviço: aliás serviço de pobres, que não exige grandes apuros de
higiene. Quando, muito raramente, lhe eram indispensáveis as mãos ambas, dava
um nó no lenço, ou quer que fosse, por baixo do nariz. “Tens dores de dentes?”
— perguntavam-lhe ironicamente. Abanava a cabeça com energia, a responder que
não. A mãe dissera-lhe uma vez:
— Oh, mulher, que
nem te posso ver! Pareces uma Maria do Ahú...
E, tendo-lhe vindo
tal figuração à idéia, repetia muitas vezes:
— Não que és mesmo
uma Maria do Ahú!
Olhava-a com
amargor e desprezo, desgostosa daquele seu último rebento. Mentalmente, repetia
a frase que logo lhe saíra no dia em que se aliviara: — “Escusava-se cá este
emplastro!”
E assim ficou a
Maria do Ahú. As Marias do Ahú estavam pintadas em painéis, nos altares, ou
faziam parte do figurado nas procissões da Semana Santa. Eram, na mitologia do
povo, as bentas mulheres que, chorosas e encolhidas nos mantos, acompanharam a
paixão e morte de Cristo. Talvez por isso, Maria não desgostou de ficar a Maria
do Ahú. Dava perfeitamente por esse nome, e até só pelo apelido: — Ó Ahú!.
Algumas vezes ainda
quis a mãe, aos domingos, torná-la mais apresentável.
És a vergonha da
minha casa, desinfeliz!
— Da nossa! —
sorria, sarcasticamente o pai.
Dava-lhe o vinho,
geralmente, para encarar o mundo e os seres dum ponto de vista sarcástico.
— Toda a gente faz
escárnio de ti... — continuava a mãe. Arrancava-lhe o bioco, lavava-lhe o
rosto, passava-lhe o pente nos cabelos riçados. Afinal, não era feia que
metesse medo! E mandava-a prá porta da rua, ou passear com as mais. Nem as
mais, porém, faziam grande empenho na sua companhia, nem Maria do Ahú na delas.
Errava pelos cantos e
congostas; e voltava com a cara encafuada nas mãos, a maldita!, como se não
tivera cara que pudesse andar à mostra, ou sofrera de moléstia ruim! Diziam-lhe
então uma palavra, desfazia-se em choro. Acabaram por abandoná-la. A rapariga
tinha aduela de menos.
— Deixem essa
castanha pilada no saco! — disse o pai.
E mais ou menos
ficou assente por todos: a garota não era certa, coitadita! “Faltavam-lhe
telhas no telhado.” Mas como trabalhava, trabalhava que nem moira, fazia os
recados a toda gente, parecia ter gosto cm ser criada de quem quer que fosse,
quem a não estimaria? E quem quer se servia dela:
Maria do hú,
vais-me ali ao Zé Manco?
— Maria do Ahú,
viste o meu Neca? Vais procurar-mo, vais?
— Maria do Ahú,
custava-te ir buscar-me uma pinga de água?
E Maria do Ahú num
foguete, as baquetas das pernas zumba que zumba, a mão esquerda, senão ambas,
prendendo o bioco — radiante! Às vezes, a mãe disparatava:
— Você é criada de
todo o povo, sua palerma? Não vê que ainda fazem pouco de si?
— Não fazem, não
senhora.
— Cale-se, que você
não entende nada! E aí! não sai de aí! Vão mandar as filhas delas, ora as
fidalgas de...
Dizia uma palavra
muito feia. E era uma negrura para Maria do Ahú: ali sentada na arca, sem fazer
nada, sem poder obsequiar!
Quando a mãe
morreu, ficou a servir o pai e os irmãos. Com o sarro da velhice, da miséria,
do vício, o pai ia-se tornando insuportável. Os irmãos eram rapazes exigentes e
ásperos, cheios de saúde, e, portanto, de brutalidade e pegas. Pai e irmãos
pensavam que ela nascera para sua escrava; e ela pensava exatamente o mesmo. Às
vezes, brigavam uns com os outros: ora irmão com irmão, ora filhos com pai.
Maria intrometia-se a querer pacificar — e era o pandeiro da festa.
Repartia ainda os
seus cuidados pelos animais sem dono, para quem guardava os restos das suas magras
refeições. Cães e gatos mais ou menos esqueléticos e sujos andavam sempre atrás
dela. Comprava aos garotos da rua, por uma côdea de broa, os passarinhos que
tinham aprisionado, às vezes estropiado. E bem se enganara quem lamentara Maria
do Ahú! Era feliz assim.
Por esse tempo se
deu um curioso episódio na sua vida. Como andasse, então, na flor dos seus
dezoito anos, costumavam certas comadres picarem-na a respeito de rapazes:
— Quando arranjas
um namorado, Maria do Ahú?
Vai sendo tempo,
Maria do Ahú...
— Acautela-te com
os moços, Maria do Ahú!...
E até alguns
malandretes chegavam a cochichar-lhe coisas muito mais atrevidas.
Ora um ralaço aparecera
no sítio, vagabundo sem eira nem beira, a quem chamavam o Zé Bicho por ser todo
peludo e mazombo. Alguma vez veria o Zé Bicho rentar a porta de Maria, quando
esta ficava só? ou rondá-la de largo, noutras ocasiões? Veriam. Começou o
falatório: “Então não querem lá ver? o Zé Bicho namora a Maria do Ahú!” Falavam
por galhofa, já se vê. Mas o caso é que uma tarde, indo à fonte quando já
escurecia, a Josefa Marcada vira o Zê Bicho e a Maria do Ahú desembocando do
atalho do Cruzeiro. Estão a ver... a Josefa Marcada! Quem mais tem que se lhe
ponha é que mais gosta de pôr quês nos mais. A notícia correu como bichinha de
rabiar. Aquela hora, do atalho do Cruzeiro, e derretidos um no outro, os
safados!... E toda a gente de roda do pobre bioco:
— Maria do Ahú, já
tens o enxoval?
— Quando são os
confeitos, Maria do Ahú?
— Isso é pra bô
fim, Maria do Ahú?
Mas o mais inesperado,
o que dava mais riso e, por outro lado, quase fazia impressão, é que Maria
parecia não ir muito fora dos ajustes! Não dizia que sim nem que não; e fazia
umas divertidas gaifonas com a cabeça, escondendo mais a cara no bioco, a modos
de quem, ao mesmo tempo, quere e não ousa confirmar a verdade. Só o nariz
afilado vinha à tona; e os olhos buliçosos escabichavam ao fundo.
— Tu a ele
mostras-lhe a cara, Maria do Ahú?
Passaram-se uns
tempos; e pareceu que Maria andava caída: Não obsequiava com tanta presteza,
aos domingos amodorrava todo santo dia na igreja; dir-se-ia esquivar às
pessoas... Fosse mal natural ou- que fosse, a rapariga abatia.
Até algumas línguas
danadas chegaram a deitar maus futuros! A Josefa Marcada sorria de esguelha,
com um aceno de cabeça cheio de insídia.
— Tu tens alguma
coisa, Maria do Ahú?
— Não senhora.
— Maria do Ahú, tu
andas doente!
— Não ando, não
senhora.
Até que se
lembraram:
— Maria do Ahú,
aquilo acabaria?...
E vai ela, depois
duma breve hesitação, com desespero:
Olhe, acabou, sim
senhora! Não era pra bô fim.
Este caso da Maria
do Ahú, foi rido e contado anos a fio. Tal a espertalhona, han? Chamassem-lhe
parva! Não era pra bô fim, cortou. E tão instintiva honestidade daquela pobre
de Cristo encantou todas as velhas, e era apontada como exemplo às novas com
mais instrução e menos siso. O Zê Bicho teve de desaparecer como aparecera,
pois a cada passo era desfeiteado à conta das suas perversas intenções. Retorta
repelia-o.
Após o que, nunca
Maria do Ahú tornou a ter qualquer veleidade amorosa. Entrementes, o pai morreu
de vez. Os irmãos casaram, um em Vila do Conde, outro na Azurara. Generosidade
incrível!, esses brutinhos fora a alma tiveram um lampejo de gratidão: Deixaram
à irmã o casebre em que todos haviam nascido, e os pais morrido, como já os
pais de seus pais.
Maria do Ahú
começou a envelhecer. E não ia envelhecendo feliz? Tinha umas telhas suas que a
cobrissem; davam- lhe umas roupinhas usadas as mais senhoras do sítio; ia à
lenha, e os lavradores não na enxotavam; comia de esmolas e dos serviços que
fazia a toda gente; e nem os garotos da rua se metiam com ela, a uma porque já
estavam afeitos à sua figura, por outra porque ela a todos paparicava:
Aprendera a tratá-los, de bom grado se prestava aos seus caprichos, e mendigava
nas casas dos fidalgos quaisquer lambarices que lhes trouxesse. Pena, haver tão
poucos fidalgos em Retorta! Era o senhor Abade, eram as senhoras Limas... eram
as senhoras Limas... era o senhor Abade...
Nem sempre Maria do
Ahú andava muito limpa, coitada! Principalmente por causa dos garotos, dos
cães, dos gatos e do tempo que passava na rua. Mas, quando trazia gulodices aos
seus pequenos
(e era uma grande calúnia aventar-se que alguma vez as furtasse!), trazia-as
embrulhadas em fino papel de seda, ou branco de escrever.. Não ia, pois,
envelhecendo feliz? Todavia, não! Maria do Ahú não era feliz como pudera.
Servia toda a gente, bem verdade; tinha preferidos a quem dispensava afetos
especiais; mas faltava-lhe alguém de particularmente seu, ou de quem fosse particularmente
escrava. Por esta falta vivia bastante só e triste, apesar de tudo. Frequentava
muito as capelas, ouvia tudo o que os senhores padres declamavam. Até que ponto
os entendia... - mistério! Mas várias vezes repetia com acerto, em
circunstâncias oportunas, coisas ditas pelo sacerdote na explicação dos
Evangelhos, à missa do domingo. Até que o Nosso Pai que está nos céus, à força
de a ver rojando as lajes das igrejas, reparou na desolação daquela alma. Teve
uma lembrança de pai, e vai de aí...
Sim, então sucedeu
a Maria do Ahú a grande aventura da sua vida: Certa manhã, ao abrir o portelo
que dava para uns palmos de quintal já desmurado, topou no chão à moda dum
embrulho feito de trapos e um, velho xale. Acocorou-se em terra, entreabriu
receosa o xale que parecia resguardar qualquer coisa... E viu mexer-se uma
pequenina forma viva, como um animalzinho arroxeado, que tinha os punhozitos
fechados e vagia. A vizinhança foi alarmada pelo espalhafato de Maria do Ahú.
— Ai o meu riquinho
que parece mesmo o Menino Jesus! — clamava eia. — Ai que me vieram pôr um
Menino Jesus à porta! Ai o meu rico anjinho que esta serva de Deus não merecia
tal prenda!
E assim por diante.
Tudo neste teor. Ainda antes de ver se era menino ou menina. Maria do Ahú
estava fora de si! Pela primeira vez a viam sem o bioco, os bastos cabelos
encrespados no ar, babada de riso e ternura, os olhos cheios de relâmpagos. Não
havia dúvida: era uma cabeça de louca. Mas a quem poderia fazer mal a loucura
de Maria de Ahú? e quem já, teria alma de lhe arrancar o seu tesoiro? O senhor
Abade batizou o menino (pois sempre era menino), dando-lhe o nome de Porfírio
por ser o santo do dia. Ele mesmo, senhor Abade, lidou com as autoridades. Ele
tratou com a mulher do Bento Fornadas, que ainda estava de cama, pelo menos
parte da alimentação do enjeitadinho. E a Maria do Ahú sempre foi entregue o
crianço, visto que à sua porta lho tinham ido pôr embora, claro, sob certas
reservas e a vigilância do mesmo senhor Abade.
— Nem que ponha a
cara... — repetia Maria do Ahú nem que ponha a cara onde aquele santo põe os
pés!...
Queria dizer que
nem assim lhe pagaria. Tinha a pobre por grande mercê darem-lhe aquele carrego
— que outra alijara de si.
Quem seria
essoutra? Perguntavam por mofa: — “Quem será a mãe do Menino Jesus?” Mas nunca
se soube. Debalde se farejou Fulana, Beltrana, Sicraninha... Quem quer fora —
fizera tudo bem resguardado. Quanto ao pai, ao ver-se a diligência com que “aquele
santo” lidara com as autoridades, contratara a mulher do Bento Fornadas -...
Mas cala-te, boca malvada! E tudo ficou por ali.
Correram anos
calmos, iguais, felizes. Se fora instinto de mãe desgraçada, mas amorável, o
que guiara a verdadeira mãe de Porfírio ao portelo de Maria, esse instinto a
não iludira: uma admirável maternidade se revelava, enfim, plenamente, na pobre
tonta. O que ela andava, desandava, pedinchava, se chisnava, para trazer o seu
Menino Jesus bem comidinho e bem cobertinho! E nem por isso Maria do Ahú
descurava as suas obrigações para com o resto do mundo. Pelo contrário! Não
estava ela agradecida a toda a gente, e a este mundo e ao outro, por aquela
graça que lhe fora feita? Todos os filhos das outras, os próprios pais, os
animais sem dono, os pobres de pedir como ela — tinham sempre em Maria do Ahú a
mespa boa amiga e serva. A sua diligência dava para todos. E certo, certo,
nunca ninguém soube até que ponto, na idéia de Maria do Ahú era realmente o
Menino Jesus (ou uma espécie de sua representação, sua prefiguração), aquele
menino que uma vez se lhe deparara, num primeiro raio de sol, ao descerrar a
porta para o quintalejo. Nunca ninguém soube em que medida se julgava ela
obrigada, tendo merecido tal milagre, a seguir e progredir na via da perfeição.
Vão lá saber que jogos de luzes e sombras, confusão e verdade, podem
alternar-se num cérebro assim!
O triste caso,
porém, é o que tal Menino Jesus do Porfírio crescia molengão e vadio, pouco
simpático. Só o senhor Abade conseguiu ensinar-lhe as primeiras letras, a conta
de somar e uns rudimentos da doutrina. Não que fosse inteiramente estúpido! Mas
não queria aprender; não queria fazer nada; e era de más inclinações: Aos doze
anos, por dá cá aquela palha, ameaçava os companheiros de canivete e os
companheiros temiam-no, até os mais velhos, porque lhe sentiam instinto de
executar a ameaça. Isto, nunca Maria do Ahú o pôde crer. E o que se passou com
o senhor Abade, nunca chegou a sabê-lo. Foi pouco, mas elucidativo: uma vez,
desesperado com a relutância do rapaz a fixar uma coisa tão simples, como eram
as três pessoas da Santíssima Trindade, o senhor Abade dera-lhe um safanão...
Mas ficou estarrecido ante a reação do garoto: no seu olhar havia aquele ódio
fito, selvagem, e a terrível inconsciência do olhar das feras. Ao mesmo tempo,
a sua mão fechara-se, convulsa, chegando a ergue-se involuntàriamente contra o
mestre, O mestre fingiu nem ver.
Ora, ainda
vigoroso, o senhor Abade baqueou com umas febres intestinais. Veio um
abadezinho novo, bonito. Era todo perliquitete de maneiras, perfumava-se, tinha
mui honrosas relações na Vila, na Póvoa, no Porto, só pensava em erguer mais
altos vôos — e queria lá saber de águas passadas e enjeitados e velhas mendigas
tontas! E a Maria do Ahú pouco se lhe deu, porque tinha mais seu o seu menino.
Simplesmente, o seu
menino era agora o Porfírio Moinante: um matulão que se dava à madracice, à
vadiagem, à mendicidade, à pilhagem, ao jogo na taberna e ao vinho. Uma virtude
tinha o traste, Deus louvado! Respeitava e até certo ponto estimava, a pobre
velha que se desunhava para o sustentar. Assim, não havia para Maria do Ahú
espelho de perfeições como o seu mancebo. Revia-se nele, que de menino se
fizera um mocetão, e criadinho ali com ela, aquele cravo! E ninguém lhe fosse
dizer palavra a deslustrar em tal jóia! Também já ninguém lha dizia, por
caridade.
Mas há que fiar no
vinho dum homem de maus instintos? Uma noite, chegando ébrio e topando a velha
a pé, Porfírio enraiveceu-se e faltou-lhe ao respeito: empurrou-a; mais: bateu-lhe;
sim, bateu-lhe. A princípio, Maria do Ahú não entendeu: Bater-lhe... o seu
menino? O seu Menino Jesus? a sua flor, o seu filhinho? Não seria a brincar?
não seria para experimentar? Calou-se muito calada, não gemeu nem se queixou,
não tocou no assunto a ninguém. Ao outro dia, Porfírio andava como
envergonhado. Falava-lhe de cabeça baixa, com um modo como repeso e, ao mesmo
tempo, ofendido. “Que lhe teria ela feito?” — cismava Maria do Ahú. — “Valha-me
Deus! ter-lhe-ia feito alguma coisa?”
Mas Porfírio tornou
a bater-lhe, outras noites. Metera-se- lhe em cabeça que ela tinha dinheiro
escondido, exigia-o ali, ali já!, barafustava de modo que os vizinhos
perceberam e se indignavam. E era isso o que mais lhe custava, a ela. Porque
bater-lhe, no fim de contas, também sua mãe e seu pai que Deus lá tinha lhe
batiam; ou os irmãos, quando se iravam; e sua mãe, seu pai, seus irmãos, eram
seus amigos, pois não eram? O pior era Porfírio não proceder assim de seu livre
alvedrio, Pois no dia seguinte, não andava sempre acabrunhado? Como é que
ninguém compreendia que o Mafarrico se metera no corpo do Porfírio? Não dissera
o senhor Abade, de cima cio púlpito, que os demônios entram no corpo da gente?
O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, não fora tentado por Satanás? Quem lhe
batia era o Porco Sujo, abrenúncio!, não o seu cravo, que esse lhe queria como
nunca lhe tinham querido.
E, posto
exacerbasse os furores do bêbado, defumava-o com alecrim, salpicava-o com água
benta que trazia da igreja, em frasquinhos, salmeava-lhe esconjuros que, por
caridade, lhe ensinara a Rita Bruxa. Passava muito tempo de rastos nas pedras
da igreja, orando. E, no meio de tudo isto, não vão pensar que Maria do Ahú fosse
excessivamente infeliz! Não, porque tinha fé. Sabia que tudo havia de passar, e
o seu Porfírio ficar são. Sofreria com paciência para o merecer. A verdade é
que, em certos dizeres que assombravam toda a gente, Maria do Ahú mostrava uns
discernimentos que nunca, antes, revelara.
Até que, um dia, o
diabo que se metera em Porfírio arrastou-o a coisa ainda mais grave, (ainda
mais grave... pelo menos aos olhos da justiça humana): Foi na venda do Zé
Manco, mai-lo Sebastião Bouças, a bem dizer por uma brincadeira; mas tinham
chegado a termos de se atirarem à cara o pior de cada um. O Sebastião disse:
“Olha tu, que até espancas a velha!” E vai o Porfírio, maldito costume da
navalha à unha! caiu sobre ele com um movimento rápido, intenso, que o apanhava
do baixo ventre ao estômago. Sebastião oscilou, arregalando uns olhos
espantados e agônicos; levara as mãos abaixo, como para ainda apanhar nelas os
intestinos... Dobrou sobre os joelhos aos pés do agressor. De aí a nada, estava
morto.
Foi uma sublevação
no sítio. Ainda maltrataram o Porfírio; e também ali teria ficado, se não fossem
as autoridades. Levaram-no para a cadeia de Vila do Conde. De Vila do Conde, para
o Porto. Do Porto, sabe-se lá! para Lisboa ou pela barra fora. Houvera
julgamentos, fora gente ser testemunha, viera à baila o bater ele na velha.
Tudo isso levou
tempo. “Tinha de acabar assim!” — foi o que a maioria da gente disse do
Porfírio. A falar a verdade, Retorta sentiu um alívio com o seu
desaparecimento.
E, entretanto,
Maria do Ahú? De começo, Maria do Ahú andara por’i aos gritos, os braços no ar
como a Senhora da Assunção da Póvoa! Já se nem embuçava nem penteava: os seus
cabelos brancos riçados caíam-lhe nos ombros e açoitavam o ar. De noite,
ouviam-na gemer pelas ruas e implicar com as árvores ou os muros. E ora cantava
o Bendito, numa toada lúgubre que ia arrepiar as pessoas nas suas camas, ora
rompia em imprecações imitantes às dos padres no púlpito: — “Ai mundo, mundo!,
que te deixas afundar por tapares os ouvidos à palavra de Deus! O céu vai
tornar a vomitar fogo, um novo dilúvio vai cobrir a terra...”, etc. Assim por
diante. Agarrava-se a quem passava, contava mais uma vez a sua desgraça e a
história do seu Menino Jesus achado uma vez de manhãzinha, à porta do
quintalejo... E ao mesmo tempo ria e chorava, fazendo momices que também eram
grotescas e tristes.
O que ela não podia
entender é que os outros não compreendessem, nem os doutores! que o seu
Porfírio não era culpado de nada. Matar, o seu Porfírio?! matar?! Os demônios é
que tinham matado, por não terem achado outra maneira de o perder. Não, matar,
— só Deus, que nos dá a vida.
Fora ver o Porfírio
à cadeia, e ele abraçara-a chorando. Há muito que o seu Porfírio a não
abraçava. Atirou-se-lhe aos joelhos com grandes demonstrações de alegria!
Aquilo era prova de que Deus a ouvira, e o seu Porfírio estava limpinho, salvo,
livre dos espíritos malignos que o tinham perseguido. Mas quando ele ficara são
é que o queriam levar?! agora que ele estava puro?! Então ninguém entendia?
Essa gente que tinha o poder não via nada? Não ouvia o padre do púlpito? Não
sabia que Satanás viera experimentar o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo? E
Deus, Deus não iluminava essa gente? Deus fizera tão grande milagre, libertara
o seu Porfírio dos demônios, e não mostrava agora a sua inocência? Não
confundia os hereges e os incrédulos? Mas quem era ela, a mais baixa das servas
de Deus, para ver o que ninguém via, perceber o que ninguém parecia perceber?...
Todas as suas
idéias giravam nesta órbita. E ninguém a julgara tão eloquente. Via-se que
aprendera muitas palavras e comparações nas práticas dos domingos ou sermões
das festividades. “Coitada!” — diziam, apesar dessa eloquência — “agora é que
fica doidinha de todo!” Não obstante, sentiam que nunca ela dissera coisas tão
acertadas, de mistura com os seus desvarios.
Depois, porém, foi
serenando. Quando, pela última vez, se despediu do Porfírio, disse-lhe assim: —
“Tem paciência, meu filhinho. Não te desesperes, que isso é que o demônio
quere! Tudo se há de ver claro; hás de tornar! Lembra-te que Nosso Senhor Jesus
Cristo ainda sofreu mais. .. e perdoou aos seus algozes! sim, perdoou aos seus
algozes!” — repetia, circunvagando olhares angustiados pelos presentes.
“Perdoe-me Vossemecê...” — gaguejou o Porfírio. Ela agarrou-se desesperadamente
a ele, molhando-lhe a cara de beijos e de lágrimas.
Voltou para o seu
cacifo, onde esteve encerrada uns dias. Só recebia ao postigo a malga de caldo
que, por caridade, lhe levavam. Depois surgiu outra vez. Mostrava-se humilhada
e arrependida das cenas que fizera, vagueando de noite, por congostas, como uma
doida. Manifestou o desejo de pedir perdão, em público, do escândalo em que toda
gente dera com a sua falta de conformação. Foi preciso o padre dissuadi-la.
Como estava muito esvaída de forças, já não podia, agora, fazer recados a
ninguém. Nem sequer podia ir pedir. Mas sempre havia umas almas caridosas que
lhe estendessem qualquer tigela de caldo, um naco de presigo numa côdea de pão
de milho. Dessas esmolas repartia ainda com os outros pobres; e sempre, é de
ver, com os gatos e cães sem dono que lhe continuavam de volta das saias.
Forçada a limitar muito a sua atividade, cultivava cravos, mangericos e
sardinheiras em velhos potes ao longo do muro. E o resto do tempo estava
sentada na pedra gasta da soleira, muito encolhida no seu bioco e nas velhas
roupas pretas, verdes d.e coçadas. Quase só se lhe via o nariz, e os ossos dos
dedos passando infatigavelmente as camândulas do rosário.
— Como vai isso,
Ti’ Maria do Ahú?
— Como Deus Nosso
Senhor é servido.
— Pois tem aí um
belo jardim, Ti’ Maria do Ahú!
— Deus Nosso Senhor
seja louvado! Leva um cravinho, se quiseres...
E, mais uma vez, bem
se enganara quem julgara Maria do Ahú desgraçada. “Desgraçado é o demônio!” -
dizia Maria do Ahú. Ela ia sofrendo, rezando, esperando... E tão conformada,
que se julgou ir perdendo a memória, e quase haver esquecido a tragédia que lhe
atravessara a vida. Há uns tempos, já, que não voltava ao assunto.
Mas, um dia, Maria
do Ahú amanheceu quase risonha: Aliviara, até, o bioco. Via-se-lhe grande parte
da cara aberta numa expressão mui aprazível. É espantoso, não é?; mas o certo é
que a idade e os infortúnios a tinham tornado mais bonita; ou menos feia.
À vizinha que lhe
levava a malga do caldo, contou que um Anjo do Senhor lhe aparecera essa noite,
fazendo tal clarão em todo o casebre que parecia haver a lua cheia entrado
pelas telhas. Era de admirar que ninguém tivesse dado tento dessa luzerna!
Horas e horas o Anjo do Senhor conversara com ela, tu cá, tu lá, contando-lhe
como tudo ia acontecer. Porque tudo ia acontecer breve, agora era certo! Ela é
que não podia dizer mais nada. Pois do mais o Anjo do Senhor lhe pedira segredo,
pondo o dedo nos lábios, assim... E chegava a imitar o Anjo.
Mas tudo o que, Ti’
Maria do Ahú? — perguntou a vizinha. — O que é que vai acontecer?
Maria do Ahú,
largando o bioco, olhou nela quase indignada:
— O que é que há de
ser? Então de que falo eu? Tudo foi esclarecido! Vou ver o meu Porfírio.
— Ora ainda bem! —
disse a vizinha, consternada, e com um grande esforço para se mostrar alegre. —
Nem sabe quanto estimo, Ti’ Maria do Ahú!
Na manhã seguinte,
já era sol nado e criado e ela sem aparecer. A vizinha empurrou a porta que só
ficava encostada. Maria do Al-iú estava amochadinha no chão, contra a parede, a
cabeça dobrada ao peito e o rosário caído ao lado.
Ti’ Maria do Ahú...
Ela não respondeu
porque estava morta. Mas, quando lhe descobriram a cara, acharam-lhe um ar de
grande serenidade e satisfação. Decerto o Anjo do Senhor voltara essa noite, e
lhe levara a alma enquanto praticavam tu cá, tu lá
Por esse tempo,
quem sabe se Porfírio era vivo ou morto? Talvez ela tivesse tido razão dizendo
ir ver o seu Porfírio. E, a ser assim, lá onde se encontraram, por certo já o
seu Porfírio não rapava da navalha, nem erguia a mão contra a sua santa mãe
adotiva.
Deste modo viveu e
morreu Maria do Ahú, cuja história tive a honra de lhes contar. Não prevenira
que não era muito divertida, nem muito palpitante, embora um pouco estranha?
Mas quase todas as histórias verídicas são mais ou menos assim.
---
---
Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
---
---
Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário