O SENHOR DOS NAVEGANTES
Branca, airosa, pequenita, erguida sobre o tope duma colina, a capela do Senhor
dos Navegantes divisava-se de longe, como um farol. E a ela, mais do que a uma
luz que brilhasse na noite atlântica, os pescadores enviavam esperanças e
desesperos quando em graves riscos se viam nas cavas e lombas do mar. Porque
ficava alta, ao fim de íngreme, pedregoso carreiro, raras gentes lá iam, salvo
em dia de festa, com morteiros e filarmônica, uma vez cada ano. Fascinado pela sua
solidão e largueza panorâmica, eu encontrara, porém, maneira de a atingir,
naquelas tardes de estio, sem me fatigar. Para subir às montanhas, um livro
vale mais do que um bordão
e, com um livro sob
o braço, punha-me a caminho. Logo que as pernas se cansavam, sentava-me e lia,
enquanto os melros iam cantando nas velhas árvores da encosta. Sem o livro,
pequeno seria o meu repouso e continuaria a ascensão antes de refeito, que a
tendência de quem anda, leve rodas, leve hélices ou apenas, modestamente, os pés
com que nasceu, é, já se sabe, chegar com brevidade ao ponto do destino — mesmo
que nada tenha lá a fazer. Com um livro, é outra coisa. Sendo bom, prende-nos
mais tempo do que os braços duma mulher e só desejamos interromper a sua
leitura no final dum capítulo ou em parágrafo onde possamos retomá-lo facilmente.
Entretanto, as pernas recobram forças.
Naquela tarde,
quando cheguei ao adrozito do Senhor dos Navegantes, demorei-me a contemplar o
mar vasto que dali se descortinava então muito sereno, com suas velas graciosas
e fugidias. Embaixo, estendia-se a grande praia semi-selvagem. À direita,
rompendo de entre um pinhal e com o seu verde contrastando, espaireciam casitas
modernas, todas faceiras e coloridas, ao passo que, da banda aposta,
aglomeravam-se as barracas dos pescadores, em forma de ilha sobre a areia e tão
velhas, negras e roídas pelos anos corno se fossem as mesmas que deixaram ali
os primeiros habitantes do litoral. Dir-se-ia que o tempo parara do lado onde
se trabalhava rudemente ao sol, muitas vezes de colaboração com a morte, para
se ativar apenas naquele onde se descansava à sombra tranquila dos pinheiros.
Após esse longo
olhar de amor com que todos os dias eu envolvia o oceano, a terra e o céu,
sentei-me e dispus-me a ler, como de costume. Logo, porém, que abri o livro, um
rumor veio de dentro da capela. Surpreendido, voltei-me! e notei que a porta
estava semi-aberta. Era a primeira vez que isto me acontecia. Até então, eu
encontrara sempre ali o maior silêncio, um abandono total, com esse sabor
poético, fino, voe- jante, que parece destilado pelo ar e é próprio das ermidas
que padroam as montanhas. Agora, os rumores continuavam. Senti passos e vi um
homem transpor a porta. Trazia os braços fechados sobre numerosos ex-votos —
barcos de cera e pequenos quadros, ingênuas pinturas feitas sobre madeira. Ao
dar comigo, estacou, contrariado; teve, em seguida, uma expressão incerta, logo
um movimento de indiferença, e dirigiu-se, resoluto, para o extremo do adro.
Desse lado, o flanco da colina descia quase a pique, até um matorral que se
estendia lá embaixo. Era um temível despenhadeiro e, para defesa que quem vinha
ao Senhor dos Navegantes, haviam construído ali um murozito, que, da banda de
dentro, formava bancada, em semicírculo. Nessa parte do adro o homem se sentou,
a uns quatro metros de mim.
Descontente com a
sua presença inoportuna, eu ia baixar de novo, os olhos sobre o livro, quando
ele me disse:
— Provavelmente, o
senhor pensa que sou um ladrão... Não é verdade?
É certo que eu
havia pensado isso, um momento antes. Havia mesmo avaliado as suas forças em
relação às minhas e concluído que, em caso de luta, talvez ele fie vencesse.
Não que fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos maltratados, enquanto eu
não chegara ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais robusto e os braços
muito mais possantes do que estes, tão franzinos, de que eu me servia para
pegar no livro. Os seus olhos claros não precisavam de óculos, ao passo que os
meus, sem auxílio de vidros, não me permitiriam dar dois passos seguros, mesmo
para fugir. E embora as linhas físicas dele não se mostrassem rudes, o fato que
trazia, gasto, poeirento, e não sei mais o quê do seu todo, sugeriam a idéia de
homem habituado a trilhar as estradas do mundo, de varapau na mão, ao assalto da
vida.
Hesitei, talvez,
alguns segundos a responder-lhe, porque ele, antes de me ouvir, acrescentou:
— Não, não sou um
ladrão. Isto — e apontava os ex- votos — pertence-me. Eu é que não os mereço.
Definitivamente
perturbado, respondi, enfim, qualquer coisa, não me recorda o quê, uma
necessidade por certo, e ele voltou:
— O senhor não é de
cá, pois não? Está a veranear na praia?
— Estou.
— Logo vi. A gente
da terra não tem tempo de vir ler aqui para cima. Bem lhe basta o trabalho.
Não entendi logo se
ele falava assim para me ser desagradável ou simplesmente para demonstrar a sua
perspicácia.
Os seus olhos
voltaram a fixar-me. Pareceu-me ver neles um lume de ternura, mas senti-me
novamente humilhado ao ouvi-lo dizer:
— O senhor esteja à
sua vontade. Eu não me demoro. E não tenha medo de mim. Não faço mal a ninguém.
Todos nós, é certo, já algum dia fizemos mal — e eu fiz um grande mal, mais
isso foi há muito ano... — A sua voz repetiu, de modo profundo: — Há muito
ano...
— Ë claro que não
tenho medo — declarei, num tom frio. Na verdade, porém, eu enervara-me. Tornei
a abrir o livro e fingi ler.
O homem calou-se.
Vergado sobre os ex-votos, as suas mãos iam desfazendo os barcos de cera e
arremessando-os para o abismo, para o sarçal que havia lá no fundo. Deles reteve
apenas a extremidade dum mastrozito com a sua bandeirola, que fez voltejar na
ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice que se tem para as coisas frágeis, e
logo enfiou na botoeira do casaco. Depois, estendeu o braço, agarrou uma pedra
e deu-se a partir os quadros onde se viam embarcações de pesca em luta com o
mar embravecido e o Senhor dos Navegantes de pé sobre as nuvens. Todos eles
tinhas datas, algumas seculares, e legendas de reconhecimento, com muitos erros
ortográficos e mal desenhadas letras. O homem lia-as antes de despedaçar as
pequenas tábuas onde elas estavam inscritas e, em seguida, lançava os destroços
lá para baixo, para o mesmo lugar dos barquitos de cera. Entretanto, parecia
falar sozinho:
— Nunca salvei
ninguém... Ninguém! Eu bem o desejaria fazer, mas já não tinha força para isso.
Se estes se livraram da morte, foi apenas por circunstâncias favoráveis...
Levantou-se e
voltou a entrar na capela. Pensei ser o momento de me retirar. Ele ia julgar
que eu era cobarde, mas isso não me importava. “Verdadeiramente — disse a mim
próprio — o que busco nesta colina é sossego e sossego, hoje, não existe aqui.”
Antes, porém, de eu
haver tomado uma decisão definitiva, o homem surgiu, novamente, no adro, com
outra braçada de ex-votos. Eram, agora, mãos, seios, cabeças e pés de cera. Ou
por falta de paciência para os desfazer um a um ou por lhe ser anojoso partir
aqueles símiles de membros humanos, que lhe acordariam, porventura, remotas
superstições, ele acercou-se do murozito e lançou os ex-votos, duma só vez,
para as profundidades do desfiladeiro. Depois, quedou-se, um momento, como eu
fizera antes, a contemplar o oceano.
— O senhor gosta
disto? — perguntou, voltando-se ligeiramente para mim.
— Isto é bonito —
respondi-lhe. — um magnífico panorama.
Tornou a olhar o
mar e a terra, lentamente.
— Sim, não é
feio... — murmurou. — Podia ter saído muito melhor, mas enfim... Já os romanos
gostavam deste sítio. Ninguém o sabe ainda, senão eu, mas a verdade é que houve
aqui um crasto. Olhe, acolá, à esquerda, antes de se entrar no adro, se alguém
escavar, encontrará restos de sepulturas... E à praia, lá embaixo, chegaram a
vir muitas galeras... Existia, então, um pequeno porto, que o tempo assoreou...
Surpreendiam-me os
seus conhecimentos e a propriedade com que falava. Tentei examiná-lo melhor,
mas o homem encontrava-se novamente de costas, sempre de olhos fixos ao longe.
— Efetivamente —
disse-me, depois — se olharmos bem para a terra, para o mar e para o céu, e se
pensarmos na grande variedade dc seres que há no mundo e em todo este admirável
equilíbrio planetário, parece-nos que estamos perante um milagre. Não é assim?
A si também não lhe parece o mesmo, quando pensa, por exemplo, nas vidas
submarinas?
— Sem dúvida, o
mundo é muito variado...
Ele interrompeu-me:
— Eu sei que todos
os homens pensam, sobre isto, mais ou menos o mesmo. Um simples inseto, que
encontramos num monte e que podemos facilmente esmagar com o pé se ele não
fugir, é capaz de levar-nos a meditar sobre o mistério da criação, é capaz de
arrastar o nosso pensamento por caminhos obscuros que, momentos antes, não
tínhamos sequer admitido percorrer.
O homem
interrogou-me bruscamente:
O senhor o que é?
Qual é a sua profissão? Eu disse-lha e ele pareceu contente:
— Ah, muito bem!
Então pode compreender. Não é verdade que o mundo parece feito por uma
imaginação portentosa? Por uma inteligência que nenhum homem pode igualar?
— Algumas vezes
tenho refletido sobre isso... — confessei modestamente.
— Aí está! —
exclamou ele. — Aí está! Mas o senhor engana-se! Pelo menos, engana-se em
metade...
Aproximou-se mais
de mim. Eu estava sentado, ele de pé; eu tinha de olhá-lo de baixo para cima e
sempre com receio de que estendesse as mãos e me dominasse.
— Ora, diga-me uma
coisa... Nunca lhe pareceu que essa inteligência havia ficado a meio do seu
trabalho? Que não tinha ido até onde parece que pretendia ir?
— Não sei. A nossa
razão tem limites. Para além da nossa razão podem existir outras razões, que
não são explicáveis.
— Era aí,
justamente, onde eu queria chegar! — Ao dizer isto, o homem sentou-se ao meu
lado, dobrando-se levemente para a frente, com os braços apoiados nas pernas e
as mãos juntas. A sua voz adquiriu, então, um murmurejar de confidência e de
quem não sente pressa alguma:
— Tudo correu muito
bem, a princípio — declarou, como se continuasse uma narrativa interrompida. —
Eu tinha um poder infinito. E uma imaginação para além de todos os prodígios.
Até eu próprio me admiro, hoje, disso. Bastava pensar uma coisa e o meu pensamento
materializava-se ràpidamente, adquirindo forma e vida. A minha fantasia não
encontrava limite algum e os próprios habitantes das profundidades deste mar
que estamos vendo o atestam. É um prazer que o senhor não conhece o tornar
realidade o próprio absurdo. Mas, nesse tempo, também eu não sentia esse
prazer; eu não fazia idéia alguma do que era absurdo e do que era lógico, do
que era belo e do que era feio, do que era bom e do que era mau. Estas
definições só se estabeleceram mais tarde, justamente quando surgiram os
limites... Eu criava, criava, como num delírio. E não há dúvida de que a minha
principal obra foi a que os homens chamam o Universo, a mecânica celeste, o
Infinito... Os senhores andam, como a vossa ciência, a colocar algumas balizas,
mas é trabalho mais difícil do que se quisessem remover com uma colher de chá a
terra duma montanha.
Enquanto ia
falando, o homem olhava para o chão, como se não desejasse ver nos meus olhos o
efeito das suas palavras. Depois, mudou o tom de voz:
— Um dia, porém,
senti-me decadente. As aves, por exemplo, são um indício do meu declínio. Não
sei se o senhor é viajado, se conhece a Ásia e a América, as grandes florestas
tropicais onde há aves maravilhosas. Mas se não conhece, não importa; tem visto
isso, pelo menos, nos livros com estampas multicolores. Parece-lhe — não é
verdade? — que há uma diversidade deslumbrante, uma fantasia inesgotável no
mundo das aves. Pois não é assim! Se observar bem, verá que não é assim. A
minha imaginação havia já começado a diminuir, começava já a aproximar-se do
que viria a ser a imaginação dos homens. Criei um pássaro e os outros foram
apenas variantes. Utilizei o primeiro modelo e fi-lo de todos os tamanhos,
desde a avestruz, tão grande que pode ser cavalgada, até o colibri, que, de
minúsculo, se confunde com um inseto. A seguir, fi-lo de todas as cores e com
todas as combinações de cores. Depois, ao invés de criar, pus-me a exagerar
determinadas parcelas do que já havia feito. E cheguei, assim, até a caricatura
da minha própria obra. A algumas das aves limitei-me a esticar-lhes as pernas,
as caudas ou os bicos, de tal forma que estes ficaram grotescos e muito maiores
do que o corpo. A outras dei-lhes uma amplitude de asas de que não careciam, ou
deixei-lhes apenas uns simples cotos. Variei-lhes, também, o fulgor dos olhos e
a composição dos seus gorjeios, deixando umas ternamente mudas e obrigando
outras a cantarem até na hora da morte. Mas tudo isso eram simples pormenores,
porque, rio fundo, a ave, a idéia fundamental, era a mesma. Eu parecia um
desses artistas que realizou, certo dia, uma descoberta feliz e passou, depois,
o resto da vida a lutar desesperadamente para dar a ilusão de que não se
repita, quando, em realidade, não fazia outra coisa senão plagiar-se a si
próprio.
O homem calou-se
subitamente, e soerguendo a cabeça, olhou- me pela primeira vez, desde que se
havia sentado.
— O senhor está a
pensar que sou um louco, não é verdade?
Foi, então, que,
por meu turno, baixei os olhos, admitindo de novo que ele poderia, em qualquer
momento, lançar-me por cima do murozito de resguardo, como fizera aos ex-votos.
— Não, senhor.
Estou a ouvi-lo com muito interesse. O que acontece é que se vai fazendo tarde.
Ele examinou
atentamente o céu, como se medisse o Tempo:
— Não, tarde, não
é... São apenas cinco horas... Dê cá um cigarro.
Passei-lhe o maço,
ele meteu-lhe os dedos, riscou, devagar, um fósforo, soltou o fumo e tornou:
— Com o mundo
vegetal aconteceu a mesma coisa. O que é uma árvore? O que é uma planta? Uma
raiz metida na terra. Para evitar a monotonia, tive de dar variedade às folhas,
às flores, aos frutos e aos aromas. Mesmo aos troncos. Mas, apesar de tudo, é
sempre uma raiz metida na terra. Ora não era isso que eu queria. Eu não queria
o mundo submetido a uma repetição perpétua. Eu desejava que ele se modificasse
constantemente. O senhor já pensou que poderiam perfeitamente existir bosques
aéreos e que o homem deveria andar no fundo dos mares ou no espaço celeste com
tanta facilidade como anda aqui na terra? O senhor não vê que os homens estão
todos os dias a procurar corrigir os defeitos do meu trabalho? O que é um avião
ou um escafandro senão um remendo à minha obra? Mesmo os que me adoram, passam
a vida a discordar de mim e a tentarem emendar o que eu fiz. Quando imploram as
minhas graças para as suas infelicidades, não fazem, no fundo, outra coisa do
que censurar-me, pois o que é uma súplica senão uma revolta que não se pode
exteriorizar? — Sorriu vagamente e ajuntou: — Só não me amaldiçoam porque ainda
me julgam mais forte do que eles...
Voltou a calar-se.
Depois, calcou o cigarro, ainda quase inteiro, e, com um tom doce, melancólico,
confessou:
— Eles têm razão,
coitados! Sucumbi antes de realizar integralmente a minha obra. O que devia ser
mutável tornou-se imutável, e as leis que ficaram a reger o mundo são
impiedosas. Eu só me lembrei de criar o homem muito tarde. Já havia feito os
outros animais, já havia mesmo esgotado toda a fantasia no exagero dos
pormenores, quando me ocorreu uma outra variante. A minha tendência fora, até
aí, dar aos bichos quatro apoios sobre a terra ou sobre as árvores. Pois bem!
Aos novos seres eu daria, como às aves, apenas duas patas. Mas o senhor não
pode imaginar o que senti ao ver de pé, entre os outros, o novo casal. Eu
estava a criar o canguru e tão impressionado fiquei que lhe pus logo mais dois
embriões de pernas e deixei-o incompleto para todo o sempre. No meio dos outros
bichos, que se moviam alegremente, com jubilosos ruídos na manhã da sua vida, o
homem e a mulher, únicos que eram verticais, dir-se-iam dois pinguins entre um
bando de pássaros chilreantes. Ele olhava ao longe, sem saber como orientar-se.
Mostrava-se tão triste, tão incerto no seu destino, que tive de repente pena
dele. Porque fora talhado ao alto, o seu próprio sexo se apresentava menos
oculto do que o dos outros animais e parecia vexá-lo. No caso do meu poder, eu
começara a atribuir, por fraqueza imaginativa, diferentes funções a um mesmo
órgão. Para as aves bastara-me um tubo de vazão; para os outros viventes criei,
inutilmente, dois — e ao segundo impus uma dupla utilidade. Quando verifiquei o
erro, era demasiado tarde: dali em diante, a própria vida humana brotaria dum
cano de esgoto. Assim, a piedade que eu sentia pelo homem, ia-se tornando cada
vez maior. Hesitei um momento e decidi: “É a este que eu me darei. É a este que
eu darei o que ainda resta de grande em mim”. E fundi a minha decadência, o
crepúsculo da minha potestade, naquele melancólico animal. Foi outro erro, o
meu maior erro. O homem ficara com todas as aspirações dum deus e não era
completamente deus. Surgiram, devido a isso, inúmeros conflitos. O homem queria
ser eterno como o deus que ele guardava dentro de si e era, pelo contrário, tão
efêmero como os outros animais. Queria ser feliz, impelido por aquela obscura
reminiscência de quando uma parte dele me pertencia a mim, sua divindade, e
havia de passar milênios sobre milênios a lutar para ser feliz, sem nunca o
poder ser por muito tempo. Só o era integralmente por alguns minutos e
justamente quando fecundava novas dores humanas. Eu havia-o deixado tão
desamparado e com tantos problemas a resolver, que a própria caverna, ao invés
de ser apenas um ponto de partida, foi, ao contrário, um ponto de chegada — a
sua primeira conquista. O mundo ficara imperfeito e o homem com uma ânsia de perfeição
impossível. O mundo ficara incompleto, injusto e sem finalidade visível, e o
homem deu-se a lutar para que o mundo tivesse para ele tudo aquilo que o mundo
não tinha. Quando não pode lutar de outra maneira, recorre às hipóteses. São as
hipóteses que o têm amparado desde que ele vive. Eu sinto remorsos, creia, por
tudo quanto fiz... Sinto especialmente remorsos por tudo quanto não cheguei a
fazer.
O meu interlocutor
levantou-se, meteu as mãos nos bolsos e caminhou, como opresso, até a
extremidade do muro que nos protegia do abismo. Vi-o olhar lá para baixo, para
os destroços dos ex-votos, vi-o, depois, estender a vista até o mar e, em
seguida, voltar-se para mim:
— Então, eu próprio
comecei a lutar também contra a minha obra. É claro que, ao fundir-me no
primeiro homem, fiquei mortal como ele. Mas gozo, ao contrário dos outros, o
privilégio de guardar memória das muitas vidas que tenho vivido. Lembro-me de
tudo desde o começo do tempo, desde que fiz o mundo. E nisso está o meu
principal sofrimento, porque a memória, para quem praticou o mal, é, como se
sabe, o maior castigo que existe. Sofro ainda porque os homens levam, às vezes,
milhares de anos para acreditar no que é evidente. Quando lhes digo a verdade,
eles maltratam-me. Quando lhes grito, por exemplo: “O mundo está mal feito e é
preciso, dentro das vossas possibilidades humanas, corrigir o mundo” — os mais
fracos, os mais ingênuos, ficam a olhar para mim, duvidosos ainda sobre se é ou
não verdade o que lhes digo, enquanto aos mais fortes mandam imediatamente
perseguir-me. Se, para me defender, declaro: “Tenho a certeza de que está mal
feito, pois fui eu próprio que o fez” — então consideram-me louco, bruxo,
herege, visionário, e perseguem-me da mesma maneira. Poucas vezes tenho morrido
na cama, como morrem os generais e a maioria dos outros homens. Ao contrário,
tenho sido esquartejado, queimado vivo, crucificado, enforcado, fuzilado,
guilhotinado, eletrocutado e gaseado. A cada uma das minhas vidas foi sempre
aplicada a moda a que cada época e cada povo obedecem para matar os seus
inimigos. Disso não tenho que me queixar... — acrescentou, com um sorriso. — Há
pouco, contei-lhe que, ali, à entrada do adro, se encontra um velho cemitério
romano. Decerto, o senhor não acreditou. Compreendo perfeitamente: no seu
lugar, eu também duvidaria. Mas pode ter a certeza de que estou lá... - Ou, se
já não existe resíduo algum do meu corpo de então, deve estar lá, pelo menos,
uma fíbula que eu usava nesse período. Enterraram-me ali depois de me terem
supliciado brutalmente,
só por eu haver dito que, como criador que fora do mundo, vivia a penitenciar-me
do meu tremendo erro. Eles julgaram que, com isso, eu pretendia ser mais
importante do que o imperador de Roma e liquidaram-me.
Um bando de
gaivotas ladeou a colina, sobrevoando a praia. A luz da tarde ia diminuindo de
intensidade e dando cores suaves aos arredores da capelita, ao próprio adro,
onde a voz do homem prosseguia:
— Se eu lhe
contasse o que observei e sofri através dos Tempos! Mas nunca mais acabaria e
vejo que o senhor está com pressa... O que me valeu nos últimos séculos foi a
invenção da tipografia. Sem isso, teria sofrido ainda mais, dado que as minhas
últimas vidas passei-as, quase inteiramente, nas prisões. Assim, sempre arranjo
alguma coisa para ler. Tenho lido muito, muito; desde já quatrocentos anos
quase não faço outra coisa. Por outro lado, a leitura distrai-me, leva-me a
esquecer a cadeia; por outro, tortura-me, pois é pelos livros dos homens que eu
vejo, sobretudo, o drama que criei... Ultimamente, lá no manicômio, só queriam
dar-me livros otimistas, livros em prol. Os médicos afirmavam que essas obras
não me despertariam idéias sombrias... Mas eu protestei imediatamente...
— Ah, o senhor
esteve no manicômio? — perguntei, de modo tímido.
— Estive —
respondeu-me ele, com naturalidade. — Não tenha medo de me ofender, pois desde
o princípio adivinhei que o senhor pensa que eu sou um louco. Não me ofende
nada... Todos têm pensado de mim a mesma coisas, já lhe disse. Estive e lá
estaria ainda se, ontem, não tenho conseguido fugir. Estava lá ia já para oito
anos. E sabe por quê? Porque, um dia, entrei numa igreja e gritei aos crentes
que se encontravam ajoelhados: “Não vos resigneis, pois o mundo que eu fiz é
muito imperfeito e, portanto, precisa mais do vosso esforço do que da vossa
resignação. Imperfeito há de ele ser sempre e vós também; contudo, em muita
coisa podeis aperfeiçoar o mundo e a vós próprios. Mas não é de joelhos que o
fareis; é de pé e a lutar! Quem vos fala já foi Deus e sabe porque fala assim..
O homem olhou-me,
como se, desta vez, lhe interessasse conhecer a minha reação. Vendo que eu
continuava calado, teve um sorriso melancólico e continuou:
— O que fui dizer!
Só as imagens dos santos ficaram impassíveis... Mas o Cristo, no altar-mor,
parecia contemplar-me meigamente, com um ar secreto de cumplicidade. Dos fiéis,
uns olhavam para mim, escandalizados, outros faziam esforços para não se rir...
Junto do altar da Senhora dos Aflitos encontrava-se, ajoelhada, uma pobre
mulher, a única que, naquela manhã, estava ali com verdadeira unção. Ela tinha
um filho à morte e não tinha recurso algum, nem para o médico, nem para os
medicamentos — para nada. Viera ali pedir ao céu que lhe salvasse o filho, pois
era o céu a última esperança que lhe restava. Senti tanta pena por essa mãe
infeliz, que me aproximei do altar, estendi os braços para a imagem da Senhora
dos Aflitos e tirei-lhe do pescoço um dos muitos cordões de ouro que os devotos
lhe haviam oferecido. Entreguei-o à mulher e disse-lhe:
“Vende-o e vai a
correr chamar o médico!” Mas a mulher, depois de limpar as suas lágrimas,
encarou-me com repugnância, como se eu fosse o próprio diabo, e recusou o
cordão. Teimei: “Despacha-te, senão o teu filho pode morrer!” Ela continuou a
recusar e a olhar-me com desprezo. Então, sempre com piedade por ela e pelo
filho, resolvi mentir: “Anda! Pega lá! Não tenha escrúpulos! Eu sou o
instrumento de que Nossa Senhora dos Aflitos se serviu para te ajudar”. Ela
hesitou um momento. Olhou a imagem, olhou para mim, mas não cheguei a saber se
se havia decidido a aceitar aquilo. A igreja enchera.se de gritos: “É louco! É
louco! É ladrão! É ladrão! Quer roubar a Nossa Senhora dos Aflitos!” Um
polícia, que estava também ajoelhado, levantou-se, avançou para mim, tirou- me
o cordão e pô-lo de novo ao pescoço da imagem. Depois, ordenou-me que saísse na
sua companhias... O senhor está a ver o que aconteceu... Se, ontem, não apanho
um guarda distraído e não salto o muro, não estaria agora aqui a falar
consigo...
Ofereci-lhe outro
cigarro. Ele recusou-o com um gesto.
— São horas de
irmo-nos embora — disse, empregando o plural, como se estivesse certo de que eu
partiria, com ele, do Senhor dos Navegantes. Realmente, eu deixara de o temer.
Atravessamos o
adro. Ao passarmos junto do local que ele me dissera haver sido um cemitério
romano, vi-o deter-se. Os seus olhos pareciam buscar, sob as plantas
silvestres, um determinado sítio. Encontrou-o, decerto, porque, vergando a
cabeça, gritou para dentro da terra:
— Cá estou! Ouves?
Cá estou e vou continuar a lutar!
---
Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
---
Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário