PELO CAIAPÓ VELHO
– Noite escura e má, patrãozinho.
– O macho frontaberta de orelha murcha e pêlo arrepiado como o pinto pelado da história,
cabeceava macambúzio, lembrando meu velho tio Hilário ao fogo da trempe de pedra, no nosso
rancho de Ipanema, a ruminar lembranças e saudades da vida antiga de arrieiro; e assunte
que o bicho crioulo não encapotava assim, com dois trancos, e era mesmo malcriado para varar
chapadões de sol a sol, comendo dúzias de léguas, tenteando, tenteando, sem qu'isso nos
assustasse, nem a mim nem a ele, frontaberta.
Mas atoleiro era uma lazeira!
Chafurdara-me no lameiro até o cabeção da cutuca, e o ponche-pala ia pingando pelo atalho em fora
bagas de lama que lhe atiravam as patas do crioulo, a bater na trilha ensopada e falha de
cascalho, fazendo lembrar uma viagem que fiz ainda na meninice com o tio Hilário pela lagoa dos
Xarais, nos fundões de Mato Grosso; – quando foi isto, Marinho? Em meados de 1868 ou 69... do
ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo...
O sertanejo velho levou a mão ao
chapéu, couro de catingueiro curtido, descobriu a grenha hirsuta, desengonçando-se no pangaré
piolhento, sorumbático e caduco.
Imitei-o devotamente. O tempo era
bom e a viagem prosseguia como tinha começado – sob
bons auspícios – e o camarada contentado, tinia as rosetas, chupava grosso o
cigarrão desacoitado da orelha,
acariciando com o olhar o interminável verde-pálido ondulado do jaraguá em florescência, e, alegre como a amenidade do
lugar, a brandura do sol e limpeza do tempo, repetiu:
– Noite escura e má, patrãozinho.
Trovoada e relâmpago eram que nem roqueira e foguete de São João. Embarafustara-me, ao sair
da mata grande, por um bamburral danado adentro,
tão fechado de liana e cipó, que, se não fosse sábado e dia de um santo da
minha devoção, acreditaria logo ser
mitra do curupira, a fazer tretas e malícias para me perder. Mas louvado seja Deus – e o chapéu de catingueiro
descambou novamente para a nuca do caburé – patuá com benzedura e reza mansa contra
tentação nunca abandonou peito velho do caboclo, lá isso não.
E naquele vira-tem-mão do
taquaral esconjurado, a cabeça zanzou logo à toa, e ele perdera o roteiro. Tocou então sem rumo certo,
na fiúza do faro de podengo do macho frontaberta;
este não duvidou torcer mão direita, quebrar por um trilho de bicho do mato, e vir esbarrar
num bebedouro de animais, atolado no pantanal – um mundão de lameiro, de sapo e
de pernilongo.
Tenteando, tenteando, ganhara um
serrote e costeou pelo espigão, topando logo aquela restinga alagadiça, onde o apanhou o
pé-d'água, já à boquinha da noite.
– Como dizia, o macho frontaberta
chapinhava de orelha murcha e pêlo arrepiado, como o pinto pelado da história. Corpo mole, bucho
fundo, isqueiro molhado, ponche-pala encharcado e matalotagem virada mingau no sapiquá da
garupeira, decidi apear no sombreiro de um jatobá velho casmurro e resmungão, debaixo da
pontinha de vento frio que vinha dos pântanos, ateimado a passar ali mesmo o resto da noitada
como Nosso Senhor fosse servido. Nisto, carijó preguiçoso cantou doutra banda, num descampado
que deveria existir por detrás da restinga por onde trotava. O vento mudou de lá pra cá e o
macho crioulo, farejando esterqueira, amiudou o passo, chapinhando ainda uns restos de poços,
de orelhas arrebitadas.
– Ó de casa – gritei, colhendo o
cabresto do animal, que veio esbarrar, num trotão bruto, bufando forte, na porta do cochicholo
embodocado – que por sinal me pareceu palácio maior do que o do excomungado Balalão e mesmo o do
santo imperador Carlos Magno – donde saía um fio adelgaçado de luz.
– Ó de casa – repeti.
– Ó de fora – choramingou uma
vozinha aflautada, que me fez correr um arrepio de gosto pelo corpo.
Ai, patrãozinho, eu era moço,
vinte anos, caburé e falto de festas de viola e pagodeiras desde Santo Antônio...
– Pousada, sinhá-dona.
A porta de toros de buriti
amarrados por corda de embira abriu-se e a hospedeira – que à luz da candeia espetada lá no fundo, na parede
picumãzenta, me pareceu uma robusta rapariga de faces gordas, bochechas rosadas e boa
corpulência – alongando o pescoço para o breu da noite, murmurou com uma espécie de tremor na
fala:
– Vancê entra, sinhô moço, se for
do seu agrado, a casa está às ordens.
Apeei. A chuva deixava de pingar
pelo beiral palha de arroz velha da casa. Desacolchetei o ponche-pala, desencilhei o frontaberta,
levantando os baixeiros aos poucos para que o macho não apanhasse resfriado, puxei-o depois para
dentro da tranqueira no oitão da casa – que, assim, assim, a falar verdade não oferecia segurança
– e entrei.
Não sei, entrei distraído, é
certo, mas dito por não dito, me pareceu que a luz da candeia minguara, minguara, a modo de carestia de
azeite...
A hospedeira – era sozinha – na
sombra da luz, perguntou se tinha fome.
A falar, a falar ao certo, que
sim – que desde as barras do dia andava em jejum, debaixo de chuva, sem mesmo ter enxugado os bofes com
dois dedos de cachaça no fundo do cornimboque,
mas que não se avexasse a sinhá dona, que ele com pouco se contentava – um cuité de farinha seca com um taco de rapadura
na goela e qualquer pedaço de couro velho para descansar o corpo; que, quando a madrugada
viesse amiudando, já estaria de animal aparelhado, pronto pra cortar por esse mundão afora.
Que não, que não, ia atalhando
ela, que se abancasse à beira da trempe, onde podia se remediar com uma tora de toucinho na feijoada.
A fome, patrãozinho, era braba. O
estômago farejou toucinho com ranço e feijão bispado. Mas a gente neste mundo de Cristo, de lá pra
cá e de cá pra lá, numa corre-coxia do diabo, pelo sertão sem morador, a mais das vezes nem isso
mesmo topa – que assim, assim, a vida do tropeiro é remédio bom para acabar com
quindins, luxos e poetagens de não comer caruncho no feijão, mofo na farinha e coró e saltão no
toucinho.
Mas, não sabia, apesar de tudo, o
estômago adivinhando, enjeitava zangado...
Naquela morna lassidão do
descambar da tarde, pela estrada poeirenta em cujas margens florescia o jaraguá altanado, pareceu-me,
olhando atentamente para o companheiro, que um ligeiro estremecimento fazia-lhe eriçar as
falripas, como cerdas de canela-ruiva.
– Ceei, patrãozinho, e gargarejei
a boca com a última guampada que me restava de pinga; e esquentado, com a cabeça zonza pela comida e
aguardente no bucho que não via ração desde manhãzinha, deitei e adormeci – quase sem
assuntar – no jirau da mulher, mesmo em seus braços, que julgava roliços e macios, mas que
eram lisos e escorregadios como bagre fora d'água, beijando suas bochechas carnudas e
empapuçadas. Fora, entretanto, pelo breu da noite adentro, o ram-ram danado dos sapos e pelo
beiral palha de arroz velha, ruflando caixa, a chuva amiudava – nunca me hei de esquecer.
Quando levantei, o carijó,
preguiçoso, cantava empoleirado no oitão do chiqueiro. Saí fora; as barras vinham quebrando – era
madrugada. O macho, vi logo, tinha pulado a tranqueira. Ganhei o rastro assuntando o chão com o fogo
do isqueiro já enxuto no calor do corpo, e assim, assim, meio ajudado pelo nascer do dia.
Encabrestei o madrasto no fundo de um grotão; dei-lhe a mão de milho do embornal da garupa. E no
moirão da porta, já dia feito, embarbicachado e arreado o macho, pronto pra cortar, a fala
sumiça da dona chamou-me de dentro:
– O café!
Entrei, mas voltei atrás
sarapantado. Pela porta aberta, as primeiras estriadas do sol davam-lhe de testa nas bochechas rosadas da
véspera e nas mãos que seguravam a tigelinha de barro amarelo, onde fumegava uma infusão
escura e gosmenta:
– O café!
Outra longa e irritada estremeção
correu pelo corpo do caburé, sacudindo-o dos pés encravados nas chilenas ressoantes à grenha
hirsuta, assanhada, como as cerdas de porco-espim acuado, e salpicado aqui e acolá de fios
brancos – violentamente.
O cabra, batendo o isqueiro e
chupando grosso, emudecera.
– Mas, Martinho...
– Patrãozinho – e o sertanejo
cuspiu forte para ambas as bandas da estrada – das bochechas e beiços arregaçados num vermelhão
de apodrecido da rapariga, corria visguenta e fétida por entre uns tocos de dentes amarelos
– patrãozinho – uma baba de empestado... Os dedos da mão, não os havia...
E como inquirisse admirado,
regougou noutro acesso de asco:
– Macutena, patrãozinho,
macutena...
O pangaré piolhento corria agora
mais apressado emparelhando-se ao meu fouveiro, num pacatá furta-passo, pela estrada esmaecida e
pulverulenta em fora, na cadência monótona, ritmática de viageiro, como se quisesse
arrancar do amo o peso esmagador daquela recordação do passado – que fazia o caburé contorcer-se
em convulsões furiosas de vômitos na cutuca – quando, por uma noite tenebrosa d'invernada,
viajava escoteiro pelas estradas ermas e alagadiças do Caiapó Velho.
A estrela boieira ensaiava já o
seu brilho lacrimejante engarupada sobre os cerros, e longe, na ribanceira do descampado, a
escaiolada e vasta pousada abria-nos os braços hospitaleiros no meio de uma fartura de
currais coalhados de gado...
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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)
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