sábado, 21 de setembro de 2013

Hugo de Carvalho Ramos: "Pelo Caiapó Velho"

PELO CAIAPÓ VELHO

– Noite escura e má, patrãozinho. – O macho frontaberta de orelha murcha e pêlo  arrepiado como o pinto pelado da história, cabeceava macambúzio, lembrando meu velho tio  Hilário ao fogo da trempe de pedra, no nosso rancho de Ipanema, a ruminar lembranças e  saudades da vida antiga de arrieiro; e assunte que o bicho crioulo não encapotava assim, com  dois trancos, e era mesmo malcriado para varar chapadões de sol a sol, comendo dúzias de  léguas, tenteando, tenteando, sem qu'isso nos assustasse, nem a mim nem a ele, frontaberta.

Mas atoleiro era uma lazeira! Chafurdara-me no lameiro até o cabeção da cutuca, e o  ponche-pala ia pingando pelo atalho em fora bagas de lama que lhe atiravam as patas do crioulo,  a bater na trilha ensopada e falha de cascalho, fazendo lembrar uma viagem que fiz ainda na  meninice com o tio Hilário pela lagoa dos Xarais, nos fundões de Mato Grosso; – quando foi  isto, Marinho? Em meados de 1868 ou 69... do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo...  

O sertanejo velho levou a mão ao chapéu, couro de catingueiro curtido, descobriu a  grenha hirsuta, desengonçando-se no pangaré piolhento, sorumbático e caduco.

Imitei-o devotamente. O tempo era bom e a viagem prosseguia como tinha começado  –  sob bons auspícios – e o camarada contentado, tinia as rosetas, chupava grosso o cigarrão  desacoitado da orelha, acariciando com o olhar o interminável verde-pálido ondulado do jaraguá  em florescência, e, alegre como a amenidade do lugar, a brandura do sol e limpeza do tempo,  repetiu:

– Noite escura e má, patrãozinho. Trovoada e relâmpago eram que nem roqueira e  foguete de São João. Embarafustara-me, ao sair da mata grande, por um bamburral danado  adentro, tão fechado de liana e cipó, que, se não fosse sábado e dia de um santo da minha  devoção, acreditaria logo ser mitra do curupira, a fazer tretas e malícias para me perder. Mas  louvado seja Deus – e o chapéu de catingueiro descambou novamente para a nuca do caburé –  patuá com benzedura e reza mansa contra tentação nunca abandonou peito velho do caboclo, lá  isso não.

E naquele vira-tem-mão do taquaral esconjurado, a cabeça zanzou logo à toa, e ele  perdera o roteiro. Tocou então sem rumo certo, na fiúza do faro de podengo do macho  frontaberta; este não duvidou torcer mão direita, quebrar por um trilho de bicho do mato, e  vir  esbarrar num bebedouro de animais, atolado no pantanal – um mundão de lameiro, de sapo e de  pernilongo.

Tenteando, tenteando, ganhara um serrote e costeou pelo espigão, topando logo aquela  restinga alagadiça, onde o apanhou o pé-d'água, já à boquinha da noite.

– Como dizia, o macho frontaberta chapinhava de orelha murcha e pêlo arrepiado, como  o pinto pelado da história. Corpo mole, bucho fundo, isqueiro molhado, ponche-pala encharcado  e matalotagem virada mingau no sapiquá da garupeira, decidi apear no sombreiro de um jatobá  velho casmurro e resmungão, debaixo da pontinha de vento frio que vinha dos pântanos,  ateimado a passar ali mesmo o resto da noitada como Nosso Senhor fosse servido. Nisto, carijó  preguiçoso cantou doutra banda, num descampado que deveria existir por detrás da restinga por  onde trotava. O vento mudou de lá pra cá e o macho crioulo, farejando esterqueira, amiudou o  passo, chapinhando ainda uns restos de poços, de orelhas arrebitadas.

– Ó de casa – gritei, colhendo o cabresto do animal, que veio esbarrar, num trotão bruto,  bufando forte, na porta do cochicholo embodocado – que por sinal me pareceu palácio maior do  que o do excomungado Balalão e mesmo o do santo imperador Carlos Magno – donde saía um  fio adelgaçado de luz.

– Ó de casa – repeti.

– Ó de fora – choramingou uma vozinha aflautada, que me fez correr um arrepio de gosto  pelo corpo.

Ai, patrãozinho, eu era moço, vinte anos, caburé e falto de festas de viola e pagodeiras  desde Santo Antônio...

– Pousada, sinhá-dona.

A porta de toros de buriti amarrados por corda de embira abriu-se e a hospedeira – que à  luz da candeia espetada lá no fundo, na parede picumãzenta, me pareceu uma robusta rapariga  de faces gordas, bochechas rosadas e boa corpulência – alongando o pescoço para o breu da  noite, murmurou com uma espécie de tremor na fala:

– Vancê entra, sinhô moço, se for do seu agrado, a casa está às ordens.

Apeei. A chuva deixava de pingar pelo beiral palha de arroz velha da casa. Desacolchetei  o ponche-pala, desencilhei o frontaberta, levantando os baixeiros aos poucos para que o macho  não apanhasse resfriado, puxei-o depois para dentro da tranqueira no oitão da casa – que, assim,  assim, a falar verdade não oferecia segurança – e entrei.

Não sei, entrei distraído, é certo, mas dito por não dito, me pareceu que a luz da candeia  minguara, minguara, a modo de carestia de azeite...

A hospedeira – era sozinha – na sombra da luz, perguntou se tinha fome.

A falar, a falar ao certo, que sim – que desde as barras do dia andava em jejum, debaixo  de chuva, sem mesmo ter enxugado os bofes com dois dedos de cachaça no fundo do  cornimboque, mas que não se avexasse a sinhá dona, que ele com pouco se contentava – um  cuité de farinha seca com um taco de rapadura na goela e qualquer pedaço de couro velho para  descansar o corpo; que, quando a madrugada viesse amiudando, já estaria de animal aparelhado,  pronto pra cortar por esse mundão afora.

Que não, que não, ia atalhando ela, que se abancasse à beira da trempe, onde podia se  remediar com uma tora de toucinho na feijoada.

A fome, patrãozinho, era braba. O estômago farejou toucinho com ranço e feijão bispado.  Mas a gente neste mundo de Cristo, de lá pra cá e de cá pra lá, numa corre-coxia do diabo, pelo  sertão sem morador, a mais das vezes nem isso mesmo topa – que assim, assim, a vida do  tropeiro é remédio bom para acabar com quindins, luxos e poetagens de não comer caruncho no  feijão, mofo na farinha e coró e saltão no toucinho.

Mas, não sabia, apesar de tudo, o estômago adivinhando, enjeitava zangado...  

Naquela morna lassidão do descambar da tarde, pela estrada poeirenta em cujas margens  florescia o jaraguá altanado, pareceu-me, olhando atentamente para o companheiro, que um  ligeiro estremecimento fazia-lhe eriçar as falripas, como cerdas de canela-ruiva.

– Ceei, patrãozinho, e gargarejei a boca com a última guampada que me restava de pinga;  e esquentado, com a cabeça zonza pela comida e aguardente no bucho que não via ração desde  manhãzinha, deitei e adormeci – quase sem assuntar – no jirau da mulher, mesmo em seus  braços, que julgava roliços e macios, mas que eram lisos e escorregadios como bagre fora  d'água, beijando suas bochechas carnudas e empapuçadas. Fora, entretanto, pelo breu da noite  adentro, o ram-ram danado dos sapos e pelo beiral palha de arroz velha, ruflando caixa, a chuva  amiudava – nunca me hei de esquecer.

Quando levantei, o carijó, preguiçoso, cantava empoleirado no oitão do chiqueiro. Saí  fora; as barras vinham quebrando – era madrugada. O macho, vi logo, tinha pulado a tranqueira.   Ganhei o rastro assuntando o chão com o fogo do isqueiro já enxuto no calor do corpo, e assim,  assim, meio ajudado pelo nascer do dia. Encabrestei o madrasto no fundo de um grotão; dei-lhe  a mão de milho do embornal da garupa. E no moirão da porta, já dia feito, embarbicachado e  arreado o macho, pronto pra cortar, a fala sumiça da dona chamou-me de dentro:

– O café!

Entrei, mas voltei atrás sarapantado. Pela porta aberta, as primeiras estriadas do sol  davam-lhe de testa nas bochechas rosadas da véspera e nas mãos que seguravam a tigelinha de  barro amarelo, onde fumegava uma infusão escura e gosmenta:

– O café!

Outra longa e irritada estremeção correu pelo corpo do caburé, sacudindo-o dos pés  encravados nas chilenas ressoantes à grenha hirsuta, assanhada, como as cerdas de porco-espim  acuado, e salpicado aqui e acolá de fios brancos – violentamente.

O cabra, batendo o isqueiro e chupando grosso, emudecera.

– Mas, Martinho...

– Patrãozinho – e o sertanejo cuspiu forte para ambas as bandas da estrada – das  bochechas e beiços arregaçados num vermelhão de apodrecido da rapariga, corria visguenta e  fétida por entre uns tocos de dentes amarelos – patrãozinho – uma baba de empestado... Os  dedos da mão, não os havia...

E como inquirisse admirado, regougou noutro acesso de asco:

– Macutena, patrãozinho, macutena...

O pangaré piolhento corria agora mais apressado emparelhando-se ao meu fouveiro, num  pacatá furta-passo, pela estrada esmaecida e pulverulenta em fora, na cadência monótona,  ritmática de viageiro, como se quisesse arrancar do amo o peso esmagador daquela recordação  do passado – que fazia o caburé contorcer-se em convulsões furiosas de vômitos na cutuca –  quando, por uma noite tenebrosa d'invernada, viajava escoteiro pelas estradas ermas e  alagadiças do Caiapó Velho.

A estrela boieira ensaiava já o seu brilho lacrimejante engarupada sobre os cerros, e  longe, na ribanceira do descampado, a escaiolada e vasta pousada abria-nos os braços  hospitaleiros no meio de uma fartura de currais coalhados de gado...

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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)    

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