segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Coelho Neto: "Urbano Duarte"

URBANO DUARTE

As idéias aparecem-nos como a Verdade — nuas;  somos nós, os escritores, que as vestimos e, como cada  qual tem a sua feição própria, pode a mesma idéia, tratada  por varias penas, ser jovial como uma canção,  meditativa como um provérbio, gloriosa como um  epinício, passional como uma ode sáfica, dolente como  uma elegia, lúbrica como uma fescenina, sentenciosa  como uma máxima ou cômica como uma tabarinada.  

Tudo está no gosto do revestimento.

Vejamos, por exemplo, uma caveira que sugere, a  quem quer que a veja, a idéia da morte — ponhamo-la  sobre uma erma, á beira dum caminho bem trilhado e  façamos desfilar por ele um grupo de poetas.

Dirá o primeiro:

«Eis um espelho de bom aço. Se as mulheres o  tivessem nas suas câmaras não haveria vaidade.

Bem inspirada andou a Madalena que o tomou para seu  uso quando se fez troglodita arrependida. Este é o  espelho que a Verdade deve trazer na mão. Pois sim,  senhores — Não somos lá grandes coisas!»  Dirá outro: «Ser ou não ser, eis a questão...»

Outro: « Concha da idéia, saíste do oceano tormentoso  da vida, jazes vazia na praia deserta do nada. Dentro de ti,  porém, como dentro das conchas, há um rumor constante  que é o eco imorredouro da agitação de onde vieste.  Na concha é o estuar da vaga, em ti é o referver da idéia.  Ondas, maiores que as do pensamento, tormentas, mais  deseneadeiadas do que as da consciência, não as tem o  mar largo. Vós que passais encostai ao ouvido o crânio  tábido e ouvireis o eco da vida que por ele passou — são  os espectros dos sonhos, das ambições, das angustias, dos  gozos que assombram a ruína. Evoé! pela eternidade da  agitação!»

Outro:

— «Poste, talvez, como uma flor de aroma e os  beijos procuravam-te ansiosos, hoje, fanada e seca, jazes  no esquecimento e no abandono. Onde andarão as  abelhas que te buscavam? Que outro nectário as prende?  És como um caule seco de onde, uma a uma, todas as  pétalas caíram ».

Outro:

—«Pulvis! poeira e só. A carne levou-a o verme, o  arcabouço rolará na terra até á reversão total. Eis o que  somos. E já que o fim é tão triste, porque nos havemos   de  amofinar com a ambição e a vaidade?»

Outro:

— «Nichos vazios, que é dos olhos que rolavam  ansiosamente dentro do vosso âmbito, como leões  em jaulas apertadas? Boca, que é da vossa  umidade? que é do vosso perfume? vossa melodia? Ouvidos, que é dos vossos andarilhos que levavam ao cérebro todos os  que é da  recados...? Ah! pobre crânio, já não te abrasa a  paixão, és como uma velha lâmpada sem óleo.  Quantas vezes, trazida pela Luxuria, a insônia  hospedou-se entre os teus muros! Quantas vezes,  como em antro de lâmias, esfervilharam em ti  espectros delirantes? Foste, como cafurna orgitica,  abrigo de súcubas e todo o corpo que encimaste  sofreu agitadamente com os teus delírios. Agora  repousas, só os insetos viajam pela abobada deserta  e os ventos silvam atravessando é teu bojo vazio.  Mas se o amor viveu em ti e com ventura, foste feliz  e eu invejo-te, carcaça».

Outro: — « Não somos nada neste mundo ».

Finalmente: « Eis, fazes bem; o teu ritus é  como um recibo irônico. Durante a vida pagaste  caro o teu tributo, foi uma cilada que teus pais  armaram-te. Quem eram eles? talvez não os houvesses conhecido. Fazes bem em rir, mas como a  vida exige a hipocrisia e tu, sendo caveira, áridas  por entre os vivos, dias antes do desastre que te  levou os músculos e os outros enfeites, devias ter  ido a um  dentista para que te arranjasse essa boca...  porque, com franqueza, esses molares estão  indecentes e tu devias gastar muito algodão nas  covas que eles apresentam: não são dentes, são  verdadeiros armazéns. Com o algodão com que os  tamponavas poderia uma fabrica tecer pano para um regimento. Se é para mostrar os dentes que ris,  podes limpar a mão á parede».

Há disparates nesses comentários, pois são tais  disparates que constituem a harmonia. Homens há  que se comovem, até ás lagrimas, com a claridade  pálida da lua cheia, outros dão para o derriço e  saem afinando violões á procura de alguma dama  descuidada ou paciente que lhes ouça as loas;  outros, finalmente, dão para valentias e, ardidos, de  sobrecenho carregado, brandindo cacetes, investem  provocadoramente desafiando e, se a policia não  açode a tempo, os jornais, no dia seguinte, registram  fraturas e contusões e autos de flagrante. Ainda se  há de escrever uma monografia sabia com este  claro titulo:

Da Influencia da lua cheia sobre os espíritas  Os nossos cronistas são, em geral, contemplativos (meã culpa! meã culpa!) e vestem  todas as idéias de melancolia, torcem o mesmo riso e  descobrem em tudo um estigma de dor — poucos  são os que riem. Dir-se-á — somos um povo triste e  o cronista, que reflete a alma do povo, não pôde  andar ás gargalhadas. Não sei se somos um povo  triste, sei que somos um povo tímido.

O brasileiro é naturalmente expansivo, mas  profundamente desconfiado e a verdade da  afirmativa, que faço sem receio da contestação,  tiro-a do seguinte caso comum:

 Chega-se a uma casa e, pouco a pouco, vêm  surgindo os membros da família, todos mais ou  menos reservados, de olhos baixos, como receosos;  por fim aparece o pimpolho chupando o dedo e  trata logo de encolher-se entre os joelhos da mamã.  A conversa vai indo arrastada, por monossílabos,  com grandes pausas, até que o chefe, vendo o  embezerramento do petiz, chama-o á ordem:

— Então, que é isso? Tira o dedo da boca.

O pequeno amua e o hospede, para dizer alguma  coisa, afirma — « que o menino tem um olhar  revelador e parece muito bonzinho..» Espanto dos  pais:

— Bonzinho! isto... ahn! É porque o se  nhor não sabe. Ele é porque está fazendo cerimônias, o senhor há de ver.

Efetivamente, dali a instantes está o pequeno a  cavalgar a bengala do hospede, estão as meninas ao  piano, a dona da casa faz o histórico da vizinhança, o chefe reclama as chinelas e todos, á vontade, riem,  galram, mostram que têm sangue e que não são  mudos, muito pelo contrario, como dizia o outro.

O brasileiro é isso: «um povo que faz  cerimônias» e os cronistas sempre o apresentam  em momentos cerimoniosos, raros são os que no-lo  mostram como ele verdadeiramente é — em calças  fofas e largas chinelas, rindo de mãos nas ilhargas,  como riam os bons velhos de Brantôme e Des  Periers.

Desses raros cronistas um dos mais fieis era

Urbano Duarte, o excelente, o alegre companheiro que se finou na estação do riso.

Conversávamos uma vez, no bom e guloso  tempo do  Babélais,  aqueles opíparos e intelectuais  jantares! a propósito de crônicas, era do grupo o  torturado Pompéia, que então andava a burilar os  seus rendilhados períodos das  Canções sem metro,  quando, a propósito de estilo, alguém lembrou-se  de fazer a apologia da Fôrma. Urbano,  encarquilhando as pálpebras, sumindo, ainda mais,  os olhinhos miúdos, sorria; de repente, pondo-se de  pé, disse peremptoriamente:

— não concordo. A crônica deve ser um flagrante  da vida, e eu desafio a todos vocês a que me  apresentem um homem, seja uma besta ou um gênio,  que, na intimidade, fale essa linguagem que vocês  lhe emprestam. Eu tomo os meus burgueses nos dias  comuns, no trabalho ou na cadeira de balanço da  sala de jantar, com as calças brancas e o paletó de  alpaca ou em mangas de camisa, á fresca, em quanto  esperam o jantar, ouvindo os seus canários. Vocês só  apresentam tipos endomingados, num estilo de   sobrecasaca e cartola, com muita água de Colônia no  lenço e muita severidade nos modos. Vocês não  conhecem o homem — o homem é isso que eu  descrevo; o resto, meus amigos, arranjo. Vocês  inventaram essa historia da «tristeza do povo » e  aferram-se a ela. O brasileiro não é triste; o  brasileiro é o povo mais pândego do mundo. Querem  a prova? Sempre que eu conto uma das minhas  anedotas encontro um sujeito que me diz, sorrindo maliciosamente; «Seu  maganão, aquilo foi com o F.... hein? » Protesto  — que não, nem conheço o F... e o homem,  sempre com o risinho malicioso: «Não conhece,  hein? ora morda-me o dedo se é capaz». Isso prova  que o fato que relatei foi um reflexo da realidade.  Eu não invento — transcrevo. Tristes... tristes  somos nós ».

Efetivamente... tristes somos nós e ele era dos  nossos. Atravessou a vida a fazer rir, que ele não  ria, as suas crônicas eram verdadeiras mascaras e,  com a atroada carnavalesca, como se a Morte  quisesse, em homenagem a esse dispensador de  prazer, dar-lhe a extrema ilusão no derradeiro  momento, ele volvia os olhos úmidos para a  esposa e para os filhos, que era para esses entes que  ele, calando as dores, ria através das paginas,  incessantemente, com a regularidade de uma  máquina hilariante e, para não entristecer a meiga  companheira... talvez ainda sorrisse.

A sua própria Dor saía disfarçada e quem diria  que era um gemido de moribundo que vinha, ás  vezes, com tão ruidoso tintinabulo pelas colunas  dos jornais afora?

Bem podia ele dizer com Stecchetti:

Ben ritornato carneval gioeondo; 
Eccomi serio: ecoo repiglio il mondo,
La maschera bugiaria. 
Oa! non tradire il mio dolor segreto.
Pallido aspetto mio! Mostrati lieto,
Che Ia folia ti guarda.

Um missionário que por ali passou, demorando-se dois dias sob as palhas podres dum velho curral,  porque nenhum dos moradores, para que o santo  homem não desse pelos torpes vícios que  enegreciam as suas vidas, tão livres como as dos  animais, quis hospedá-lo ou apenas visitá-lo, saiu  aterrado daquela aldeia, mais encharcada em pecados do que a impura Sodoma e, nos campos,  sacudiu, com horror, a poeira das sandálias. A igreja cabia em ruínas e pastores, nas horas  mais abrasadas, recolhiam os seus rebanhos á  sombra fria das lajes da velha nave e ficavam  profanando o sagrado muradal com cantares de  amor, senão com o mesmo amor. O cemitério jazia  desamparado, sem muro ou sebe que o protegesse  contra os animais e não havia uma cruz em todo o  vasto terreno tomado pelas ervas bravas.

Os   sacramentos   eram   ali   desconhecidos. As crianças ficavam com os nomes que lhes davam os  pais sem que o batismo os confirmasse e  purificasse ao mesmo tempo a almazinha maculada;  não havia noticias de casamentos e, na hora  extrema, ninguém se lembrava de reclamar uma  vela e a presença de um padre para que a alma,  prestes a partir, não saísse em trevas e carregada de  pecados.

O missionário resumiu a sua impressão numa  Frase: «E uma grande pocilga». E era. Todavia,  se o santo homem tivesse seguido um trilho sinuoso  que, por entre velhas arvores, levava ao alto de um  outeirinho alegre, teria encontrado os lírios daquele  tremedal: dois velhinhos e tão puros que, até se  dizia, á boca pequena, que recebiam no seu casebre  visita de anjos e de santos.

Efetivamente, uma tarde, um velho zagal, que  recolhia com o fato de cabras trêfegas, viu, no  caminho do outeiro, um lindo moço louro, com azas  mais brancas do que as das garças, subindo  vagarosamente em direção ao casebre. Era um anjo  do Senhor e, como os velhinhos nem sequer desciam  ao mercado, logo se murmurou na aldeia que o  mesmo Deus os sustentava milagrosamente  mandando-lhes, por anjos, água pura e manjares.

Em verdade não se pode desejar vida mais santa  do que a que levavam as duas criaturas perdidas em  tão escuro marnel de crimes. Sempre juntos, ele e  ela, não desciam ao povoado para que os seus  trêmulos pés não tocassem a terra daqueles  caminhos malditos nem os seus olhos esmorecidos  vissem o rosto dum daqueles heréticos. Viviam na  moradia solitária e tão arredados da impureza da aldeia como se estivessem a mil léguas de  distancia.

Contente com eles, já por serem virtuosos e,  principalmente, porque conservavam a virtude em  tão depravado meio, quis o Senhor recompensá-los  generosamente com uma ação de grande  misericórdia. Assim, uma tarde, estavam os dois  velhinhos, como de costume, sob uma velha  mangueira, plantada e tratada por eles, onde as  cigarras e os g aturamos cantavam ao cerrar do dia,  quando um velhinho, mais velho que eles,  abordoado a um bastão florido, com uma sacola ao  flanco, apareceu-lhes, como por encanto, pedindo  agasalho, exatamente como fez Júpiter, outrora,  procurando, como peregrino, a Filemon e Baucis. A velha reconheceu prontamente o bom Deus  sob o miserável disfarce e, numa emoção que a  agitou suavemente, sorrindo com lagrimas e tão  tremula que. nem podia juntar as mãos  engelhadinhas, pôs-se a louvar o Criador, clamando  que era indigna de receber na sua miséria Aquele  que governava os mundos e premiava a justiça.

Mas o Senhor, tranquilizando-a, disse-lhe:

«Que se ela se comovia por vê-lo ali, á sombra  da velha mangueira, mais se comovia a sua  Bondade por ter, naquela terra tão envilecida, duas  criaturas sãs que lhe abrandavam a cólera  suspendendo-lhe o movimento de vingança que  mereciam gente e terra tão vis». E, aceitando a  oferta dos velhinhos, sentou-se com eles á mesa  frugal da ceia e participou, com apetite, da broa e  dum pedaço de anho que era tudo que havia no armário polire.

 Ao fim do repasto — já noite negra, posto que o  outeirinho resplandecesse porque nele estava a  própria Luz — o Senhor disse aos seus hospedes  que lhe pedissem uma graça. Os dois hesitaram,  encolhidos de vexame, e foi o mesmo Deus quem,  de novo, falou:

— Quereis tornar á mocidade? Dar-vos-ei a  mesma força e a mesma beleza que tínheis quando, na antiga ermida, em presença do cura, vos  recebestes como esposos.

O velhinho sorriu esfregando as mãos a pensar  naquela mocidade ardente e tão bem vivida! Ah!  como era bom ser moço, poder andar, correr, bailar,  subir ao monte, ter força no braço e ligeireza nas  pernas. Ah! como era bom ser moço!

Por baixo da mesa o seu joelho magro e trêmulo  tocou o joelho trêmulo da velhinha e o Senhor  esperava pacientemente com um doce sorriso na  face venerável. Então a velhinha falou:

— Senhor, o que a Vossa Divina Graça nos  oferece ó, em verdade, um presente divino, só o  mesmo Deus, como sois, poderia fazê-lo; mas se a  criaturas vis, como somos, quisésseis permitir a  sinceridade, eu vos agradeceria o que nos  ofereceis  com um não respeitoso. Ser moço é, em verdade, um  grande bem, mas não depois de haver sido velho. O que torna a vida agradável é a  esperança e que esperança podemos nós ter quando,  com a experiência de cem anos pesados, sabemos  que tudo é ilusão? Não, Senhor — não queremos  voltar á mocidade. A vida é um livro que se não  relê. Já que nos permitis a escolha, ouso pedir-  vos que nos concedais a Graça de morrermos sem ânsia, no mesmo minuto, para que um não tenha de  chorar o outro e não sofra a agonia, mesmo rápida,  da solidão e da saudade. Esta é a graça que vos  pedimos, Senhor.

E, Deus, comovido, prometeu aos velhos que  assim como desejavam se havia de cumprir. Disse e  logo um clarão iluminou o casebre deslumbrando  os velhinhos que entraram a tremer e, quando os  olhos tornaram a ver, o recinto estava como dantes  — em silencio e sobre a mesa ardia escassamente a  candeia das vigílias.

— Queres ver que foi sonho?  exclamou a velha.

— Sim, foi sonho, afirmou o velho; mas lá estava um prato, conservando ainda um pouco de  pão e um pouco de anho, prova de que um terceiro  ali havia estado e esse terceiro fora o mesmo Deus  que os visitara.

— Tu devias ter pedido a mocidade, disse  baixinho o velho; e a velha, firme na sua idéia:

— Foi melhor o que pedi.

Uma semana depois achavam-se os dois velhos  sentados sob a mangueira, gozando o fresco da tarde e ouvindo as cigarras e os gaturamos, quando uma nuvem  lhes passou pelos olhos. Ouviram uma doce musica,  sentiram um aroma gratíssimo e inclinaram-se, um sobre  o outro, conservando-se sentados e imóveis, sob a velha mangueira cheia de cigarras e de gaturamos. Logo  dois anjos desceram e tomaram as almas dos velhinhos  subindo com elas ao céu, todo estrelado e com um luar  que luzia como se se houvesse preparado no Paraíso uma
grande festa para os receber.

Os corpos lá ficaram vazios, no banco, sob a velha   mangueira, junto ao casebre do outeirinho e ali o tempo  os há de consumir sem que os da aldeia deem pela  morte  daqueles justos.

Subiam os anjos com as almas e, de repente, o que levava a da velha,!ouviu-lhe a voz doce a perguntar:

— E ele!

— Vem perto, nos braços de um querubim, descansa.

— Não é uma virgem que o vem trazendo?

— Não, é um querubim.

— Ah!

E subiam. Apesar do voo ligeiro dos anjos levaram  toda a noite a subir até que avistaram a porta esplendida  do céu, onde uma turba de serafins desfolhava  flores e  esparzia aromas.

A alma da velha, sempre preocupada, não se  aquietava entre os braços de seu condutor, indiferente  aos esplendores celestiais, só perguntando pela outra.  «Vem aí», respondia o anjo sorrindo e assim chegaram á  presença dos Tronos que guardam a entrada do Paraíso.  Um deles adiantou-se e, tomando a alma da velha,  levou-a a um grande santo que se movia entre retortas e  alambiques em um imenso laboratório.

O santo trancou-se com a alma da velhinha e, ao cabo  de uns minutos, abrindo de par em par as portas  rutilantes, declarou que havia encontrado entre as  virtudes, que eram magníficas, 55 % de ciúme.

Levantou-se uma discussão entre os anjos: um  bradando que o ciúme era um feio pecado, porque  A  base do amor deve ser a confiança recíproca,  outros afirmando que o ciúme era a mesma essência  do amor. Deus decidiu a favor da velha recebendo-a,  a sorrir, á sua direita e foi a vez de ser examinada a  alma do velho.

Não foi longa a operação e o santo, encarregado  do laboratório etliereo, abrindo as portas, declarou,  carrancudo, que havia encontrado vestígios de um  amor impuro.

A alma da velha estremeceu á direita de Deus. E  o santo continuou com precisão a expor o crime  divulgado pela análise:

« Certa noite, na primavera, no caminho do  outeiro, descia uma moçoila para a fonte, com a  bilha ao ombro, quando esta alma toda se agitou  num desejo ardente e...» As virgens coraram e,  batendo azas, fugiram espavoridas e a alma da velha  tremia á direita de Deus e soluçava:

— Ah! antes eu não viesse ao céu! Antes eu  não viesse porque conservava a ilusão única da  minha vida. A Eachel! A Eachel! Estou a vê-la,  a desavergonhada, com a bilha ao ombro, a  caminho da fonte. Antes ou não viesse ao céu.
E a alma do velho, entre os dedos do santo,  tremia, num grande medo. E os juízes declararam —  «Que aquele pecado merecia ao penas infernais ». Ia o santo soltar a alma pecadora quando a  outra, a da velha, pôs-se a gemer aflita, rojando-se  aos pés de Deus:

— Para o inferno não, Deus de misericórdia!

— Louvo a tua caridade, disse o Senhor  comovido, porque tens pena daquele que te  traiu. Não queres que pague nas chamas o seu crime?

— Ah! Senhor, não é pelas chamas, não. Pouco  se me dá o fogo que lá arde...

— Então porque é? perguntou o Senhor e os  anjos, cheios de curiosidade, cercaram a alma  chorosa da velhinha:

— Ah! Senhor, a falar verdade: é porque  sempre ouvi dizer que o inferno está cheio de  mulheres bonitas.


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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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