
O HOMEM DAS FONTES
A JUSTINO DE MONTALVÃO
Chama-se Harry Young o homem das
fontes. Vi-o a primeira vez em Granada no Paseo
de los Tristes, ao pé de uma fonte árabe já morta. É um rapaz alto, de um
loiro muito claro, maneiras simples que revelam raça, olhos de névoa calmos e
abstratos, e uma voz estranha, monocórdia, ou para dizer melhor, uma voz de
água. Nasceu em Londres. É rico. Sem família e sem lar, vive em perpétua
viagem. Encontrei-o em Roma, em Constantinopla, em Florença, e, detalhe que me
feriu intensamente, desenhando, escrevendo ou só olhando, sempre junto a uma
fonte, concentrado, como se fosse a caricatura fabulosa que o encantamento de
uma ninfa ali prendesse.
Harry Young chegou a obsidiar-me.
Nunca porém, pensei em ir falar-lhe, recorrendo ao impudor tradicional que se
tolera sempre aos que viajam.
Uma manhã, em Florença, tive quase
a impressão de que era um louco. Cedo ainda, seriam cinco horas da manhã, fui
para Piazza dela Signoria encher-me de sadismo extasiante a olhar na Loggia o
Perseu de Benevenuto. Tem, como sabem por centenas de gravuras, uma fonte
desenhada por Vasári à sombra ameada do Palazzo Vecchio. Caía uma luz
melodiosa. Harry desenhava, um caderno de apontamentos na mão fina. Um esboço
da fonte, era evidente.
Àquela hora só havia pombas no
silêncio irreal da praça. Discretamente, pus-me a olhar também a fonte. Ao
centro, o Netuno de mármore é boçal; há uma ronda de ninfas alongadas num
bronze de patine quase azul; os cavalos marinhos saltam na água e os tritões
que cercam toda a taça tem a alegria de quem vive na água, uma beatitude cínica
e animal, espirrando das máscaras de bronze por fossetas de riso, bocas ébrias,
em verve muscular, em gestos vivos. Os dorsos luziam de água esparrinhada, e de
estátua para estátua voavam pombas fazendo em roda aquele adágio de asas que à popa
dos navios, no mar alto, riscam os vôos curvos das gaivotas. Não podia saborear
aquela paz, com um desejo único a morder-me: ver o que Harry Young desenhava.
Ele fixava a fonte alguns
instantes, e antes de transcrever o que colhera, quedava ainda imóvel,
recolhido, numa aura de emoção mais do que estética, que me parecia absurda,
incompatível com um esboço num álbum de viagem. Ao lado, em frente à estátua de
Cosme de Médicis, criados sonolentos iam dispondo as mesas nas terrasses. Já
havia dois cafés abertos onde gente apressada ia beber. Harry, que continuou
alheado ainda algum tempo, foi por fim sentar-se a uma terrasse, e bebendo um
copo de leite lentamente, tinha o álbum aberto sobre a mesa dando os últimos
retoques ao desenho.
Quem era esta criatura que só o
encanto das fontes interessava, e que em Florença, como em Granada, como em Córdoba,
nunca vi num museu ou numa igreja, como se só o granito ou o mármore das fontes
tivessem para os seus olhos estesia? Que sensibilidade aberrante, que destino
fadara para o convívio enigmático, para segredo embalador das fontes, este
rapaz, que não tinha ainda trinta anos, era decerto rico, bem nascido, e nem
via mulheres nem paisagens, absorto neste claro misticismo?
Sentei-me numa mesa perto dele e
pude ver à vontade o seu desenho. Nem um traço da fonte nessa página onde bem
claro, escrito a grandes letras, sob um desenho singular de mulher nua, eu li:
Fonte Adamanti, em Florença. O quê?! A fonte concebida por Vasári era para
Harry Young aquele corpo?... E buscando a relação possível com essa fonte
mítica e ingênua, onde em torno a um Netuno gigantesco farandolam ninfas e
tritões, ou fosse sugestão da simpatia que desde que vira Harry eu senti, ou
porque de fato ela fosse um claro símbolo, pareceu-me que essa forma musical, esse
corpo de oceanide surpresa esperando o tritão que a possuiria, era a síntese
poética flagrante da fonte que Vasári imaginou. Corria o risco de me tornar
suspeito na ânsia de ver melhor, de analisar. Harry ergueu-se. Vi-o seguir pela
galeria degli Uffizii e desaparecer ao fundo, lentamente, para esse cenário
onde se evoca Dante, feito de lindas pontes habitadas, da escultura nobre das
colinas e das águas do Arno romanescas.
Depois voltei para Roma, onde
encontrara Harry meses antes.
Muitas vezes me lembrava dele, eu
que também adoro as fontes, com uma simpatia persistente, cúmplice. Por esse
tempo ia eu às noites degustar o rascante trágico da solidão na Piazza del
Popolo, estirado no largo rebordo de alabastro da fonte, fronteira ao Pincio,
impregnando-me dessa alma sem memória, dessa crônica augusta de silêncio, que é
em Roma a atmosfera de magia das praças sem ninguém, com vozes de água. Ficava
assim horas numa tristeza quase sensual, com uma espécie de delírio de
grandezas que me permitia dialogar com Roma, acalmar a minha incerteza de
falhado na beleza sobrenatural da grande morta, e fundir com o dela o meu
destino como o de um herói num poema antigo.
Para sentir esta luxúria psíquica
é preciso ter vivido muito ou ter a velhice precoce dos artistas, que em plena
força e plena mocidade, agarrando pelos cabelos a alegria, entristecem ao
beijar-lhe os olhos. Era aquela em Roma a minha hora mais silenciosa.
Ao centro da praça os quatro
leões golfavam água, guardando o obelisco egípcio numa vigília de esfinges,
sempiterna. Em Roma, à noite, vivem-se horas de convento. É a cidade suprema para
viver com um sonho ou com uma idéia, velada por formas milenárias que recebem
exames de consciência. Notei um vulto esguio, à quarta ou quinta noite, sentado
aos pés do obelisco, num degrau. Estava na sombra e, nem eu sei porquê, pensei
em Harry. Dentro em pouco, na embriaguez dessa auto-sugestão, nem já admitia
dúvidas: era Harry, era o homem das fontes que ali estava. E como uma raiz
fende um granito, brotou da minha solidão de quatro meses, viajando sem sofrer
um só convívio, um desejo furioso de falar-lhe.
O lirismo imemorial desse
silêncio levava-me para aquela criatura, que uma espécie de loucura poética
instalara de vez no meu espírito, como para um ser afim, um quase irmão.
Pareceu-me que ele mesmo se
movera, olhara na minha direção, como esperando. E nessa hipertensão de nervos
que dá aos imaginativos o silêncio, o convívio calado e fascinante com as
criaturas brancas dos museus, o meu desejo de falar com Harry atingiu a
plenitude, exasperou-se. Levantei-me. Sem me atrever a caminhar para ele,
fui-me timidamente aproximando: dei a volta ao obelisco devagar e parei com ar
distraído junto de Harry, como se olhasse um dos leões golfando água. Fiquei
assim nervosamente alguns segundos.
Quando por fim o olhei, vi nessa
máscara glabra de tritão um desejo de me falar igual ao meu. Não posso repetir
o que lhe disse, as primeiras palavras que trocamos. Aludimos aos nossos
múltiplos encontros, em Espanha, na Itália, na Turquia, por uma coincidência
bem estranha, sempre junto de fontes...
Ninguém passava. Ouvia-se o vento
a arrastar no Pincio folhas secas. Lembrei-lhe a manhã em Florença, na Piazza
dela Signoria, o desenho da fonte de Vasári que eu vira na terrasse por trás dele.
Harry calava-se surpreendido. Perguntei-lhe se viajava como artista, para
pintar.
—Não sou pintor. Gosto muito das
fontes, perdidamente. São o grande interesse da minha vida...
Disse-me então o seu amor às
fontes, baixando um pouco a voz, quase em segredo.
Era órfão. Nunca quis conviver
com os seus parentes, onde, por razões que depois soube, só encontrou um
acolhimento frio, como se fosse um estranho, sem ternura.
Tinha uns nervos doentios que o
isolavam. Dos seus tempos de colégio não guardava saudades mas só ódios, à
grosseria vulgar dos camaradas, à promiscuidade forçada e torturante para uma
sensibilidade como a sua. Logo que chegou à maioridade, rico e só, foi visitar
nos arredores de Londres o castelo em que seus pais viveram. Correu o parque,
as salas, as estufas. Viu ainda o seu berço, os seus brinquedos, onde um pó sem
saudade ia caindo, como sobre coisas velhas num museu.
Passou no quarto de sua mãe
algumas horas... Sentiu uma tristeza imensa em que tudo lhe parecia hostil: os
móveis, o ar, um cheiro a morte, até os olhos fitos dos retratos... O seu
primeiro desejo de homem livre fora essa visita com que tanta vez sonhara, e
saía de lá desamparado, com uma espécie de desespero inerte que toda a casa lhe
contagiara: a velhice das coisas sem beleza onde viveu alguém que nos foi
querido e que perdem com a cor toda a memória. Esses muros sem alma
angustiavam-no. Já atravessava o parque para sair quando ouviu a chamá-lo uma
voz de água. Era ali perto e pareceu-lhe bem distante, vinda da sua infância já
tão longe. Enfim alguém amigo, acolhedor! Foi para ela como iria para sua mãe
ressuscitada, e ficou a ouvi-la até à noite. Abrira-a o jardineiro enquanto ele
percorria as salas. Harry contou-me:
—Tive a visão de um lar naquele
instante. Aquela pobre fonte sem beleza consolou-me como uma mãe, beijou-me os
olhos.
Acarinhou-me como a irmã... que
nunca tive, como a noiva que decerto não terei...
A sua água encheu-me de saudades.
E ao pensar nas salas que deixara, tudo me comoveu, ali, a ouvi-la: os olhos
dos retratos já me olhavam... os tapetes, os móveis, as paredes, tinham linguagem
agora: compreendiam-me. As janelas á névoa, eram olhos tão rasos como os meus.
E como pousavam pássaros na pedra, eu mesmo fui buscar pão para lhes dar,
espalhei muitas migalhas pela fonte... Senti a vida toda no meu peito. Vem
dessa hora o meu amor às fontes.
Harry erguera-se. Seguíamos pelo
Corso lentamente. Pedi-lhe então que me mostrasse os seus desenhos, os símbolos
de fontes que criara.
—Só se quiser vir comigo ao meu
hotel.
Já tenho as malas feitas para
partir. Vou para Veneza. Veneza é um hospital de águas... Faz-me triste.
O quarto de Harry no hotel de Londres,
Piazza d'Espagnia, tinha entre duas janelas um piano. Estavam abertas à noite,
que em Roma parece mais arqueada, como para receber melhor as confidências. A
torre della Trinitá del Monte deu onze horas. Naquela paz não éramos só dois,
porque subia da praça, propiciando, a voz da fonte de Bernini, la Borcáccia, a
escoar-se sem jatos, brandamente. Harry acendeu as serpentinas sobre a mesa. Vi
então dois álbuns grandes de viagem, e alguns pequenos mais esguios.
Começamos a folhear num dos
primeiros a imaginosa notação das fontes árabes: de Córdoba, de Granada la vieja, a terra andaluza de mors-amor. A fonte morta do Paseo de los
Tristes, onde pela primeira vez eu vira Harry, era um cadáver de almeia; e
havia ainda outra de Granada, que eu toquei no jardim de Lindaraja, onde a
princesa agarena vive ainda com uma corte calada de ciprestes...
O desenho de Harry dava-me dela
uma visão patética. Evocava-a nova, musical, nesse jardim interior da
Alhambra—jaula feérica da luxúria árabe, onde os corpos morenos das almeias enlanguesciam
nos mármores dos pátios, e nas salas de jóias lapidadas dormiam com os perfumes
dos jardins as grandes sestas tórridas, de cópula...
Desenhara o mirador de Lindaraja,
com as suas gelosias marchetadas que ela entreabria um pouco, debruçando-se,
como para ouvir melhor a voz da fonte. E a fonte falava de desejo, porque ela
tinha nos olhos, nos cabelos, na boca a intumescer, nas linhas sôfregas, a
expressão de uma corola ao cair do pólen... Dos desenhos que vi das fontes
turcas, um entre todos me maravilhou: a do sultão Ahmed, em Stambul, no coração
da praça do Serralho. É um lindo harém de grades redoiradas, arabescado de ouro
e lápis-lazuli, de que a água é sultana única.
Harry representara Schehèrezade,
a noveleira das Mil noites e uma noite. Essa era bem um símbolo de fonte, que
durante mil noites e uma noite, a contar histórias sobre histórias, adormeceu o
califa que a matava se a sua voz lhe não fechasse os olhos... Foi um destino de
fonte Schehèrezade.
Havia fontes de parques e de
claustros: a primeira era uma Belle au bois dormant que um pavão heráldico
velava; e entre as imagens místicas que vi, apenas lembro uma carmelitana,
lendo sob uma ogiva, cor de cera, decerto Santa Theresa, Las moradas... A
última, porém, a mais estranha, de não sei que vila romana ao abandono, era uma
grande esfinge tumular com asas mortuárias de falena. Recordo ainda páginas
isoladas: a fonte dos cavalos marinhos da vila Borghése era um Pégaso de crinas
alagadas, uma cabeça de cavalo grego, desses que nos versos de Homero viviam
irmãmente com os heróis. E não sei que fonte mitológica—uma estátua de Juno,
sereníssima, a cabeça nimbada de andorinhas.
O outro álbum era de
esboços—desenhos e maquettes,—toda
uma arquitetura fragmentária para um palácio quimérico da água, num poético
parque, inverossímil como o de Poe no Domínio de Arnheim.
A maior parte dos desenhos eram
vagos, dizendo a embriogenia desse templo que Harry erguia à Água Padroeira,
com beatitudes de arquiteto místico, em linhas-versículos de sonho.
Perguntei-lhe se tencionava
construí-lo. Harry sorriu.
—Construí-lo e habitá-lo... Com
Miss Fountain... se a encontrar um dia.
O desenho mais minucioso era a
fachada, feita de duas arquiteturas sobrepostas: uma estável, de mármores
rosados; outra móvel, música, espumante, de milhares de tranças de água de
essas fontes, cavadas em motivos decorais no sonoro frontão religioso que
viveria um dia tão beijado como as asas do mar no temporal.
É impossível descrever-lhe as
linhas, como é impossível descrever a Alhambra. A fachada de mármore era
subsidiária da segunda, a real, a litúrgica, a aquática; era o seu esqueleto quase
oculto, e por milhares de ranhuras invisíveis, de declives matematicamente
calculados, por bocas inflectindo em curvas gráceis, por bilhões de crivos
capilares donde cairiam chorões de prata fluida, destinada a dar vazão a essa
segunda, arquitetura sinfônica, hino vivo, que o meu tritão exilado ia criar.
O mármore aparecia, sob a trama
arquitetural da água golfante, como através de rendas de Burano um colo ou uma
nuca de mulher, e intumescia às vezes como um seio no bojo de uma ânfora
sveltíssima ou na escultura de uma planta de água.
Oh! que feliz a carne desse
mármore, escrava de uma fluida arquitetura, cantada e beijada todo o sempre! Jatos
cruzavam-se como na argentaria solar de uma panóplia, caíam numa taça canelada,
donde escorriam molemente, em lágrimas, para renascer vivendo noutros sulcos,
donde espirravam como flores se esfolham, em graças platerescas, em sorrisos.
Contra o sol, as janelas, os
balcões, tinham estores de longos fios de água, tamisando a luz para o interior
em irisações fantásticas de nave. Mas, como Harry me fez logo notar, o seu
projeto, perfeitamente realizável, era um ensaio de arquitetura musical. A eurritmia
dessas linhas de água, tantas volutas líquidas que eu via no amoroso desenho daquele
álbum, não tinham só um fim arquitetônico, antes eram a consequência imediata,
o instrumento de beleza necessário, para a ópera da Água revelada por um
arquiteto-músico de gênio. Mostrou-me então a partitura do palácio. Sentou-se
ao piano e tocou-me alguns motivos.
Como toda a gente no hotel
dormia, executava em surdina, emocionado. Primeiro o leit-motiv da entrada, cantado no peristilo por três fontes, com
três taças de prata cada uma. Era a ogiva elegantíssima da entrada (duas curvas
angulares de água jorrante em conchas de alabastro quase ocultas) que
acompanhava as três vozes argentinas. Harry chamava-lhe: o motivo de saudação.
Depois tocou-me a sinfonia da fachada.
E foi então que ouvi a alma transcendente desse tristão-poeta desterrado! E
Harry dizia, crispando as mãos numa impotência de nervoso, que era impossível
mimar sobre um piano a fluidez dionisíaca das frases. Os graves e os agudos
conseguiam-se por diferenças de calibres, indo de uma tenuidade capilar até aos
cilindros de maior diâmetro, às bocas, divertículos, ampolas, com recôncavos e
inflexões previstas, num duplo intuito ornamental e acústico.
A gama das ressonâncias era
imensa, indo dos acordes dos mármores e alabastros até aos timbres dos metais
mais ricos, dos bronzes, pratas foscas, claros ouros, com espessuras várias
nuançando, embutidos nos mármores da fachada, enriquecida assim com cores de
jóia e os tons sobrenaturais de um órgão de água. Oh! essa sinfonia! Reouvi-la
e, meu Deus! prazer supremo, ouvi-la e vê-la, se um dia o templo da Água fosse
vida!
Três melodias fugadas corriam a
fachada sem cessar. A que vibrava ao centro tinha timbres mais finos e mais
altos, os jatos erguiam-se mais, implorativos, antes de recaírem em vertigem,
nos dois focos de ressonância decoral. Era uma prece indefinida e dava ao
templo como uma aspiração de agulhas góticas, a expressão decantada, musical,
que tem as mãos erguidas das Ogivas. Harry chamava-lhe: a ânsia de ser nuvem.
Os outros dois, visualmente,
fundiam-se em sinuosidades expressivas, em caprichos de linhas reticentes, e
fiando a mesma clara rede, eram, musicalmente, bem diversos. Harry
chamava-lhes: a alegria de morrer sorrindo: a saudade dos rios, das nascentes.
E os três deliam-se numa polifonia liquescente em que a ânsia de ser nuvem
tinha o patético de umas mãos erguidas; a alegria de morrer sorrindo lembrava a
vida e morte das espumas; e a saudade dos rios, das nascentes, nas conchas e
recôncavos de mármore revestidos dos bronzes mais espessos, dizia em acordes quase
cavos o desespero da água outrora livre, domada e orquestrada sabiamente: a
nostalgia do coração das rochas vivas, dos açudes, dos campos cultivados que
ela regava a chalrar nos sulcos largos.
Nos três lados restantes, a
decoração musical era mais simples: baladas de ecos sem memória instilando um
esquecimento de magia. Inútil descrevê-las: impossível. Ante o imprevisto desta
arquitetura, Harry compreendendo o meu espanto, mostrou-me, em cadernos
atulhados, a notação musical minuciosa, em que as vozes de milhares de fontes
tinham sido por ele copiadas, e outras de ensaios que realizara até poder
compor a partitura desse palácio feérico da Água.
O seu esforço agora, a sua
obsessão de cada instante, era, estudando a hidráulica e a acústica, chegar a
harmonizar a arquitetura, que lhe parecia pouco bela ainda no mármore, com a
beleza musical e plástica da arquitetura líquida exterior. Trabalhava com
febre, dia e noite.
Mostrou-me ainda detalhes
interiores. A Galeria da Meditação tinha vitrais historiando os mitos da Água:
ao largo da laguna veneziana, o casamento do Doge com o Adriático na galera de
sonho o Bucentauro; Ofélia louca, o cabelo como um chorão de fios de ouro,
apartando com mãos de prata fosca os canaviais orando à beira-rio: sereias
penteando-se ao luar com medusas nos seios gotejantes...
No chão de pórfiro, um tapete
esmaecido de reflexos. E nas paredes nuas, como se pendurasse as telas de algum
mestre, Harry cavara duas fontes pequeninas, num tingling lacrimal, beijante, clepsidras a viver fora do tempo...
Ali iria meditar e ler.
Era evidente porém que o seu
palácio só podia existir no isolamento.
Disse-me então como teria de
murá-lo, defendendo-o do vento, concentrando-o. Além das grades balizando o
parque, cinco muros de árvores concêntricas, por ordem de alturas decrescente:
a grisalha colossal dos eucaliptos, o veludo dos cedros, choupos góticos,
ciprestes tutelares, e em vagas meigas, as cabeleiras soltas dos chorões... E
seria num vale agasalhado.
Harry empalidecia de emoção.
Detestava viajar, o convívio forçado dos expressos, a promiscuidade dos hotéis,
dos restaurantes. Só por as fontes se fizera vagabundo, para as ver, para as ouvir
assimilando-as, e poder executar um dia o seu palácio—síntese de todas.
O entusiasmo de Harry
contagiou-me. É possível que amanhã não seja assim, que deste plano de
arquitetura musical que antevejo e anteouço emocionado, no contágio febril que
me vem de Harry, me fique a idéia de um projeto fruste, de uma alucinação de
hiperacústico, com uma forma de loucura poética só como documento,
interessante.
O templo da Água é para a vida deste
sensitivo, sob uma forma íntima e discreta, a minúscula visão quase infantil, a
criancice lírica encantada em que este poeta semi-louco e ingênuo tenta
exprimir em linguagem de arte, com a arquitetura e a música por meios, tudo
quanto na terra deslumbrou a sua alma de tritão éxul.
Se amanhã analisar este projeto
longe do seu contato perturbante, talvez eu reconheça a inanidade de todo o seu
amorosíssimo trabalho, mas sempre com emoção hei de admirá-lo, porque teve uma
paixão e se lhe entrega, sem nenhuma restrição, de todo o corpo, e arde nessa
febre dia a dia, abandonando tudo, belo e rico, por uma vida nômade, de acaso,
que o fará morrer ao desamparo no hotel de alguma terra onde haja fontes, ainda
fiel a essa visão de sempre, sorrindo ao seu palácio em cristais múrmuros...
O palácio da Água!... «Construí-lo
e habitá-lo com miss Fountain se a encontrar um dia...» Eu cuido ver essa
beleza de água tal como vive nas pupilas de Harry. Tem uma voz de água, os
olhos de água, uma alma de água, clara, imperturbada, e um desejo, um
sensualismo de água, envolvente, fluido, esquecedor, como um nirvana de água
inesgotável.
Sem o fermento de nevrose que o
desvaira, com faculdades criadoras coordenadas, Harry seria talvez um grande
músico, um encantador, um místico dos sons, como fragmentariamente o revelaram
as estranhas composições que agora ouvi. Ou, quem sabe! um arquiteto novo,
musical pela assunção das linhas, sem recorrer, vesânico, quimérico, às
impossíveis sinfonias da água onde os seus olhos pálidos, de névoa, cuidaram
descobrir todo o destino.
Ao ouvir-lhe a voz meiga,
monocórdia, já começo aqui mesmo a duvidar, e penso no que seria o desespero, a
irremissível catástrofe deste homem, sem família, sem noiva, sem amigos,
condenado a um absoluto isolamento por uma sensibilidade hiperaguda, se viesse
um dia a convencer-se de que era uma loucura essa quimera onde fechou o futuro
a sete chaves.
É certo, é natural que isso
suceda. Que sabe ele de hidráulica, de acústica? Nem sequer tem uma educação
profissional, e era forçoso, para admitir como exequível esse plano, que ele fosse
um arquiteto extraordinário, um músico revelador de novos meios e um engenheiro
único, de gênio.
E assim mesmo, pois que o drama
musical de Wagner é, na sua beleza de vertigem, a mais vitoriosa das derrotas,
condenando pela voz desse homem-deus tentativas quaisquer de fusão de artes,
não era mais que certa, irrevocável, a falência total do sonho de Harry?
Esse supremo aro de unidade,
fervorosa obsessão de todo o artista, é um prodígio interior, não se
exterioriza, e só com uma genialidade adivinhante, se realiza por um meio único
(literatura, música, pintura) a obra-prima contendo em potencial, englobando em
sugestões latentes, domínios que pareciam de outras artes.
Se ao menos pudesse conviver com ele
e canalizar tão belas qualidades para qualquer coisa de viável, de fecundo!
Queria evitar que a sua vida se partisse como uma lufada de vento quebraria
aquela arquitetura em pratas de água, como um sistema arterial de sonho. Mas é
esta a primeira noite que falamos e é decerto a última também.
E depois, como poderia desviá-lo,
por que paixão substituir esta paixão, este culto das fontes religioso?...
Lembrei-me então do mar, todo o
meu culto. E voltando à sinfonia da fachada, comecei a dizer que um dos
motivos—a alegria de morrer sorrindo—me fizera, ali na paz de Roma, uma saudade
imensa do meu mar. Harry fixou-me. Parecia constrangido.
—Gosta muito do mar, não é
verdade?
Harry calava-se, interdito. Senti
então entrar pelas janelas, como uma onda de silêncio que arrolasse, a paz de
Roma prenhe de memórias... A fonte de Bernini ouviu-se mais: dir-se-hia uma voz
de ama milenária a acalentar fantasmas com terror...
Ao ver Harry perplexo, hesitante,
arrependia-me da pergunta que lhe fiz, mas ele viu com certeza nos meus olhos a
minha curiosidade, a minha ânsia. A sobre-excitação daquele instante, até o
fato de eu ser quase um estranho, a quem se faz mais facilmente confidências do
que mesmo a um amigo ou a um conhecido, forçaram-no a falar, violentaram-no.
Respondeu-me com agitação de um
modo brusco:
—O mar?!... Não posso suportá-lo,
odeio-o, porque foi ele que perdeu os meus... Compreendo-lhe a beleza, que é
divina, mas não o posso ver, aterra-me, detesto-o...
Ainda hesitou. Depois, sem
interrupção, vivendo as frases:
—Meu pai, que era um homem do
povo, viveu doze anos com ele e adorava-o. Era piloto. Viajava para o Norte quase
sempre. Filho de marinheiros, tinha nas veias o amor do mar. Foi de volta da
Islândia, a bordo do Baltic, que pela primeira vez viu minha mãe. Teria ela
então dezessete anos.
Meu pai, ruivo e forte, tinha uma
beleza viril, impressionante. Ela, já então órfã, viajava com meu tio, um velho
estranho, que só as viagens por mar interessavam. Era bela (tirou uma
fotografia da carteira) imensamente bela, não é verdade?
Tinha uma índole exaltada,
romanesca, que o hábito de realizar todos os caprichos levou a um despotismo
singular, de perversão nervosa, de histeria, e ao menor obstáculo, com acessos
de choro e grandes febres. Meu tio era o tutor, e longe de a reprimir,
estimulava-a mais, lisonjeando-a, com uma adoração de esplenético alcoólico por
aquela andorinha semi-louca. Mesmo a bordo, quando começou a amar meu pai, ela
ia fazer-lhe confidências, contar-lhe os sobressaltos dos seus nervos, e ele
ouvia-a com uma indulgência de ternura e talvez mesmo com uma ponta de sadismo.
Mas não quero aborrecê-lo com detalhes.
Contra a vontade de todos, apenas
ajudados por meu tio, cujo spleen se
comprazia neste drama, os dois casaram, depois de uma corte romanesca que
alucinara de paixão meu pai. Minha mãe teve uma exigência única, mas que era
para ele a mais cruel: abandonar a vida de bordo para sempre. Estava tão doido,
que a aceitou sem compreender, pálido como se lhe arrancassem toda a alma...
Na véspera do casamento, foi a
bordo do Baltic despedir-se. Abraçou os companheiros um a um, e andou horas a
bordo, como um náufrago, como um cão sem dono, os olhos rasos, a dizer adeus ao
seu navio. Toda essa noite passou-a a errar no porto. Ninguém diria que aquele
vagabundo tinha uma noiva aristocrata, bela e rica, e ia casar já na manhã seguinte.
A caminho da igreja, sentia uma
alegria lúgubre, uma felicidade exasperada, como um travo de remorso do mar
longe...
Depois veio a vertigem. Durante
dois anos, esqueceu o mar, esqueceu tudo nos olhos verdes de minha mãe como num
álcool. Viviam um do outro, sem convívio, num castelo dos arredores de Londres,
que meu tio, ainda em vida, lhes doou. Havia no amor dele a minha mãe devoções
de plebeu por um ser de raça, e o sensualismo de um marinheiro, moço e forte,
com longos períodos de abstinência no mar largo, por um corpo de pétala,
serpentino, enlaçando com braços e perfumes...
No amor de minha mãe havia
bastante de perversão histérica. Sabia como ele evitava falar do mar com uma
espécie de pudor religioso. Um dia mesmo ele pediu-lhe de joelhos que não lhe
lembrasse a promessa que fizera, que não falasse do mar diante dele. E a cada
instante, em horas íntimas, quando passeavam no parque, nas estufas, nas
grandes noites de invernia e chuva, ela aludia em frases reticentes onde
adejava o espectro do mar longe. Tinha a volúpia de o martirizar. E quando o
via bem amarfanhado, caído como uma coisa ao desamparo, para cima de um estofo,
a mascar raivas, erguia-se mais linda que um tanagra e ia beijar-lhe os olhos,
dar-lhe a boca, endoidecê-lo de amor e de luxúria.
E viviam assim meses e meses. Nem
uma visita. Ninguém. Raro saíam. A vida mundana não interessava minha mãe.
Tinha-a vivido febrilmente e esgotou-a com uma precocidade de nervosa, que tudo
interessa e aborrece em pouco tempo. Depois, ainda por orgulho. Tendo feito um
casamento desigual, não queria humilhar meu pai nem humilhar-se.
Havia nesta vida de desejo de
dois seres tão diferentes e isolados qualquer coisa de feroz, de criminoso.
Dois instintos presos por amor, na mesma jaula de ouro, dia e noite...
Enervavam-se um ao outro. Enlouqueciam-se.
Tenho em Londres uma fotografia
de minha mãe por esse tempo. Emagrecera. Lembrava um ser patético de
Shakespeare. O seu temperamento de histérica requintava, em perversões subtis, quase
em loucuras. Torturava meu pai continuamente, dando-lhe a visão do mar a cada
instante, por sugestões que iam atormentá-lo, evitando contudo falar dele, com
uma hipocrisia que era mais cruel do que seria uma alusão bem clara. Nas salas
havia paisagens de mar por toda a parte... E por cima das mesas, dos sofás,
como uma obsessão de crime, sempre e sempre, livros, romances e gravuras, com
narrações de mar, sempre com o mar...
Até as músicas que tocava ao
piano. Dizia-lhe: anda «ouvir como isto é lindo!» E ele encostado ao piano,
junto dela, via os Lieder de Schubert já abertos numa página marcada. E lia: O
mar!...
Depois que eu nasci, a nevrose de
minha mãe, longe de se acalmar na maternidade, exasperou-se. Os dias para os
dois eram enormes. Passavam horas junto do meu berço, inventando-me encantos, a
adorar-me. E como me dizia a velha Jeny, por quem eu soube tudo o que lhe
conto, dir-se-ia, naquela solidão envenenada, que cada vez se desejavam mais,
se bebiam com olhos mais sedentos, com um amor que era uma espécie de ódio.
Tudo isto passava-se sem gestos,
sem levantarem a voz uma só vez.
A virilidade impulsiva de meu pai
caía dominada ao ouvir-lhe o andar. O ruge-ruge dos vestidos dela fazia-lhe um
terror voluptuoso. Estirava-se aos pés dela muito tempo a beijar-lhe os sapatos,
marasmado...
Os criados achavam-nos estranhos,
cada vez mais pálidos, mais magros. Eles mesmos pressentiam—no silêncio augural
daquela casa onde os viam enlaçados, de olhos loucos—qualquer coisa de trágico,
de mau...
Meu pai, que a bordo fora sempre
sóbrio, bebia agora imenso, embebedava-se. Depois, com a idéia do mar cravada
nele, ia esmoer essa obsessão, calado. Viam-no às vezes falar só, baixinho,
escondido nas salas afastadas, dizendo por entre dentes, sufocado, coisas de
bordo, vozes de comando, com as mãos em porta-voz, olhando o tecto, como se
fitasse os mastros, o velame...
Se alguém o via, disfarçava, com
uma expressão de terror quase idiota. Ia endoidecendo pouco a pouco.
Minha mãe sabia tudo, tudo. A
pobre Jeny, sobressaltada, ia contar-lhe; pedia-lhes que se distraíssem,
viajassem, que fizesse um esforço para o salvar. Ela, porém, só tinha
curiosidade para saber se meu pai bebia muito, se falava só, o que dizia...
Ás vezes vinham cartas dos
camaradas, dos portos em que o Baltic tocava, falando-lhe de bordo com
saudades. Ele lia-as e relia-as muitas vezes. Trazia-as sempre consigo,
decorava-as. Mas logo que minha mãe aparecia, mudava de figura, era já outro. O
olhar babava adoração. E se um instante se abandonava nos seus braços, pegava
nela ao colo como um doido, levava-a para a alcova aos tropeções, sem se
importar com os criados, com ninguém.
Afinal minha mãe gostava disto.
Era ela que o enlouquecia pouco a pouco. Cada vez mais, sem falar dele, a
propósito das coisas mais triviais, aludia ao mar, com pausas bruscas, em que
os ouvidos dele, alucinados, ouviam o rumor, a voz do largo...
Evocado a todos os pretextos, por
essa linda torcionária histérica, ele acabou por ser uma presença: o Espírito
do Mar viveu com eles!... Eram três agora no castelo. Passava o inverno com eles,
a seu lado. Vivia nas marinhas das paredes, nos livros e no vento, nos
ruídos... E mais e melhor: na alma deles...
Sós, à noite, a ouvir o vento,
olhavam-se... E em ambas as bocas, bem cerradas, cada um lia: «Ouves o mar? É ele...»
E depois de suspensos um instante para o sentirem correr-lhes a medula,
afogavam-se nos braços um do outro, com uma fúria sensual desesperada. Foi
minha mãe que provocou tudo isto, e acabou por se enredar também, por acreditar
como ele, contagiada. Numa cama de amor, dois amorosos, partilham as loucuras
como os corpos...
O Espírito do Mar estava com eles.
Ainda lhe não tinham pronunciado o nome, mas calavam-se muitas vezes para
ouvi-lo, conversavam sobre ele por olhares...
Uma noite de inverno—ia a fazer
três anos que casaram—recebeu do Norte um telegrama.
Era dum camarada íntimo de bordo.
Toda a tripulação o abraçava; mandavam-lhe do Baltic saudades... Pareceu-lhe
então que o seu navio, o seu pano que tanta vez ferrara, vinha naquela noite de
Janeiro, dizer-lhe o ultimo adeus da vida a bordo, das grandes rotas pelos
mares de névoa, das veladas na ponte a todo o tempo, dos sonos bons depois no
seu beliche, pequenino e estreito como um berço... Rolavam-lhe as lagrimas dos
olhos.
A Jeny, que andava inquieta e os
vigiava, muita vez me contou essa noite ultima.
Chovia imenso. Ela mesma lhes
serviu o chá. Meu pai, como de costume, bebeu gin. Mas nessa noite foi brutal o
que bebeu. Minha mãe, com uns olhos de aura histérica, dava-lhe as mãos a beijar,
encorajava-o...
Já tarde, ergueram-se. Jeny foi
ajudar a despir-se minha mãe. Ele seguiu devagar pelo corredor e abriu a janela
toda à noite negra... Ficou assim algum tempo a olhar o vago, com a cabeça nua,
à chuva e ao vento...
Depois, bruscamente, foi para quarto. Com um tremor de alcoólico nas mãos, foi a um armário de que nunca se
servia, e começou a tirar roupas de bordo, atiradas há três anos para ali como
coisas inúteis para sempre. Pôs-se então a vesti-las febrilmente: japona de
oleado, botas altas, na cabeça o sueste... Como a bordo. Viu-se ao espelho. E
ia a sair, quando voltou para trás. Qualquer coisa lhe faltava. Procurou no
armário, procurou... Era a faca de bordo, numa bainha de couro já puído. Pô-la
â cinta e partiu com um andar mais firme, resoluto, como se a bordo, fosse
fazer um quarto em noite má.
Outra vez seguiu pelo corredor,
até ao quarto de minha mãe, que o esperava. Sem bater, entrou: parou a olha-la.
Tinha os cabelos desfeitos, muito branca, num robe-de-chambre que abriu ao
vê-lo entrar. E com o colo nu perdeu-se a rir...
«Vais para o mar, meu amor?
Deixas-me só?...»
Para o mar! Para o mar!... Pela
primeira vez há já três anos, espantado de se ouvir, da sua voz, repetia o nome
sortilégio, supremo: «Para o mar!» com uma inflexão pueril, quase idiota.
A lenha crepitava no fogão.
Ouvia-se chover cada vez mais.
—«Estás vestido para bordo...
Estás já pronto...»
De súbito, ela viu-o demudar-se.
Com uma inflexão rouca, de bêbedo, tornou; «Está mau... está mau... Está um
temporal desfeito. Como querias tu que eu me vestisse?» Ela sentiu terror e
aproximou-se. «Ouves a chuva?» dizia ele. «Ouves a noite?... Ouves?... Ih! Ih!
Que vento! Que maldito!...» Num lindo gesto meteu-se-lhe nos braços, colando-se
contra ele, abandonando-se. O robe-de-chambre descaía-lhe nos ombros. «O pano
incha, o pano incha... Ferrar pano! gritou com voz de comando: Ferrar
pano!»—Tomou-lhe o corpo nos braços enovelado. E Jeny, que ao ouvir-lhe a voz
correra, ouviu ainda aterrada; «Não aguenta o pano! Cortar cabos!...» Tirou a
faca de bordo da cintura, prendeu a bainha nos dentes para arrancar, e
cravou-lha no colo até à raiz. Era curva. Dir-se-ia que tinha a inflexão dos
seios dela.
Harry contou-me ainda o processo,
o julgamento, e como ele no tribunal acusou o Mar... A opinião dos médicos
legistas, foi que ele estava doido irresponsável. Apesar disso, porém, foi
enforcado. A opinião pública, os jornais, eram contra ele.
Harry estava lívido.
—Compreende agora porque odeio o
mar.
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Nota:
Antônio Patrício: "Serão Inquieto" (1910)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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