sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "O Duelo dos Farrapos"

O DUELO DOS FARRAPOS 

Já  um  ror  de  vezes  tenho  dito  —  e  provo  —  que  fui  ordenança  do  meu  general  Bento Gonçalves.

Este caso que vou contar pegou o começo no fim  de 42, no Alegrete e foi  acabar num 27 de fevereiro, daí dois anos, nas pontas do Sarandi, pras bandas e já pertinho de Santana.

Foi assim. Tenho que contar pelo miúdo, pra se entender bem. Em agosto de 42, o general, que era  o  presidente  da  República  Rio-Grandense  —  vancê  desculpe…  estou  velho,  mas  inté  hoje, quando  falo  na  República  dos  Farrapos,  tiro  o  meu  chapéu!...  —  o  general  fez  um  papel,  que chamavam-lhe — decreto — mandando ordens pr’uma eleição grande, para deputados; estes tais é que iam combinar as leis novas e cuidar de outras cousas que andavam meio à matroca, por causa da guerra.

Em setembro houve a eleição; em outubro já se sabia quem eram os macotas votados, que eram quase todos os torenas que andavam na coxilha. O jornal do governo deu uma relação deles e dos votos que tiveram, que eu sabia, mas já esqueci.

  Por sinal que esse jornal chamava-se — Americano — e tinha na frente um versinho que saía sempre escrito e publicado e que era assim, se bem me lembro:

“Pela Pátria viver, morrer por ela;
Guerra fazer ao despotismo insano;
A virtude seguir, calcar o vício;
Eis o dever de um livre Americano”.

Em novembro, os deputados, que eram trinta e seis, mas que só se apresentaram vinte e dois, juntaram-se em assembléia; em dezembro, logo no dia um, foi então a cerimônia principal.

O general foi em pessoa, como presidente, com a ministrada, os comandantes de corpos e outros topetudos,  e  aí  fez  uma  —  Fala  —  muito  sisuda  e  compassada,  que  todos  escuitaram  quietos,  só sacudindo a cabeça, como quem dizia que era mesmo como o general estava lendo no escrito.

Uê!... e que pensa vancê?. . Estava tudo na estica, sim senhor: fardas novas, bainhas de espada, alumiando; redingotes verdes ou azuis com botões amarelos, padres com as suas batinas saidinhas; um estadão! E famílias, muita moçada fachuda, povaréu, e até uma música. Eu e o outro ordenança, os dois, mui anchos, de gandola cobrada.

Por esse entrementes, no Estado Oriental, andava gangolina grossa entre Oribe e Rivera, que eram os dois que queriam o penacho de manda-tudo. Volta e meia as partidas deles se pechavam e sempre havia entrevero.

Ah! se vancê visse a indiada daquele tempo… cada gadelhudo... Ah! bom!...

Mas,  como  quera,  onde  se  encontrasse,  a  nossa  gente  entropilhava-se  bem  com  a  deles.  E mesmo era ordem dos sup’riores.

Quando íamos mal da vida, já pelas caronas, nos bandeávamos para o outro lado da linha; lá se churrasqueava, fazia-se uma volteada de potrada e voltávamos à carga, folheiritos no mais!

O barão Caxias, que era o maioral dos caramurus, mordia-se com estas gauchadas.

Mas tanto Oribe como Rivera nos codilhavam quando podiam, porquanto faziam também suas fosquinhas aos legais... apertavam o laço pra nós, mas afrouxavam a ilhapa pra eles...

Vancê entende?... Pau de dois bicos!...

—  Mas, vá vancê escuitando.

Rabo-de-saia é sempre precipício pros homens...

Não  vá  vancê cuidar  que  no  caso  andou  mulher  botando  fungu  no  coração de  ninguém,  não,  senhor; a cousa foi muito outra, de alrifage…

Naquele  novembro  de  42,  quando  os  deputados  foram-se  ajuntando,  de  um  a  um,  vindos  de  todos  os  rumos  da  província  da  República  e  havia  na  vila  do  Alegrete  movimento  de  comitivas  e  piquetes, um dia, já à boquinha da noite, chegou uma carreta de campanha, mui bem toldada, com  boiada gorda, e escoltada por um acompanhamento grande, de gente bem montada e armada.
       
Chegou o combói e parou em meio da praça; e logo o que vinha de vaqueano cortou-se e foi  apresentar  o  passe  e  outros  papéis;  e  foi  dizendo  que  a  pessoa  que  vinha  na  caneta  era  uma senhora-dona  viúva,  que  trazia  ofício  pra  o  governo  e  que  era  sobre  uns  gados  que  haviam  sido arrebanhados e cavalhadas, e prejuízos e tal, e mais uma conversa por este teor e com mais voltas que  um laço grande enrodilhado...

Foi isso o que correu logo no redepente da curiosidade.

Papéis  foram  que  a  tal  dona  trazia,  que  logo  o  general  mandou  chamar  os  deputados  e  os  ministros  e  depois  se  trancaram  todos  numa  sala  grande;  e  depois  despachou  um  capitão  para  ir  buscar a figurona.

E ela veio; e mal que chegou o general veio à porta, fez um rapapé rasgado e foi com ela pra tal  sala onde estavam os outros.

Se era linda a beldade!... Sim, senhor, dum gaúcho de gosto alçar na garupa e depois jurar que era Deus na terra!.

E destorcida, e bem-falante; e olhava pra gente, como o sol olha pra água: atravessando!

Dentro da sala, fechada, ia um vozerio dos homens; depois serenava; parece que eles estavam mussitando; e a voz da dona repenicava, hablando un castellano de mi flor!

Lá pelas tantas levantaram o ajuntamento; o mesmo capitão foi levar a dona. E de manhã, nem carreta, nem boiada nem comitiva apareceram mais.

Depois é que vim ao conhecimento que aquela figurona tinha vindo de emissária.

Rivera era mais valente; Oribe era mais sorro: mas, os dois, matreiraços!...

Agora,  qual  dos  dois,  pra  disfarçar  dos  caramurus  o  chasque,  mandou,  em  vez  dum  homem, aquela vivaracha, qual dos dois foi, não pude sondar.

Era assunto encapotado...

Depois desse dia começou a haver um zunzum mui manhoso contra o general.

Não sei se era inveja, ou intrigas ou queixas ou ganas que alguns lhe tinham. As cousas foram-se parando embrulhadas na tal assembléia e uma feita, não sei por que chicos pleitos o general e o coronel Onofre Pires tiveram um desaguisado; o general deu as costas, num pouco caso e o coronel saiu, num rompante, batendo forte os saltos dos botins.

Em  43  houve  outra  arrancada  braba,  foi  quando  mataram  um  Paulino  Fontoura,  que  era  um pesado.  Houve  outro  bate-barbas  entre  o  general  e  o  coronel  Onofre,  que  era  mui  esquentado  e cosquilhoso.

Mas  logo  os  chefes  todos  se  desparramaram,  porque  o  barão  Caxias  andava  na  estrada, levantando polvadeira.

E brigou-se!

Em S. Gabriel, na Vacaria, em Ponche Verde, no Rincão dos Touros. O governo tinha saído do Alegrete e estava outra vez em Piratinim; aí por perto peleou-se, e no Arroio Grande, em Jaguarão, nas Missões, sobre o Quaraim, em Canguçu, em Pai Passo. 

Que ano que bebeu sangue, esse!

E quando o exército se amontoou todo, pra lá do Ibicuí e depois foi estendendo marcha, houve um conelho grande de oficiais; e aí se falou outra vez na emissária, a fulana, aquela da carreta, no Alegrete. Aí, então, os dois galões-largos se contrapontearam outra vez.

A gente como eu é bicho bruto e os graúdos não dão confiança de explicar as cousas, por isso é que eu não sei muitas delas: tenência não me faltava; mas como é que eu ia saber as de adentro dos segredos?...

Já  sobre  o  Garupá  —  vancê  não  conhece?  são  os  campos  mais  bonitos  do  mundo!  —  aí  os homens se cartearam.

Então já era o ano 44.

O coronel escreveu barbaridades; o general respondeu com aquele jeito dele, sisudo.

E quando foi no dia 27 de fevereiro o general me chamou e mandou que eu fosse levando pela rédea,  para  a  restinga,  os  dois  cavalos  que  estavam  atados  debaixo  dum  espinilho;  era  um  picaço grande e um cobrado.

Fui andando; lá longe ia descendo um vulto, atrás de mim vinha outro.

E devagarinho, como quem vai mui descansado da sua vida, os dois.

Ah! esqueci de dizer a vancê que atravessado debaixo da sobrecincha de cada flete, vinha uma  espada.

Reparando, vi que as duas eram iguais, de copo fechado e folha grande, das espadas de roca, que só mesmo pulso de homem podia florear.

E  quando  parei  e  os  dois  vultos  se  chegaram,  conheci  que  eram  o  meu  general  e  o  coronel Onofre.

E desarmados…

Mas como chegaram, cada um despiu a farda, que botou em cima dos pelegos e desembainhou a espada que vinha.

O cobrado era do coronel; o picaço, do general.

Então o general deu ordem:

— Espera aí, com os cavalos!

E o coronel também:

— Bombeia; se chegar alguém, assobia!

E rodearam a restinga, para o outro lado.

Então é que entendi a marosca: eles iam tirar uma tora, dessas que não se fira duas vezes entre os mesmos ferros...

Maneei os mancarrões e com um olho no padre, outro na missa, por entre as ramas da restinga, fui espiar a peleia.

Estavam já, frente a frente, de corpo quadrado.

O sol dava a meio, para os dois.

O  general  Bento  Gonçalves  era  sacudido  no  jogo  da  espada  preta;  meneava  o  ferro,  que chispava na luz, como uma fita de espelho; o coronel Onofre parava os botes e respondia no tempo, mas com tanta força que a espada assobiava no coriscar.

Nisto o general pulou pra trás, fincou a espada no chão e pegou a tirar o tacão da bota, que se despregara.

O coronel encruzou os braços, e a espada dele ficou dependurada da mão, como dum prego.

Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual... aqueles não eram gente disso, não?

E  cruzaram,  de  novo.  Em  cima  da  minha  cabeça  um  sabiá  pegou  a  cantar…  e  era  tão desconchavado aquele canto que chora no coração da gente, com aqueles talhos que cortavam o ar, que  eu,  que  já  tinha  lanhado  muito  cristão  caramuru,  eu  mesmo,  fiquei,  sem  saber  como,  com  os olhos  nos  peleadores,  os  ouvidos  no  sabiá,  mas  o  pensamento  andejando. .  nos  pagos,  no  meu padrinho, no Jesu-Cristo do oratório da minha mãe...

Os ferros iam tinindo, E nisto, o coronel deu um —ah! — furioso, caiu-lhe da mão a espada… e a sangueira coloreou pelo braço abaixo, desarmado, entregue!...

Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual! aqueles não eram gente disso, não!

O general tornou a cravar a espada na terra e veio ao ferido com bom jeito.

Pegou  o  braço,  viu  o  ferimento;  e  com  um  lenço  grande  que  levantou  do  chão,  do  lado  do chapéu, atilhou o talho para estancar o sangue.

O outro, calado, nem gemia.

Depois o general tornou a pegar da espada, fez uma inclinação de cabeça ao coronel e caminhou pra cá…

Foi o quanto eu me atirei pra trás e me acoc’rei perto dos cavalos.

Vestiu a farda, embainhou a espada e montou. Então me disse:

— Agora vem gente, que eu vou mandar. Não te movas daí, antes.

E deu de rédea, a galope, para o acampamento.

E no silêncio que ficou, só ficou balançando no ar o canto do sabiá, na restinga: do outro lado, o sangue do coronel, pingando nos capins; deste lado, eu, sabendo, mas não podendo me intrometer...

—  Agora  veja  vancê  se não  foi  mesmo  o  fungu  daquela tal  dona  —  emissária  dum  dos  dois sorros castelhanos — que veio transtornar tanta amizade dos farrapos?...

Ela só não pôde foi mudar o preceito de honra deles: brigavam, de morte, mas como guascas de lei: leais, sempre!

Pois não viu, naquelas duas vezes?… Pra um que quisesse aproveitar...

E creia vancê, que lhe rezei este rosário sem falha duma conta, apesar de já sentir a memória mais esburacada que poncho de calavera... Pois faz tanto ano!...

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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)

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