
O ANJO DA VITÓRIA
— Foi depois da batalha de
Ituzaingo, no passo do Rosário, pra lá de São Gabriel, do outro lado do banhado
de Inhatium. Vancê não sabe o que é inhatium?
Ë mosquito: bem posto nome!
Banhado de Inhatium. .. Virge’
Nossa Senhora!... mosquito, aí, fumaceia, no ar!
Eu era gurizote: teria, o muito,
uns dez anos; e andava na companha do meu padrinho, que era capitão, para
carregar os peçuelos e os avios do chimarrão.
As cousas da peleia não sei,
porque era menino e não guardava as conversas dos grandes; o que eu queria
era haraganear; mas,
se bem me
lembro, o meu
padrinho dizia que
nós estávamos mal acampados, e
estransilhados, pensando culatrear
o inimigo, mas
que este é
que nos estava
nos garrões; não havia bombeiros nem ordem, que o exército vinha num
berzabum, e que o general que mandava tudo, que era um tal Barbacena, não
passava de um presilha, que por andar um dia a cavalo já tinha que tomar banhos
de salmoura e esfregar as assaduras com sebo...
O meu padrinho era um gaúcho mui
sorro e acostumado na guerra, desde o tempo das Missões, e que
mesmo dormindo estava
com meio ouvido,
escutando, e meio
olho, vendo...; mesmo ressonando não desgrudava pelo menos
dois dedos dos copos da serpentina...
Num escurecer, enquanto pelo
acampamento os soldados carneavam e outros tocavam viola e cantavam, ou dormiam
ou chalravam, o que sei é que nesse escurecer o meu padrinho mandou pegar os
nossos cavalos; e encilhamos até a cincha; e depois nos deitamos nos pelegos,
com os pingos pela rédea, maneados: ele, armado, mateando; eu, enroscadito no
meu bichará, e o ordenança, que era um chiru ombrudo, chamado Hilarião,
pitando.
Eu, como criança, peguei logo a
cochilar.
Amigo! Vancê creia: o coração às vezes,
trepa, dentro da gente, o mesmo que jaguatirica por uma árvore acima!...
Lá pelas tantas, ouviu-se
cornetas e clarins e rufos de caixa...; mas o som dos toques andava ainda galopeando
dentro do silêncio
da noite quando
desabou em cima de nós
a castelhanada, a gritos, e já nos foi fumegando bala e
bala!...
Numa arrancada dessas é que o
coração trepa, dentro da gente, como gato...
— Desmaneia e monta! gritou o meu
padrinho; ele que falava, eu e o chiru que já estávamos enforquilhados nas
ganas.
E
por entre as
barracas e ramadas;
por entre os
fogões meio apagados,
onde ainda havia fincados espetos com restos de
churrascos; por entre as carretas e as pontas de bois mansos e lotes de
reiúnos; no fusco-fusco
da madrugada, com
uma cerraçãozita o quanto-quanto; por
entre toques e ordens e chamados, e a choradeira do
chinaredo e o vozerio do comércio, já no cheiro da pólvora e em cima dos
primeiros feridos, formou-se o entrevero dos atacantes e dos dormilões.
E cantou o ferro… e choveu
bala!...
O meu padrinho levantou na rédea
o azulego: e de espada em punho, o chiru, com uma lança de meia-lua — e eu
entre os dois, enroscadito no meu bichará — nos botamos ao grosso do
redemoinho, para abrir caminho para o quartel-general do dito Barbacena.
Como lá chegamos, não sei.
A
espada do meu
padrinho estava torcida
como um cipó,
e vermelha, e
o azulego tinha
uns quantos lanhos na anca; o Hilarião tinha um corte de cima a baixo da
japona, e eu levei um lançaço, que por sorte pegou no malote do poncho.
Mas, varamos.
No quartel do Barbacena ninguém
se entendia.
A oficialada espumava, de raiva,
e um cutuba, baixote, já velho, botava e tirava o boné e metia as unhas na
calva, furioso, de ralar sangue!...
Esse, era um tal general Abreu...
um tal general José de Abreu, valente como as armas, guapo como um
leão… que a
gauchada daquele tempo
— e que
era torenada macota!
— bautizou e chamava de — Anjo da Vitória!
Esse, o cavalo dele não dava de
rédea para trás, não! Esse, quando havia fome, apertava o cinto, com os outros
e ria-se!
Esse, dormia como quero-quero,
farejava como cervo e rastreava como índio...; esse, quando carregava, era como um ventarrão, abrindo
claros num matagal.
Com esse.. . castelhano se
desguaritava por essas coxilhas o mesmo que bandada de nhandu, corrida a tiro
de bolas!...
Era o Anjo da Vitória, esse!
Daí a pouco apareceu um outro
oficial, mocetão bonito, que era major. Este chamava-se Bento Gonçalves, que
depois foi meu general, nos Farrapos.
Os dois se conversaram,
apalavraram os outros e tudo montou e tocou pra rumos diferentes.
No acampamento estrondeava a
briga.
Já tinha amanhecido.
Eu andava colado ao meu padrinho,
como carrapato em costela de novilho. Por onde ele andou, andei eu; passou,
passei; carregava, eu carregava; fazia cara-volta, eu também.
Naquelas correrias, o meu
bicharazito, às vezes, enchia-se de vento, e voava, batia aberto, que nem uma
bandeira-cinzenta...
O
major Bento Gonçalves
formando a cavalaria,
agüentava como um
taura as cargas
do inimigo, para ir entretendo, e dar tempo à nossa gente de quadrar-se,
unida.
Os castelhanos, mui ardilosos,
logo que aquentou o sol tocaram fogo nos macegais onde estava o carretame; o
vento ajudou, e enquanto eles carcheavam a seu gosto, uma fumaça braba tapou
tudo, do nosso lado!...
Então o
general Abreu no
alto do coxilhão
formou os seus
esquadrões: o meu
padrinho comandava um deles.
Formou, fez
uma fala à
gente e carregou,
ele, na frente,
montado num tordilho
salino, ressolhador.
Oh! velho temerário! Firme nos
estribos, com o boné levantado sobre o cocuruto da cabeça, a espada apontando
como um dedo, faiscando, o velhito ponteou aquela tormenta, que se despenhou
pelo lançante abaixo e afundou-se e entranhou-se na massa cerrada do inimigo,
como uma cunha de nhanduvai abrindo em dois um moirão grosso de guajuvira... E
deixando uma estiva de estrompados, de mortos, de atarantados, de feridos e de
morrentes — como quando rufa um rodeio xucro. . vancê já viu?
— varou para
o outro lado,
mandou fazer —alto,
cara-volta! — e
mal que reformou
os esquadrões, os homens chalrando e rindo, a cavalhada, de venta
aberta, bufando ao faro do sangue e trocando orelha, pelo alarido, o velho já
se bancou outra vez na testa, gritou —Viva o Imperador! — e mandou — Carrega!
E a tormenta da valentia rolou,
outra vez, sobre o campo.
Mas nesta
hora maldita, a fumaça maldita nos
rodeava e cegava;
e mal íamos
dando lance à carga — eu,
folheirito, abanando no mais o meu bichará pra o Hilarião — rebentou na
vanguarda e num flanco a fuzilaria, e vieram as baionetas... e uma colubrina,
que nos tiroteavam donde não podia ser!...
A
nossa cavalaria se
enrodilhou toda, fazendo
uma enrascada de
mil diabos… e
enquanto o tiroteio nos
estraçalhava, que os
ginetes e os
cavalos caíam, varados,
e que, por
fim, os próprios esquadrões já iam rusgando uns com
os outros — aí, amigo, andei eu às pechadas!—enquanto isso... veio uma rajada
forte de vento, que varreu a fumaça, limpou a vista de todos e mostrou que era
a nossa infantaria que nos tinha feito aquela desgraça..
Então, por cima dos mortos e dos
feridos houve um silêncio grande, de raiva e de pena… como de quem pede perdão,
calado… ou de quem chora de saudade, baixinho...
Lá longe, os castelhanos,
enganados, tocaram a retirada. O nosso quartel-general também tocou a retirada.
Pegou a
debandada; dispersava-se a
gente por todos
os lados, aos
punhados, botando fora
as pederneiras, as patronas; muitos sotretas fugiram de cambulhada com o
chinerio...
Metades de batalhões
arrinconavam-se, outras encordoavam marcha.
Os ajudantes galopavam conduzindo
ordens… mas parecia que toda a força ia fugindo duma batalha perdida, que não
era, porque tudo aquilo era da indisciplina, somentes.
O Anjo da Vitória lá ficou, onde
era a frente dos seus esquadrões, crivado de balas, morto, e ainda segurando a
espada, agora quebrada.
Campeei o meu padrinho: morto,
também, caído ao lado do azulego, arrebentado nas paletas por um tiro de peça;
ali junto, apertando ainda a lança, toda lascada, estrebuchava o Hilarião, sem
dar acordo, aiando, só aiando. .
Deitado sobre o pescoço do
cavalo, comecei a chorar.
Peguei a chamar:
— Padrinho! padrinho!...
— Hilarião! Meu padrinho!...
Apeei-me, vim me chegando e
chamando — padrinho!… padrinho!… e tomei-lhe a bênção, na mão, já fria…; puxei
na manga do chiru, que já nem bulia...
Sem querer fiquei vendo as forças
que iam-se movendo e se distanciando.., e num tirão, quando ia montar de novo,
sem saber pra quê... foi que vi que estava sozinho, abandonado, gaudério e
gaúcho, sem ninguém pra me cuidar!...
Foi então, que, sem saber como,
já de a cavalo, enquanto sem eu sentir as lágrimas caíam-me e rolavam sobre o
bichará, os olhos se me plantaram sobre o tordilho salino... sobre o coto da
espada... sobre um boné galoado...
E
o cabelo me
cresceu e fiquei
de choro parado...e
ouvi, patentemente, ouvi
bem ouvido, o velho macota, o Anjo da Vitória, morto como
estava, gritar ainda e forte
— Viva o Imperador! Carrega!
O
meu bicharazito se
empantufou de vento,
desdobrou-se, batendo como
umas asas... o mancarrão
bufou, recuando, assustado…
e quando dei
por mim, andava
enancado num lote
de fujões...
Comi do ruim... Vê vancê que eu
era guri e já corria mundo...
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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