
CHASQUE DO IMPERADOR
— Quando foi do cerco de
Uruguaiana pelos paraguaios em 65 e o imperador Pedro 2 veio cá, com toda a
frota da sua comitiva, andei muito por esses meios, como vaqueano, como
chasque, como confiança dele; era eu que encilhava-lhe o cavalo, que dormia
atravessado na porta do quarto dele, que carregava os papéis dele e as armas
dele.
Começou assim: fui escalado para
o esquadrão que devia escoltar aquele estadão todo.
Quando a força apresentou-se ao
seu general Caxias, o velho olhou... olhou... e não disse nada.
Cada um, firme como um tarumã; as
guascas, das melhores, as garras, bem postas, os metais, reluzindo; os fletes
tosados a preceito, a cascaria aparada... e em cima de tudo, — tirante eu — uma
indiada macanuda, capaz de bolear a perna e descascar o facão até pra Cristo,
salvo seja!...
Pois o velho olhou…, olhou…, e
ficou calado. E calado saiu.
O tenente que nos comandava,
relanceou os olhos como numa sufocação e berrou:
— Firme! E dando um torcicão
forte na banda, começou a mascar a pêra, furioso.
E ali ficamos; de vez em quando
um bagual escarceando, refolhando, escarvando...
Daí a pouco, de em frente, das
casas, veio saindo unia gentama, muito em ordem, de a dois, de a três.
Na testa vinha um homem alto,
barbudo, ruivo, de olhos azuis, pequenos, mas mui macios. A esquerda dele,
dois passos menos,
como na ordenança,
o velho Caxias,
fardado e firme,
como sempre.
O outro, o ruivo, assim a modo um
gringo, vinha todo de preto, com um gabão de pano piloto, com veludo na gola e
de botas russilhonas, sem esporas.
Pela pinta devia ser mui
maturrango.
Não trazia espada nem nada, mas
devia ser um maioral porque todos os outros se apequenavam pra ele. Quem
seria?..
O tenente descarregou umas
quantas vozes; e nós estávamos como corda de viola!...
O
ruivo passou pela
nossa frente, devagar;
mirou um flanco
e outro, e
falou com o
velho, mostrando um ar risonho no rosto sério.
O velho acenou ao tenente, que
tocou o cavalo e firmou a espada em continência.
Então o ruivo disse:
— ‘Stá bem, sr. tenente; estou
satisfeito! Mande-me aqui um dos seus homens, qualquer...
— O tenente bateu a espada e deu
de rédea, e parou mesmo na minha frente..
eu era guia da fila testa.
—
Cabo Blau Nunes! Pé em terra! Um!... Dois!…
Estava apeado e perfilado, com a mão
batendo na aba levantada do meu chapéu de voluntário.
—
Apresente-se!
E
baixinho, fuzilando nos
olhos, boquejou-me: —
aquele é o
imperador; se te
enredas nas quartas, defumo-te!
Ora!... Caminhei firme e quando
cheguei a cinco passos do ruivo, tornei a quadrar o corpo, na postura dos
mandamentos.
Aí o velho Caxias perguntou:
—
Sabes a quem falas?
—
Diz que ao senhor imperador!
—
Sua majestade o imperador, é que se diz.
— A sua majestade o imperador!
Vai então, o tal, que pelo visto,
era mesmo o tão falado imperador, disse, numa vozinha fina:
—
Bem; cabo, você vai ficar na minha companhia; há de ser o meu ordenança
de confiança. Quer?...
—
O senhor imperador vai ficar mal servido: sou um gaúcho mui cru; mas
para cumprir ordens e dar o pelego, tão bom haverá, melhor que eu, não!
Aí o homem riu-se e o velho
também. E vai este indagou:
—
Conheces-me?
—
Como não?!... Desde
45, no Ponche
Verde; fui eu
que uma madrugada
levei a vossa excelência um ofício reservado,
pra sua mão
própria... e tive
que lanhar uns
quantos baianos abelhudos que
entenderam de me tomar o papel... Vossa excelência mandou-me dormir e comer na
sua barraca, e no outro dia me regalou um picaço grande, mui lindo, que...
—
Bem me parecia, sim... E ainda és o mesmo homem?
—
Sim, sr., com algum osso mais duro e o juízo mais tironeado!
—
É que sua majestade vai precisar de um chasque provado, seguro... há
perigo, na missão...
—
Uê! seu general!... Meu pai e minha mãe hoje, é esta!
E beijei a minha divisa de cabo.
O
imperador pôs a mão no meu ombro e disse:
—
Estimo-te. Podes ir... e cala-te.
E vancê creia... — que diabo! —
tive um estremeção por dentro!...
Eu pensava que o imperador era um
homem diferente dos outros... assim todo de ouro, todo de brilhantes, com olhos
de pedras finas...
Mas, não senhor, era um homem de
carne e osso, igual aos outros... mas como quera... uma cara tão séria… e um
jeito ao mesmo tempo tão sereno e tão mandador, que deixava um qualquer de
rédea no chão!...
Isso é que era!…
Fiz meia-volta
e fui tomar
o meu lugar;
o esquadrão desfilou,
apresentando armas e
fomos acampar. Logo a
rapaziada crivou-me de
perguntas... mas eu,
soldado velho, contei
um par de rodelas, queimei campo a boche, mas não
afrouxei nada da conversa; não vê!...
De tardezita já entrava de
serviço.
A
não ser nas
conversas particulares daqueles
graúdos — pois
tudo era só
seu barão, seu conselheiro, seu visconde, seu ministro
—, eu sempre via e ouvia o que se passava.
E a bem boas assisti.
Um dia apresentaram ao imperador
um topetudo não sei donde, que perguntou, mui concho:
—
Então vossa majestade tem gostado disto por aqui?
—
Sim, sim, muito!
—
Então por que não se muda pra cá, com a família?...
Outro, no
meio da roda,
puxou da traíra,
sovou uma palha
de palmo, e
começou a picar
um naco; esfregou o
fumo na cova
da mão, enrolou,
fechou o baio
e mui senhor
de si ofereceu-o
ao imperador.
—
É servido?
—
Não, obrigado; parece-me forte o seu fumo...
—
Não sabe o que perde!... Então, com sua licença!...
E bateu o isqueiro e começou a
pitar, tirando cada tragada que nuveava o ar!
Havia um
que era barão e
comandava um regimento,
que era mesmo uma
flor; tudo moçada parelha e guapa.
O
imperador gabou muito a força, e aí no mais o barão já lhe largou esta
agachada:
—
Que vossa majestade
está pensando?... Tudo
isto é indiada
coronilha, criada a
apojo, churrasco e mate
amargo... Não é
como essa cuscada
lá da Corte,
que só bebe
água e lambe
a... barriga!...
Este mesmo barão, duma feita que
o d. Pedro procurou no bolso umas balastracas para dar uma esmola e não achou
mais nada, desafivelou a guaiaca e entregando-a disse:
— Tome, senhor! Cruzes! Nunca vi
homem mais mão-aberta do que vossa majestade…, olhe que quem dá o que tem, a
pedir vem... mas... quando quiser os meus arreios prateados... e até a minha
tropilha é só mandar... só reservo o tostado crespo e um qualquer pelego...
—
Mas, sr. barão, nem por isso eu dou o que desejara…
—
Ora qual!. . Vossa majestade não dá a camisa... porque não tem tempo de
tirá-la!...
Numa das marchas paramos num
campestre, na beira dum passo, perto dum ranchito.
Daí a pouco, com uma trouxinha na
mão apareceu no acampamento uma velha, que já tinha os olhos como
retovo de bola.
Por ali andou
mirando, e depois
entrando mesmo no
grupo onde ele estava, disse:
—
Bom dia, moços! Qual de vocês é o imperador?
—
Sou eu, dona! Assente-se.
A velha olhou-o de alto a baixo,
calada, e depois rindo nos olhos:
—
Deus te abençoe! Nossa Senhora te acompanhe, meu filho! Eu trago-te este
bocadinho de fiambre!
E
abrindo o pano,
mui limpinho, mostrou
um requeijão, que
pela cor devia
de estar um gambelo, de gordo e macio. D. Pedro
agradeceu e quis dar uma nota à velha, que parou patrulha.
—
Não! não!... Tu
vais pra guerra...
Os meus filhos
e netos já
lá andam... Eu
só quero que vocês não se deixem tundar!...
Houve uma risada grande, da
comitiva. A velhota ainda correu os olhos em roda e indagou:
—
Diz que o seu Caxias também vem aqui... quem é?
—
Sou eu, patrícia!... Conhece-me?
—
De nome, sim,
senhor. O meu
defunto, em vida
dele, sempre falava
em vancê... Pois
os caramurus iam fuzilar o coitado, quando vancê apareceu...
Lembra-se?... E vai, quando o seu general Canabarro fez
a paz entre
os farrapos e os legais,
o meu defunto
jurou que onde
estivesse o seu Caxias, ele havia de ir... mas morreu,
pro via dum inchume, que apareceu, aqui, lá nele. Mas, como por aqui, correu
que vancê ia pra guerra dos paraguaios, o meu filho mais velho, em memória do
pai, ajuntou os irmãos e os sobrinhos e uns quantos vizinhos e se tocaram
todos, pra se apresentarem de voluntários, a vancê!… Vancê dê notícias minhas e
bote a benção neles; e diga a eles que não deixem o imperador
perder a guerra...
ainda que nenhum
deles nunca mais
me apareça!... Bem!
com sua licença... Seu imperador,
na volta, venha pousar no rancho da nhã Tuca; é de gente pobre, mas tudo é
limpo com a graça de Deus... e sempre há de haver uma terneira gorda pra um
costilharl... Passar bem! Boa viagem... Deus os leve, Deus os traga!...
O
imperador — esse era meio maricas, era! — abraçou a velha, prometendo
voltar, por ali, e quando ela saiu, disse:
— Como é agradável esta rudeza
tão franca!
Numa cidade onde pousamos, o
imperador foi hospedado em casa dum fulano, sujeito pesado, porém mui gauchão.
Quando foi hora do almoço, na
mesa só havia doces e doces... e nada mais. O imperador, por cerimônia provou
alguns; a comitiva arriou aqueles cerros açucarados. Quando foi o jantar, a mesma
cousa: doces e mais doces!... Para não desgostar o homem, o imperador ainda
serviu-se, mas pouco; e de noite, outra vez, chá e doces!
O imperador, com toda a sua
imperadorice, gurniu fome!
No outro dia, de manhã, o fulano
foi saber como o hóspede havia passado a noite e ao mesmo tempo acompanhava uma
rica bandeja com chá e... doces...
Aí o imperador não pôde mais…
estava enfarado!…
— Meu amigo, os doces são
magníficos... mas eu agradecia-lhe muito se me arranjasse antes um
feijãozinho... uma lasca de carne...
O
homem ficou sério… e depois largou uma risada:
— Quê! Pois vossa majestade come
carne?! Disseram-me que as pessoas reais só se tratavam a bicos de
rouxinóis e doces
e pasteizinhos!… Por
que não disse
antes, senhor? Com trezentos
diabos!... Ora esta!... Vamos já a um churrasco... que eu, também, não agüento
estas porquerias!...
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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