domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Poverina"


POVERINA 


Era naquele tempo o Salazar uma das figuras mais salientes do nosso diletantismo literário. Os seus artigos de critica, os seus versos, os seus contos, as suas fantasias estavam ao alcance de todas as inteligências, e eram lidos, senão com avidez, ao menos com simpatia.

Ele tornara-se conhecido, quase célebre, e não atravessava a Rua do Ouvidor sem ouvir estas e outras frases que o enchiam de orgulho: - Lá vai o Salazar!  - Olha o Salazar!  - O Salazar é aquele!

Pouco   a   pouco   essas   manifestações   da   admiração   indígena   o   foram   empanturrando   de desvanecimento e vanglória, e não tardou muito que ele se julgasse, coitado! superior a quantos o cercavam, fazendo sentir a sua superioridade com uma importância ridícula.

O toleirão era casado, e a primeira vítima da transformação do seu caráter foi a própria esposa, excelente  rapariga,  bem  educada,  inteligente,   muito  inteligente,   mas  tímida,  daquela  timidez peculiar às moças brasileiras que não perderam noites em festas e bailes.

Estavam   casados   havia   três   anos,   mas   o   literato   nunca   estudara   nem   compreendera   sua mulher. Volvido o período da intitulada lua-de-mel, todo de brutalidade e egoísmo, e começando a aura do publicista, ele afastou-se da esposa tanto quanto uma pessoa pode afastar-se de outra com quem almoça e janta quase todos os dias, e com quem vive debaixo das mesmas telhas.

Não tinham filhos; faltava-lhes esse traço de união, que talvez os tivesse aproximado.

Entretanto,   ela  não   se   queixou   nunca  da   indiferença   do  marido;   sendo,   aliás,   bonita,   muito bonita, mostrou uma resignação que ele seria o primeiro a admirar, se todo o tempo não lhe fosse preciso para admirar-se a si próprio.

Aquela frieza, aquela sobranceria, aqueles ares de semideus ainda mais se acentuaram quando o   Salazar,   um   dia,   recebeu,   pelo   correio,   longa   carta   em   que   uma   desconhecida,   sob   o pseudônimo   de  Poverina,  manifestava   pela   sua   interessante   pessoa   uma   simpatia   e   uma admiração excepcionais.

O que  mais  o impressionou nessa missiva  anônima  foi o primor da forma.  A  desconhecida revelava cultura intelectual superior à dele, e dizendo-se, aliás, sua discípula, mostrava notáveis qualidades de estilista, que o outro não possuía.

A princípio supôs Salazar que a correspondência fosse de algum marmanjo, desejoso de se  divertir à custa dele; mas outras e sucessivas cartas o convenceram do contrário. Quem quer que fosse tinha delicadezas femininas de que nenhum homem seria capaz.

Colocando-se,   sempre   com   encantadora   modéstia,   num   plano   subalterno,   a   escritora aconselhava-o com muita discrição e habilidade, a corrigir-se de uns tantos defeitos; apontava-lhe contradições, incongruências, descuidos gramaticais, ligeiros solecismos indignos da pena de um escritor  reputado; mas atribuía tudo  à precipitação com que ele escrevia, e nem por sombras aludia à sua ignorância, muitas vezes apanhada em flagrante. Um homem não seria tão generoso.

Demais, essas observações e conselhos eram acompanhados de confissões gravíssimas. Ela declarava   que   o   seu   maior   prazer   seria,   se   pudesse,   estar   perto   dele   no   seu   gabinete   de trabalho, auxiliando-o, passando a limpo os seus escritos, procurando um termo no dicionário, caçando   um   sinônimo,   verificando   um   trecho   em   qualquer   obra   citada,   corrigindo   aqui   um descuido, preenchendo ali um claro, mudando as penas, enchendo o tinteiro, cortando o papel em tiras, etc. "Enfim, dizia ela, quisera ser a tua secretária, uma secretária a quem, terminado o trabalho, remunerasses, não com dinheiro, mas com beijos e caricias.

"Mas para isso, continuava a desconhecida, seria preciso que um e outro fôssemos livres, e somos ambos casados; nem meu marido nem tua mulher merecem que os enganemos.

O   Salazar   respondia   a   todas   essas   cartas,   e,   escusado   é   dizer,   empregava   súplicas, argumentos, razões, para que a Poverina se desvendasse.

Ela resistia energicamente. "Não procures saber quem sou; nunca o saberás. O encanto das nossas  relações  é  esta abstração,   este delicioso  platonismo.  Imagina  que  somos  Heloísa  e Abelardo, e que estamos separados por uma fatalidade psicológica..

* * *

Durante um ano a correspondência continuou assídua de parte a parte. O Salazar recebia pelo correio as cartas de Poverina, e respondia-as pela posta-restante.

Pediu-lhe um dia que não lhe dissesse o seu nome, mas lhe mandasse ao menos o seu retrato. "Não,  respondeu  ela;  mandar-te o meu  retrato  seria  o mesmo   que te dizer quem  sou.  Não suponhas que deixo de satisfazer o teu pedido pelo receio de me achares velha ou feia. Sou muito mais nova que tu, e de feia nada tenho. Digo-te mais: pelo interesse, pela insistência com que olhaste para mim certa vez em que nos encontramos na rua, creio que me achaste bonita... Não calculas como nessa ocasião tive ímpetos de me atirar nos teus braços, dizendo: - Poverina sou eu..."

O   Salazar   estava,   por   fim,   radicalmente   apaixonado,   e,   a   proporção   que   esse   amor desesperançado   e   extravagante   o   ia   absorvendo   e   exacerbando,   ele   mais   indiferente   se mostrava para com a infeliz esposa, cada vez mais resignada, mais conformada com a sua triste sorte de mulher posta a um canto.

* * *

Mais seis meses de correspondência, e o caso tomou uma gravidade terrível. O Salazar estava obcecado por aquela mulher, por aquele fantasma, por aquele mistério! Já não produzia nada, limitando-se apenas à sua tarefa epistolar, que lhe monopolizava o espírito, como se fosse uma obra de fôlego, um trabalho de grande transcendência filosófica.

Um   dia   escreveu   a  Poverina,  dizendo   que   não   lhe   era   possível   continuar   a   viver   naquele desespero. Se ela não lhe proporcionasse ocasião de vê-la, de estar ao seu lado, gozando o benefício divino da sua presença, ele procuraria no cano de um revólver a tranqüilidade que lhe fugira.

Depois de três ameaças idênticas, formuladas em termos decisivos, Poverina cedeu, marcando a Salazar uma entrevista a noite, no Largo do Machado, naquele tempo mais sombrio e menos freqüentado que hoje.

Calcule-se a impaciência com que o literato contou as horas!

* * *

Cinco minutos antes do momento aprazado, ele entrou no jardim, e viu, de longe, uma mulher de preto, com o rosto coberto por um véu, sentada no banco indicado na carta de Poverina.

O coração do mísero saltava, as suas mãos estavam geladas, todo ele tremia...

Foi nesse estado que o Salazar se aproximou daquele vulto de mulher.

Ela convidou-o com um gesto a sentar-se.

Ele sentou-se.

- Aqui me tem! disse Poverina, erguendo o véu.

O publicista ficou estupefato: era a sua própria esposa!

- Tu?... que é isto... Eu... Tu... Eras tu que...?

- Sim, era eu que...

- Não é possível!

- Tenho em casa todas as minutas das cartas de Poverina. Podes encontrar.

* * *

Dali por diante aquele desalmado, que nem sequer conhecia a letra de sua mulher, foi o modelo dos maridos, e ela o modelo das secretárias.

Diziam até as más línguas que o secretário era ele. Não sei: já morreram ambos e a coisa ficou
em família.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Correio da Manhã, 22 de janeiro de 1905

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