
ERNESTO DE TAL
CAPÍTULO PRIMEIRO
Aquele
moço que ali está parado na Rua Nova do Conde esquina do Campo da Aclamação, às
dez horas da noite, não é nenhum ladrão, não é sequer um filósofo. Tem um ar misterioso, é
verdade; de quando em quando leva a mão
ao peito, bate uma palmada na coxa, ou atira fora um charuto apenas encetado.
Filósofo já se vê que não era. Ratoneiro também não: se algum sujeito acerta de passar
pelo mesmo lado, o vulto afasta-se
cauteloso, como se tivesse medo de ser conhecido.
De dez em
dez minutos, sobe a rua até o lugar em que ela faz ângulo com a Rua do Areal,
torna a descer dez minutos depois, para de novo subir e descer, descer e subir,
sem outro resultado mais que aumentar cinco
por cento a cólera que lhe murmura no coração.
Quem o
visse fazer estas subidas e descidas, bater na perna, acender e apagar
charutos, e não tivesse outra explicação, suporia plausivelmente que o homem estava doido ou perto disso. Não,
senhor; Ernesto de Tal (não estou autorizado para dizer o nome todo) anda
simplesmente apaixonado por uma moça que
mora naquela rua; está colérico porque ainda
não conseguiu receber resposta da carta que lhe mandou nessa manhã.
Convém
dizer que dois dias antes tinha havido um pequeno arrufo. Ernesto quebrara o
protesto de namorado que lhe fizera, de nunca mais escrever-lhe, mandando nessa manhã uma
epístola de quatro laudas incendiárias, com muitos sinais admirativos e várias
liberdades de pontuação. A carta foi, mas a resposta não veio.
De cada
vez que o nosso namorado operava a descida ou subida da rua, parava defronte de
uma casa assobradada, onde se dançava ao som de um piano. Era ali que morava a
dama dos seus pensamentos. Mas parava debalde; nem ela aparecia à janela, nem a
carta lhe chegava às mãos.
Ernesto
mordia então os beiços para não soltar um grito de desespero e ia desafogar os seus furores na próxima esquina.
“Mas que
explicação tem isto, dizia ele consigo mesmo; por que razão não me atira ela o
papel de cima da janela? Não tem que ver; está toda entregue à dança, talvez ao
namoro, não se lembra que eu estou aqui na
rua,
quando podia estar lá...”
Neste
ponto calou-se o namorado, e em vez do gesto de desespero que devia fazer, soltou apenas um longo e magoado
suspiro. A explicação deste suspiro, inverossímil num homem que está rebentando
de cólera, é um tanto delicada para se dizer em letra redonda. Mas vá lá; ou
não se há de contar nada, ou se há de
dizer tudo.
Ernesto
dava-se em casa do Sr. Vieira, tio de Rosina, que é o nome da namorada. Lá
costumava ir com freqüência, e lá mesmo é que se arrufou com ela dois dias
antes deste sábado de outubro de 1850, em que se passa o acontecimento que
estou narrando. Ora, por que razão não figura Ernesto entre os cavalheiros que
estão dançando ou tomando chá? Na véspera
de tarde o Sr. Vieira, encontrando-se com Ernesto, participou-lhe que dava no
dia seguinte uma pequena partida para solenizar não sei que acontecimento da
família.
— Resolvi
isto hoje de manhã, concluiu ele; convidei pouca gente, mas espero que a festa
esteja brilhante. Ia mandar-lhe agora um convite; mas creio que me dispensa?...
— Sem
dúvida, apressou-se a dizer Ernesto, esfregando as mãos de contente.
— Não
falte!
— Não
senhor!
— Ah!
esquecia-me avisá-lo de uma coisa, disse Vieira que já havia dado alguns passos;
como vai o subdelegado, que além disso é comendador, eu desejava que todos os
meus convidados aparecessem de casaca. Sacrifique-se à casaca, sim?
— Com
muito gosto, respondeu o outro ficando pálido como um defunto.
Pálido,
por quê? Leitor, por mais ridícula e lastimosa que te pareça esta declaração, não hesito de dizer-te que o nosso
Ernesto não possuía uma só casaca nova nem velha. A exigência de Vieira era
absurda; mas não havia fugir-lhe; ou não
ir, ou ir de casaca. Cumpria sair a todo custo desta gravíssima situação. Três alvitres se
apresentaram ao espírito do atribulado
moço; encomendar, por qualquer preço, uma casaca para a noite seguinte;
comprá-la a crédito; pedi-la a um amigo.
Os dois
primeiros alvitres foram desprezados por impraticáveis; Ernesto não tinha
dinheiro nem crédito tão alto. Restava o terceiro. Fez Ernesto uma
lista dos amigos e casacas prováveis, meteu-a na algibeira e saiu em busca do velocino.
A desgraça
porém que o perseguia fez com que o primeiro amigo tivesse de ir no dia
seguinte a um casamento e o segundo a um baile; o terceiro tinha a casaca rota, o quarto tinha a casaca
emprestada, o quinto não emprestava a
casaca, o sexto não tinha casaco. Recorreu ainda a mais dois amigos suplementares; mas um partira na véspera
para Iguaçu e o outro estava destacado na Fortaleza de São João, como alferes
da Guarda Nacional.
Imagine-se
o desespero de Ernesto; mas admire-se também a requintada crueldade com que o
destino tratava a este moço, que ao voltar para casa encontrou três enterros,
dois dos quais com muitos carros, cujos ocupantes
iam todos de casaca. Era mister curvar a cabeça à fatalidade; Ernesto não
insistiu. Mas como tomara a peito reconciliar-se com Rosina, escreveu-lhe a
carta de que falei acima e mandou-a levar pelo moleque da casa, dizendo-lhe que
à noite lhe desse a resposta na esquina do Campo. Já sabemos que tal resposta
não veio. Ernesto não compreendia a causa do silêncio; muitos arrufos tivera
com a moça, mas nenhum deles resistia à
primeira carta nem durava mais de quarenta e oito horas.
Desenganado
enfim de que a resposta viesse naquela noite, Ernesto dirigiu-se para casa com o desespero no
coração. Morava na Rua da Misericórdia.
Quando lá chegou estava cansado e abatido. Nem por isso dormiu logo. Despiu-se precipitadamente.
Esteve a ponto de rasgar o colete, cuja fivela teimava em prender-se a um botão
da calça. Atirou com as botinas sobre um
aparador e quase esmigalhou uma das jarras. Deu cerca de sete ou oito murros na mesa;
fumou dois charutos, descompôs o
destino, a moça, a si mesmo, até que sobre a madrugada pôde conciliar o sono.
Enquanto
ele dorme, indaguemos a causa do silêncio da namorada.
CAPÍTULO II
Veja o
leitor aquela moça que ali está, sentada num sofá, entre duas damas da mesma idade, conversando baixinho com
elas, e requebrando de quando em quando os olhos. É Rosina. Os olhos de Rosina
não enganam ninguém... exceto os namorados. Os olhos dela são espertinhos e caçadores, e com um certo movimento que ela
lhes dá, ficam ainda mais caçadores e espertinhos. É galante e graciosa; se o
não fora, não se deixaria prender por ela o nosso infeliz Ernesto, que era
rapaz de apurado gosto. Alta não era, mas baixinha, viva, travessa. Tinha
bastante afetação nos modos e no falar; mas Ernesto, a quem um amigo notara
isso mesmo, declarou que não gostava de moscas mortas.
— Eu nem
de moscas vivas, acudiu o amigo encantado por ter apanhado no ar este trocadilho.
Trocadilho
de 1850.
Não veste
com luxo porque o tio não é rico; mas ainda assim está garrida e elegante. Na
cabeça tem por enfeite apenas dois laços de fita azul.
— Ah! se
aquelas fitas me quisessem enforcar! dizia um gamenho de bigode preto e cabelo
partido ao meio.
— Se
aquelas fitas me quisessem levar ao céu! dizia outro de suíças castanhas e
orelhas pequeninas.
Desejos
ambiciosos os destes dois rapazes, — ambiciosos e vãos, porque ela, se alguém
lhe prende a atenção, é um moço de bigode louro e nariz comprido que está agora
conversando com o subdelegado. Para ele é que Rosina dirige de quando em quando
os olhos, com disfarce é verdade, não tanto
porém que o não percebam as duas moças que estão ao pé dela.
— Namoro
ferrado! dizia uma delas à outra fazendo um sinal de cabeça para o lado do moço de nariz comprido.
— Ora,
Justina?
—
Calúnias! acudiu a outra moça.
— Cala-te,
Amélia!
— Você
quer enganar a gente? insistia Justina. Tire o cavalo da chuva! Lá está ele
olhando... Parece que nem ouve o comendador. Pobre comendador! para
pau-de-cabeleira está grosso demais.
— Olha, se
você não se cala eu vou-me embora, disse Rosina fingindo-se enfadada.
— Pois vá!
— Coitado
do Ernesto! suspirou Amélia do outro lado.
— Olhe que
titia pode ouvir, observou Rosina olhando de esguelha para uma velha gorda,
que, assentada ao pé do sofá, referia a
uma comadre as diversas peripécias da última moléstia do marido.
— Mas por
que não veio o Ernesto? perguntou Justina.
— Mandou
dizer a papai que tinha um trabalho urgente.
— Quem
sabe se algum namoro também? insinuou Justina.
— Não é
capaz! acudiu Rosina.
— Bravo!
que confiança!
— Que
amor!
— Que
certeza!
— Que
defensora!
— Não é
capaz, repetiu a moça: o Ernesto não é capaz de namorar a outra; estou certa
disso... O Ernesto é um...
Engoliu o
resto.
— Um quê?
perguntou Amélia.
— Um quê?
perguntou Justina.
Neste
momento tocou-se uma valsa, e o rapaz do nariz comprido, a quem o subdelegado
deixara para ir conversar com Vieira, aproximou-se do sofá e pediu a Rosina a
honra de lhe dar aquela valsa. A moça abaixou os olhos com singular modéstia, murmurou algumas
palavras que ninguém ouviu, levantou-se e foi valsar. Justina e Amélia
chegaram-se então uma para a outra e
comentaram o procedimento de Rosina e a sua maneira de valsar sem graça. Mas
como ambas eram amigas de Rosina, não foram estas censuras feitas em tom
ofensivo, mas com brandura, como os amigos
devem censurar os amigos ausentes.
E não
tinham muita razão as duas amigas. Rosina valsava com graça e podia pedir meças
a quem soubesse aquele gênero de dança. Agora quanto ao namoro, pode ser que
tivessem razão, e tinham efetivamente; a maneira por que ela olhava e falava ao
rapaz de nariz comprido despertava
suspeitas no espírito mais desprevenido a seu respeito.
Acabada a
valsa, passearam um pouco e foram depois para o vão de uma janela. Era então
uma hora, e já o desgraçado Ernesto palmilhava na direção da Rua da Misericórdia.
— Eu
passarei amanhã às seis horas da tarde.
— Às seis
horas, não! disse Rosina.
Era a hora
em que Ernesto costumava ir lá.
— Então às
cinco...
— Às
cinco?... Sim, às cinco, concordou a moça.
O rapaz de
nariz comprido agradeceu com um sorriso esta ratificação do seu tratado amoroso, e proferiu algumas
palavras que a moça ouviu derretida e envergonhada, entre vaidosa e modesta. O
que ele dizia era que Rosina não só era a flor do baile, mas também a flor da
Rua do Conde, e
não só a
flor da Rua
do Conde, mas também a flor da
cidade inteira.
Isto era o
que lhe dissera muitas vezes Ernesto; o rapaz de nariz comprido, entretanto,
tinha uma maneira particular de elogiar uma moça. A graça, por exemplo, com que
ele metia o dedo polegar da mão esquerda no bolso esquerdo do colete, brincando
depois com os outros dedos como se tocasse piano, era de todo ponto inimitável;
nem havia ninguém, pelo menos, naquelas imediações, que tivesse mais elegância na
maneira de arquear os braços, de concertar os cabelos, ou simplesmente de
oferecer uma xícara de chá.
Tais foram
os dotes que venceram o coração inconstante da graciosa Rosina. Só esses? Não.
A simples circunstância de não ter Ernesto a interessante vestidura que ornava
o corpo e realçava as graças do seu afortunado
rival, pode já dar algumas luzes ao leitor de boa fé. Rosina ignorava sem
dúvida a situação precária de Ernesto a respeito da casaca; mas sabia que ele
ocupava um emprego somenos no Arsenal de Guerra, ao passo que o rapaz de nariz
comprido tinha um bom lugar numa casa comercial.
Uma moça
que professasse idéias filosóficas a respeito do amor e do casamento diria que
os impulsos do coração estavam antes de tudo. Rosina não era inteiramente
avessa aos impulsos do coração e à filosofia do amor; mas tinha ambição de figurar alguma
coisa, morria por vestidos novos e espetáculos freqüentes, gostava enfim de
viver à luz pública. Tudo isso podia
dar-lhe, com o tempo, o rapaz de nariz comprido, que ela antevia já na direção
da casa em que trabalhava; o Ernesto porém era difícil que passasse do lugar
que tinha no Arsenal, e em todo o caso não subiria muito nem depressa.
Pesados os
merecimentos de um e de outro, quem perdia era o mísero Ernesto.
Rosina
conhecia o novo candidato desde algumas semanas; mas só naquela noite tivera
ocasião de o tratar de perto, de consolidar, digamos assim, a sua situação. As
relações, até então puramente telegráficas, passaram a ser verbais; e se o leitor gosta de
um estilo arrebicado e gongórico, dir-lhe-ei que tantos foram os telegramas
trocados durante a noite entre eles, que
os Estados vizinhos, receosos de perder uma aliança provável, chamaram às armas
a milícia dos agrados, mandaram sair a armada dos requebros, assestaram a
artilharia dos olhos ternos, dos lenços
na boca, e das expressões suavíssimas; mas toda essa leva de broquéis nenhum
resultado deu porque a formosa Rosina, ao menos naquela noite, achava-se
entregue a um só pensamento.
Quando
acabou o baile, e Rosina entrou na sua alcova, viu um papelinho dobrado no
toucador.
— Que é
isto? disse ela.
Abriu: era
a resposta à carta de Ernesto que ela se esquecera de mandar. Se alguém a
tivesse lido? Não; não era natural. Dobrou a cartinha com muito cuidado,
fechou-a com obreia, guardou-a numa gavetinha, dizendo
consigo:
— É
preciso mandá-la amanhã de manhã.
CAPÍTULO III
— Um
palerma — é o que Rosina queria dizer quando defendeu a fidelidade de Ernesto,
maliciosamente atacada pelas duas amigas.
Havia
apenas três meses que Ernesto namorava a sobrinha de Vieira, que se carteava
com ela, que protestavam um ao outro eterna fidelidade, e nesse curto espaço de tempo tinha já
descoberto cinco ou seis mouros na costa.
Nessas ocasiões fervia-lhe a cólera, e era capaz de deitar tudo abaixo. Mas a boa menina, com a sua varinha
mágica, trazia o rapaz a bom caminho, escrevendo-lhe duas linhas ou dizendo-lhe
quatro palavras de fogo. Ernesto confessava que tinha visto mal, e que ela era excessivamente misericordiosa para com ele.
— Merecia
bem que eu o não amasse mais, observava Rosina com gracioso enfado.
— Oh! não!
— Para que
há de inventar essas coisas?
— Eu não
invento... disseram-me.
— Pois fez
mal em acreditar.
— Fiz mal,
sim... você é um anjo do céu!
Rosina
perdoava-lhe a calúnia, e as coisas continuavam como dantes.
Um amigo a
quem Ernesto confiava todas as suas alegrias e mágoas, a quem tomava por
conselheiro e que era seu companheiro de casa, muitas vezes lhe dizia:
— Olha,
Ernesto, eu creio que estás perdendo o teu trabalho.
— Como
assim?
— Ela não
gosta de ti.
—
Impossível!
— Tu és
apenas um passatempo.
—
Enganas-te; ama-me.
— Mas ama
também a outros muitos.
— Jorge!
— Em
suma...
— Nem mais
uma palavra!
— É uma
namoradeira, concluía o amigo tranqüilamente.
Ouvindo
este peremptório juízo do amigo, Ernesto despedia um olhar longo e profundo, capaz de paralisar todos os
movimentos conhecidos da mecânica; como porém o rosto do amigo não revelasse a
menor impressão de temor ou arrependimento, Ernesto recolhia o olhar — mais cordato
neste ponto que o senador D. Manuel, a quem o visconde de Jequitinhonha dizia
um dia no Senado que recolhesse um riso, e continuava a rir — e tudo acabava em boa e
santa paz.
Tal era a
confiança de Ernesto na flor da Rua do Conde. Se ela lhe dissesse um dia que
tinha na algibeira do vestido uma das torres da Candelária, não é certo, mas é muito provável
que Ernesto lhe aceitasse a notícia.
Desta vez
porém o arrufo era sério. Ernesto vira positivamente a moça receber uma cartinha, às furtadelas, da mão de
uma espécie de primo que freqüentava a casa de Vieira. Seus olhos faiscaram de
raiva quando viram alvejar a misteriosa epístola nas mãos da moça. Fez um gesto
de ameaça ao rapaz, lançou um olhar de desprezo à moça, e saiu. Depois escreveu a carta de que temos notícia, e foi
esperar a resposta na esquina da rua. Que resposta, se ele vira o gesto de
Rosina? Leitor ingênuo, ele queria uma resposta que lhe demonstrasse não ter
visto coisa alguma, uma resposta que o fizesse olhar para si mesmo com desprezo
e nojo. Não achava possível semelhante explicação; mas no fundo d’alma era isso
o que ele queria.
A resposta
veio no dia seguinte. O rapaz que morava com ele foi acordá-lo às oito horas da
manhã, para lhe entregar uma cartinha de Rosina.
Ernesto
deu um salto na cama, assentou-se, abriu a epístola, e leu-a rapidamente. Um ar
de celeste bem-aventurança revelou ao companheiro de Ernesto o conteúdo da carta.
— Tudo
está sanado, disse Ernesto fechando a carta e descendo da cama; ela explicou
tudo, eu tinha visto mal.
— Ah!
disse Jorge olhando com lástima para o amigo; então que diz ela?
Ernesto
não respondeu imediatamente; abriu a carta outra vez, leu-a para si, tornou a
fechá-la, olhou para o teto, para as chinelas, para o companheiro, e só depois
desta série de gestos indicativos da profunda abstração do seu espírito, é que respondeu a
Jorge, dizendo:
— Ela
explica tudo; a carta que eu pensei ser de amores era um bilhete do primo pedindo algum dinheiro ao tio. Diz
que eu sou muito mau em obrigá-la a
falar nestas fraquezas de família, e conclui jurando que me
ama como
nunca seria capaz de amar ninguém. Lê.
Jorge
recebeu a carta e leu, enquanto Ernesto passeava de um para outro lado, gesticulando e monossilabando consigo
mesmo, como se redigisse mentalmente um ato de contrição.
— Então?
que tal? disse ele quando Jorge lhe entregou a carta.
— Tens
razão, tudo se explica, respondeu Jorge.
Ernesto foi
nessa mesma tarde à Rua do Conde. Ela recebeu-o com um sorriso logo de longe.
Na primeira ocasião que tiveram, tudo ficou explicado, declarando-se Ernesto
compungido por haver suspeitado de Rosina, e levando a moça a sua generosidade
ao ponto de lhe ceder um beijo, ao lusco-fusco, antes que a criada viesse
acender as velas de spermacetti dos aparadores.
Agora tem
a palavra o leitor para interpelar-me a respeito das intenções desta moça, que
preferindo a posição do rapaz de nariz comprido, ainda se carteava com Ernesto,
e lhe dava todas as demonstrações de uma preferência que não existia.
As
intenções de Rosina, leitor curioso, eram perfeitamente conjugais. Queria casar, e casar o melhor que pudesse.
Para este fim aceitava a homenagem de todos os seus pretendentes, escolhendo lá
consigo o que melhor correspondesse aos seus desejos, mas ainda assim sem desanimar
os outros, porque o melhor deles podia falhar, e havia para ela uma coisa pior que casar mal, que era não
casar absolutamente.
Este era o
programa da moça. Junte a isso que era naturalmente loureira, que gostava de trazer ao pé de si uma chusma
de pretendentes, muitos dos quais é preciso saber que não pretendiam casar, e
namoravam por passatempo, o que revelava da parte desses cavalheiros uma incurável
vadiação de espírito.
Quem não
tem cão, caça com gato, diz o provérbio. Ernesto era pois, moral e
conjugalmente falando, o gato possível de Rosina, uma espécie de pis-aller, — como dizem os
franceses, — que convinha ter à mão.
CAPÍTULO IV
O moço de
nariz comprido não pertencia ao número de namorados de arribação; seus intentos
eram estritamente conjugais. Tinha vinte e seis anos, era laborioso, benquisto, econômico,
singelo e sincero, um verdadeiro filho
de Minas. Podia fazer a felicidade de uma moça.
A moça,
pela sua parte, soubera insinuar-se tanto no espírito dele, que por pouco lhe
fez perder o emprego. Um dia, chegando-se o patrão à escrivaninha em que ele
trabalhava, viu um papelinho debaixo do tinteiro, e leu a
palavra amor, duas ou três vezes repetida. Uma que fosse bastava para fazê-lo
subir às nuvens. O Sr. Gomes Arruda contraiu as sobrancelhas, concentrou as
idéias, e improvisou uma alocução extensa e ameaçadora, em que o mísero guarda-livros só
percebeu a expressão olho da rua.
Olho da
rua é uma expressão grave. O guarda-livros meditou nela, reconheceu a justiça do patrão, e tratou de
emendar-se dos descuidos, não do amor. O amor ia-se enraizando nele cada vez
mais; era a primeira paixão séria que o rapaz sentia, acrescendo que ele
acertara logo de dar com uma mestra no
ofício.
“Isto
assim não pode continuar”, pensava o rapaz de nariz comprido, coçando o queixo e caminhando uma noite para
casa, “o melhor é casar-me logo de uma vez. Com o que me dão lá em casa e o
produto de alguma escrita por fora,
creio que poderei ocorrer às despesas, o resto pertence a Deus”.
Não tardou
que Ernesto desconfiasse das intenções do rapaz de nariz comprido. Uma vez chegou a surpreender um
olhar da moça e do rival. Enfadou-se, e
na primeira ocasião que teve interpelou a namorada a respeito daquela
circunstância equívoca.
—
Confesse! dizia ele.
— Oh! meu
Deus! exclamou a moça; você de tudo desconfia. Olhei para ele, sim, é verdade,
mas olhei por sua causa.
— Por
minha causa? perguntou Ernesto com um tom gelado de ironia.
— Sim,
examinava-lhe a gravata, que é muito bonita, para dar uma a você no dia de ano-bom. Agora que me obrigou a
descobrir tudo, veja se me lembra outro mimo, porque esse já não serve.
Ernesto
caiu em si; recordou que efetivamente havia no olhar da moça uma tal ou qual
intenção dadival, se me permitem este adjetivo obsoleto; toda a sua cólera converteu-se num sorriso
amável e contrito, e o arrufo não foi adiante.
Dias
depois, era um domingo, estando ele e ela na sala, e um filho de Vieira à janela, foram os dois namorados
interrompidos pelo pequeno que descera, gritando:
— Aí vem
ele! aí vem ele!
— Ele
quem? disse Ernesto sentindo esmigalhar-se-lhe o coração.
Chegou à
janela: era o rival.
Apareceu a
tempo a tia de Rosina; uma tempestade iminente já pairava na fronte afogueada
de Ernesto.
Pouco
depois entrou na sala o rapaz de nariz comprido, que, ao ver Ernesto, pareceu
sorrir maliciosamente. Ernesto encordoou-o. Seus olhares, se fossem punhais,
teriam cometido dois assassinatos naquele instante. Conteve-se, porém, para
melhor observar os dois. Rosina não parecia
prestar ao outro atenção de caráter especial; tratava-o com polidez apenas.
Isto aquietou um pouco o ânimo revolto do Ernesto, que ao cabo de uma hora estava restituído à sua
usual bem-aventurança.
Não
reparou porém nos olhares desconfiados que o rapaz de nariz comprido lhe
lançava de quando em quando. O sorriso malicioso desaparecera dos lábios do
guarda-livros. A suspeita entrara-lhe no espírito ao ver a maneira indiferente, ou
quase, com que o tratava Rosina, posto
tratasse de igual modo ao outro pretendente.
“Será
seriamente um rival?” pensava o rapaz de nariz comprido.
Na
primeira ocasião em que pôde trocar duas palavras com a namorada, sem testemunhas, o que foi logo no dia
seguinte, manifestou a desconfiança que lhe escurecera o espírito até ali tão
cor-de-rosa. Rosina soltou uma risada, — uma dessas risadas que levam a
convicção ao fundo d’alma — a tal ponto que o rapaz de nariz comprido julgou de
sua dignidade não insistir na absurda suspeita.
— Já lhe
disse: ele bem vontade tem de que eu o namore, mas perde o tempo: eu só tenho
uma cara e um coração.
— Oh!
Rosina, tu és um anjo!
— Quem
dera!
— Um anjo,
sim, insistiu o rapaz de nariz comprido; e creio que posso chamar-te brevemente
minha esposa.
Os olhos
da moça faiscaram de contentamento.
— Sim,
continuou o namorado; daqui a dois meses estaremos casados...
— Ah!
— Se
todavia...
Rosina
empalideceu.
— Todavia?
repetiu ela.
— Se todavia,
o Sr. Vieira consentir...
— Por que
não? disse a moça tranqüilizado-se do susto que tivera; ele deseja a minha felicidade; e o casamento
contigo é a minha felicidade maior. Ainda quando porém se oponha aos impulsos
do meu coração, basta que eu queira para que os nossos desejos se realizem. Mas
descansa, meu tio não porá obstáculos.
O rapaz de
nariz comprido ficou ainda a olhar para a moça alguns minutos sem dizer palavra; admirava duas coisas: a
força d’alma de Rosina e o amor que ela
lhe dedicava. Quem rompeu o silêncio foi ela.
— Mas
então daqui a dois meses?
— Só se a
sorte me for adversa.
— E poderá
sê-lo?
— Quem
sabe? respondeu o rapaz de nariz comprido com um suspiro de dúvida.
Logo
depois desta perspectiva de felicidade, a concha em que pesavam as esperanças
de Ernesto começou a subir um pouco. Ele via que Rosina efetivamente parecia ir
diminuindo as cartas, e nas poucas que já então recebia dela, a paixão era
menos intensa, a frase estudada, acanhada e fria. Quando estavam juntos havia
menos intimidade expansiva; a presença dele parecia constrangê-la. Ernesto
entrou seriamente a crer que a batalha estava perdida.
Infelizmente
a tática deste namorado era perguntar à própria moça se eram fundadas as
suspeitas dele, ao que ela respondia vivamente que não, e isto bastava a restituir-lhe a paz do
espírito. Não era longa nem profunda a
quietação; o laconismo epistolar de Rosina, a frieza de seus modos, a presença do outro, tudo isso
sombreava singularmente o espírito de
Ernesto. Mas tão depressa caía no abismo do desespero, como ascendia às regiões
da celeste bem-aventurança, — mostrando assim o que a natureza queria que ele fosse, — alma
inconsistente e passiva — levada, como a
folha, ao sabor de todos os ventos.
Entretanto,
era difícil que a verdade não se lhe metesse pelos olhos. Um dia reparou que além da suspeitosa
afetuosidade de Rosina, havia da parte do tio certas atenções características
para com o rival. Não se enganava; conquanto o novo pretendente ainda não
houvesse pedido formalmente a mão da moça, era quase certo para o Sr. Vieira
que nele se preparava novo sobrinho, e acertando de ser este um homem do comércio, não podia haver, na opinião do tio,
mais feliz escolha.
Desisto de
pintar os desesperos, os terrores, as imprecações de Ernesto no dia em que a
certeza da derrota mais funda e de raiz se lhe cravou no coração. Já então lhe
não bastou a negativa de Rosina, que aliás lhe pareceu frouxa, e efetivamente o
era. O triste moço chegou a desconfiar que a amada e o rival estariam de acordo
para mofar dele.
Como por
via de regra, é da nossa miserável condição que o amor-próprio domine o simples
amor, apenas aquela suspeita lhe pareceu provável, apoderou-se dele uma feroz
indignação, e duvido que nenhum quinto ato de melodrama ostente maior soma de
sangue derramado do que ele verteu na fantasia. Na fantasia, apenas, compassiva
leitora, não só porque ele era incapaz
de fazer mal a um seu semelhante, mas sobretudo porque repugnava à sua natureza
achar uma resolução qualquer. Por esse motivo, depois de muito e longo cogitar,
confiou todos os seus pesares e suspeitas ao companheiro de casa e pediu-lhe um
conselho; Jorge deu-lhe dois.
— Minha
opinião, disse Jorge, é que não te importes com ela e vás trabalhar, que é coisa
mais séria.
— Nunca!
— Nunca
trabalhar?
— Não;
nunca esquecê-la.
— Bem,
disse Jorge descalçando a bota do pé esquerdo, nesse caso vai ter com esse
sujeito de quem desconfias e entende-te com ele.
— Aceito!
exclamou Ernesto; é o melhor. Mas, continuou ele depois de refletir um
instante, e se ele não for meu rival, que hei de fazer? Como descobrir se há
outro?
— Nesse
caso, disse Jorge, estendendo-se filosoficamente na marquesa, nesse caso o meu
conselho é que tu, ele e ela vão todos para o diabo que os carregue.
Ernesto
cerrou os ouvidos à blasfêmia, vestiu-se e saiu.
CAPÍTULO V
Apenas
saiu à rua, embicou Ernesto para a casa em que trabalhava o rapaz de nariz
comprido, resolvido a explicar-se de uma vez com ele. Hesitou alguma coisa, é verdade, e esteve a
pique de arrepiar carreira; mas a crise
era tão violenta que triunfou da frouxidão de ânimo, e vinte minutos depois chegava ele ao seu destino. Não
entrou no escritório do rival: pôs-se a
passear de um lado para outro, à espera que ele saísse, o
que se
verificou daí a três quartos de hora, três enfadonhos e mortais quartos de
hora.
Ernesto
aproximou-se casualmente do rival; cumprimentaram-se com um sorriso acanhado e amarelo, e ficaram alguns
segundos a olhar um para o outro. Já o guarda-livros ia tirando o chapéu e
despedindo-se, quando Ernesto lhe
perguntou:
— Vai hoje
à Rua do Conde?
— Talvez.
— A que
horas?
— Não sei
ainda. Por quê?
— Iríamos
juntos. Eu vou às oito.
O rapaz de
nariz comprido não respondeu.
— Para que
lado vai agora? perguntou Ernesto depois de algum silêncio.
— Vou ao
Passeio Público, se o senhor lá não for, respondeu resolutamente o rival.
Ernesto
empalideceu.
— Quer
assim fugir de mim?
— Sim,
senhor.
— Pois eu
não; desejo até que haja uma explicação entre nós. Espere... não me volte as
costas. Saiba que eu também sou atrevido, menos de língua ainda que de mão.
Vamos, dê-me o braço e caminhemos ao Passeio Público.
O rapaz de
nariz comprido teve ímpetos de atracar-se com o rival e experimentar-lhe as
forças; mas estavam numa rua comercial; todo o seu futuro voaria pelos ares.
Preferiu dar-lhe as costas e seguir caminho. Executava já este plano, quando
Ernesto lhe gritou:
— Venha
cá, namorado sem-ventura!
O pobre
rapaz voltou-se rapidamente.
— Que diz
o senhor? perguntou ele.
— Namorado
sem ventura, repetiu Ernesto cravando os olhos no rosto do rival a ver se lhe
descobria uma confissão qualquer.
— É
singular, replicou o rapaz de nariz comprido, é singular que o senhor me chame namorado sem-ventura, quando ninguém
ignora a triste figura que tem feito para obter as boas graças de uma moça que
é minha...
— Sua!
— Minha!
— Nossa,
direi eu...
— Senhor!
O rapaz de
nariz comprido engatilhou um soco; a segurança e tranqüilidade com que Ernesto
olhava para ele mudaram-lhe o curso das idéias. Falaria ele verdade? Essa moça,
que tanto amor lhe jurava, com quem
meditava casar dentro de pouco tempo, mas de quem alguma vez desconfiara, teria
dado efetivamente àquele homem o direito de a chamar sua? Esta simples interrogação
perturbou o espírito do rapaz, que esteve cerca de dois minutos a olhar
mudamente para Ernesto, e este a olhar mudamente para ele.
— O que o
senhor disse agora é muito grave; preciso de uma explicação.
— Peço-lhe
explicação igual, respondeu Ernesto.
— Vamos ao
Passeio Público.
Seguiram
caminho, a princípio silenciosos, não só porque a situação os acanhava naturalmente, mas também porque cada
um deles receava ouvir uma cruel revelação. A conversa começou por monossílabos
e frases truncadas, mas foi a pouco e pouco fazendo-se natural e correta. Tudo quanto os leitores sabem de um e outro foi ali
exposto por ambos, e por ambos ouvido entre abatimento e cólera.
— Se tudo
quanto o senhor diz é a expressão da verdade, observou o rapaz de nariz
comprido descendo a Rua das Marrecas, a conclusão é que fomos enganados...
— Vilmente
enganados, emendou Ernesto.
— Pela
minha parte, tornou o primeiro, recebo com isto um grande golpe porque eu
amava-a muito, e pretendia fazê-la minha esposa, o que sucederia breve. A minha boa fortuna fez com
que o senhor me avisasse a tempo...
— Talvez
me censurem o passo que dei; mas o resultado que vamos colher justifica tudo. Nem por isso creio que
padeço menos... eu amava loucamente aquela moça!
Ernesto
proferiu estas palavras tão de dentro, que elas repercutiram na coração do
rival, e ambos ficaram algum tempo calados, a devorar consigo a dor e a
humilhação. Ernesto rompeu o silêncio soltando um magoadíssimo suspiro, na ocasião em que
entravam no Passeio. Só o guarda pôde ouvi-lo; o rapaz de nariz comprido ia
revolvendo no espírito uma dúvida.
“Devo eu
condenar tão ligeiramente aquela moça? perguntou ele a si mesmo; e não será este sujeito um pretendente
vencido que, por semelhante meio quer obter a minha neutralidade?”
O rosto de
Ernesto não parecia dar razão à conjetura do rival; todavia, como o lance era grave e cumpria não ir por
aparências, o rapaz de nariz comprido abriu de novo o capítulo das revelações,
no que foi acompanhado pelo rival. Todas elas iam concordando entre si; os incidentes e os gestos que um relembrava,
tinham eco na memória do outro. O que
porém decidiu tudo foi a apresentação de uma carta que cada um deles tinha casualmente no bolso. O
texto de ambas mostrava que eram recentes; a expressão de ternura não era a
mesma nas duas epístolas, porque Rosina, como sabemos, ia afrouxando o tom em
relação a Ernesto; mas era quanto bastava para dar ao rapaz de nariz comprido o
golpe de misericórdia.
—
Desprezemo-la, disse este, quando acabou de ler a carta do rival.
— Só isso?
perguntou Ernesto; o simples desprezo será bastante?
— Que
vingança tiraríamos dela? objetou o rapaz de nariz comprido. Ainda que alguma
fosse possível, não seria digna de nós...
Calou-se;
mas tocado de uma súbita idéia exclamou:
— Ah!
lembra-me um meio.
— Qual?
—
Mandemos-lhe uma carta de rompimento, mas uma carta de igual teor.
A idéia
sorriu logo ao espírito de Ernesto, que parecia ainda mais humilhado que o
outro, e ambos foram dali redigir a carta fatal.
No dia
seguinte, logo depois do almoço, estava Rosina em casa muito sossegada, longe de esperar o golpe, e até
forjando planos de futuro, que assentavam
todos no rapaz de nariz comprido, quando o moleque lhe
apareceu
com duas cartas.
— Nhanhã
Rosina, disse ele, esta carta é de sinhô Ernesto, e esta...
— Que é
isso? disse a moça; os dois...
— Não,
explicou o moleque; um estava na esquina de cima, outro na esquina de baixo.
E fazendo
tinir no bolso alguns cobres que os dois rivais lhe haviam dado, o moleque
deixou a senhora moça ler à vontade as duas missivas. A primeira que abriu foi a de Ernesto. Dizia
assim:
Senhora!
Hoje que tenho certeza da sua perfídia, certeza que já nada me pode arrancar do espírito, tomo a liberdade de
lhe dizer que está livre e eu reabilitado. Basta de humilhações! Pude dar-lhe
crédito enquanto lhe era possível enganar-me. Agora... Adeus para sempre!
Rosina
levantou os ombros ao ler esta carta. Abriu rapidamente a do rapaz de nariz
comprido, e leu:
Senhora!
Hoje que tenho certeza da sua perfídia, certeza que já nada me pode...
Daqui para
diante foi crescendo a surpresa. Ambos se despediam; ambos por
igual teor. Logo, tinham descoberto tudo um ao outro. Não havia meio de reparar
nada; tudo estava perdido!
Rosina não
costumava chorar. Esfregava às vezes os olhos, para os fazer vermelhos, quando
havia necessidade de mostrar a um namorado que se ressentia de alguma coisa. Desta vez porém
chorou deveras; não de mágoa, mas de
raiva. Triunfavam ambos os rivais; ambos lhe fugiam, e lhe davam de comum
acordo o último golpe. Não havia resistir; entrou-lhe na alma o desespero. Por
desgraça não havia no horizonte a mais ligeira
vela. O primo a quem aludimos num dos capítulos anteriores andava com idéias a
respeito de outra moça, e idéias já conjugais. Ela mesma descuidara o seu
sistema durante os últimos trinta dias deixando sem resposta alguns olhares
interrogadores. Estava pois abandonada de Deus e dos homens.
Não; ainda
lhe restava um recurso.
CAPÍTULO VI
Um mês
depois daquele fatal desastre, estando Ernesto em casa a conversar com o companheiro e mais dois
amigos, um dos quais era o rapaz de nariz comprido, ouviu bater palmas. Foi à
escada; era o moleque
da Rua
Nova do Conde.
— Que me
queres? disse ele com ar severo, suspeitando que o moleque viesse pedir-lhe
dinheiro.
— Venho
trazer isto, disse o moleque baixinho.
E tirou do
bolso uma carta que entregou a Ernesto.
A primeira
idéia de Ernesto foi recusar a carta e pôr o moleque a pontapés pela escada
abaixo; mas o coração disse-lhe uma coisa, como ele mesmo confessou.
Estendeu a mão, recebeu a carta, abriu-a e leu.
Dizia
assim:
Ainda uma
vez curvo-me às tuas injustiças. Estou cansada de chorar. Não posso mais viver debaixo da ação de uma
calúnia. Vem ou eu morro!
Ernesto
esfregou os olhos; não podia crer no que acabava de ler. Seria um novo ardil, ou a expressão da verdade?
Ardil podia ser; mas Ernesto atentou bem
e pareceu-lhe ver o sinal de uma lágrima. Evidentemente a moça chorara. Mas se
chorara é porque padecia; e nesse caso...
Nestas e
noutras reflexões gastou Ernesto cerca de oito a dez minutos. Não sabia que
resolvesse. Acudir ao chamado de Rosina era esquecer a perfídia com que ela se houve amando a outro
em cujas mãos vira até uma carta sua. Mas, não ir podia ser contribuir para a
morte de uma criatura que, ainda quando
não tivesse sido amada por ele, merecia os seus sentimentos de humanidade.
— Diga que
irei logo, respondeu enfim Ernesto.
Quando
voltou para a sala trazia o rosto mudado. Os amigos repararam na mudança e
procuraram descobrir-lhe a causa.
— Algum
credor, dizia um.
— Não lhe
trouxeram dinheiro, acrescentava outro.
— Namoro
novo, opinava o companheiro de casa.
— É tudo
isso talvez, respondeu Ernesto com um modo que queria ser alegre.
De tarde
preparou-se Ernesto e dirigiu-se para a Rua Nova do Conde. Dez
ou doze
vezes parou resolvido a voltar; mas um minuto de reflexão
tirava-lhe
os escrúpulos e o rapaz prosseguia em seu caminho.
“Há
mistério nisto tudo, dizia ele consigo e relendo a carta de Rosina. É certo que
ele me revelou tudo, e até me leu cartas; nisto não há que duvidar. Rosina é culpada; enganou-me;
namorava a outro, dizendo-me que só me
amava a mim. Mas por que esta carta? Se ela amava ao outro por que lhe não
escreve? Investiguemos tudo isto.”
A última
hesitação do digno rapaz foi ao entrar na Rua Nova do Conde; seu espírito
vacilou dessa vez mais que nunca. Dez minutos gastou em passinhos, ora para
trás, ora para diante, sem assentar numa coisa definitiva. Afinal deitou o
coração à larga e seguiu afoitamente a senda que o destino parecia indicar-lhe.
Quando
chegou à casa de Vieira, estava Rosina na sala com a tia. A moça teve um
movimento de alegria; mas, tanto quanto Ernesto pôde examinar-lhe as feições, a
alegria não foi tal que pudesse disfarçar-lhe os sulcos das lágrimas. O que é certo é que um
véu de melancolia parecia envolver os olhos travessos da bela Rosina. Nem já
eram travessos; estavam desmaiados ou mortos.
“Oh! ali
está a inocência!” disse Ernesto consigo.
Ao mesmo
tempo, envergonhado por esta opinião tão benevolente, e lembrando-se das
revelações do rapaz de nariz comprido, Ernesto assumiu um ar severo e grave, menos de
namorado do que de juiz, menos de juiz
que de algoz.
Rosina
cravou os olhos no chão.
A tia da
moça perguntou a Ernesto as causas da sua ausência tão prolongada. Ernesto
alegou muito trabalho e alguma doença, as primeiras desculpas que ocorrem a todo o homem que não
tem desculpa. Trocadas mais algumas palavras, saiu a tia da sala para ir dar
umas ordens, tendo já ordenado
disfarçadamente ao Juquinha que ficasse na sala. Juquinha porém trepou a uma
cadeira e pôs-se à janela; os dois tiveram tempo
para
explicações.
A situação
era esquerda; mas não se podia perder tempo. Bem o compreendeu Rosina, que
rompeu logo estas palavras:
— Não tem
remorsos?
— De quê?
perguntou Ernesto espantado.
— Do que
me fez?
— Eu?
— Sim,
abandonando-me sem uma explicação. A causa adivinho eu qual é, alguma nova suspeita, ou antes alguma
calúnia...
— Nem
calúnia, nem suspeita, disse Ernesto depois de um momento de silêncio; mas só
verdade.
Rosina
sufocou um grito; seus lábios pálidos e trêmulos quiseram murmurar alguma
coisa, mas não puderam; dos olhos arrebentaram-lhe duas grossas lágrimas. Ernesto
não podia vê-la chorar; por mais cheio de razões que estivesse, em vendo
lágrimas, curvava-se logo e pedia-lhe perdão. Desta vez porém era impossível
que tão depressa voltasse ao antigo estado. As revelações do rival estavam
ainda frescas na memória.
Curvou-se,
entretanto, para a moça e pediu-lhe que não chorasse.
— Que não
chore! disse ela com voz lacrimosa. Pede-me que não chore quando eu vejo fugir-me a felicidade das mãos,
sem ao menos merecer a sua estima,
porque o senhor despreza-me; sem ao menos saber o que é
essa
calúnia para desmenti-la ou desmascará-la...
— É capaz
disso? perguntou Ernesto com fogo. É capaz de confundir a calúnia?
— Sou,
disse ela com um magnífico gesto de dignidade.
Ernesto
expôs em resumo a conversa que tivera com o rapaz de nariz comprido, e concluiu
dizendo que vira uma carta dela. Rosina ouviu calada a narração: tinha o peito
ofegante; sentia-se a comoção que a dominava.
Quando ele acabou, soltou uma torrente de lágrimas.
— Meu
Deus! disse baixinho Ernesto, podem ouvi-la.
— Não
importa, exclamou a moça; estou disposta a tudo...
— Diga-me,
pode negar o que lhe acabo de contar?
— Tudo,
não; alguma coisa é verdade, respondeu ela com voz triste.
— Ah!
— A
promessa de casamento é mentira; não houve mais que duas cartas, duas apenas, e
isto... por sua culpa...
— Por
minha culpa! exclamou Ernesto tão assombrado como se acabasse de ver um dos
castiçais a dançar.
— Sim,
repetiu ela, por sua culpa. Não se lembra? Tinha-se arrufado uma vez comigo, e
eu... foi uma loucura... para metê-lo em brios, para vingar-me... que
loucura!... correspondi ao namoro daquele indivíduo sem educação... foi
demência minha, bem vejo... Mas que quer? eu estava despeitada...
A alma de
Ernesto ficou fortemente abalada com esta exposição que a moça lhe fazia dos acontecimentos. Era claro
para ele que Rosina negaria tudo, se o
seu procedimento tivesse alguma intenção má; a carta, diria que era imitação da sua letra. Mas não; ela
confessava tudo com a mais nobre e rude singeleza deste mundo; somente — e
nisto estava a chave da situação, — a
moça explicava a que impulsos de despeito cedera, mostrando assim, se podemos
comparar o coração a um pastel, debaixo do
invólucro da leviandade a nata do amor.
Decorreram
alguns segundos de silêncio, em que a moça tinha os olhos pregados no chão, na mais triste e melancólica
atitude que jamais teve uma donzela arrependida.
— Mas não
viu que esse ato de loucura podia causar a minha morte? disse Ernesto.
Rosina
estremeceu ouvindo estas palavras que Ernesto lhe disse com a voz mais doce dos
seus antigos dias; levantou os olhos para ele e tornou a pousá-los no chão.
— Se eu
tivesse refletido nisso, observou ela, não faria nada do que fiz.
— Tem
razão, ia dizendo Ernesto, mas levado de um mau espírito de vingança entendeu
que a leviandade da moça devia ser punida com alguns minutos mais de dúvida e
recriminação.
A moça
ouviu ainda muitas coisas que lhe disse Ernesto, e a todas respondeu com um ar
tão contrito e palavras tão repassadas de amargura, que o nosso namorado sentia
quase rebentarem-lhe as lágrimas dos
olhos. Os de Rosina estavam já mais tranqüilos, e a limpidez começava a tomar o lugar da sombra
melancólica. A situação era quase a mesma
de algumas semanas antes; faltava só consolidá-la com o tempo. Entretanto,
disse Rosina:
— Não
pense que lhe peço mais do que me cumpre. Meu procedimento alguma punição há de ter, e eu estou
perfeitamente resignada. Pedi-lhe que viesse aqui a fim de me explicar o seu
silêncio; pela minha parte expliquei-lhe o meu desvario. Não posso ambicionar
mais...
— Não
pode?...
— Não. Meu
fim era não desmerecer a sua estima.
— E por
que não o meu amor? perguntou Ernesto. Parece-lhe que o coração possa apagar de
repente, e por simples esforço de vontade, a chama de que viveu longos dias?
— Oh! isso
é impossível! respondeu a moça; e pela minha parte sei o que vou padecer...
— Demais,
disse Ernesto, o culpado de tudo fui eu, francamente o confesso. Ambos nós temos que perdoar um a
outro; perdôo-lhe a leviandade; perdoa-me o fatal arrufo?
Rosina, a
menos de ter um coração de bronze, não podia deixar de conceder o perdão que o
namorado lhe pedia. Foi recíproca a generosidade. Como na volta do filho
pródigo, as duas almas festejaram aquela
renascença de felicidade, e amaram-se com mais força que nunca.
Três meses
depois, dia por dia, foi celebrado na igreja de S. Ana, que era então no Campo
d’Aclamação, o consórcio dos dois namorados. A noiva estava radiante de ventura; o noivo parecia
respirar os ares do paraíso celeste. O
tio de Rosina deu um sarau a que compareceram os amigos de Ernesto, exceto o rapaz de nariz comprido.
Não quer
isto dizer que a amizade dos dois viesse a esfriar. Pelo contrário, o rival de
Ernesto revelou certa magnanimidade, apertando ainda mais os laços que o prendiam desde a
singular circunstância que os aproximou. Houve mais: dois anos depois do
casamento de Ernesto, vemos os dois associados num armarinho, reinando entre
ambos a mais serena intimidade. O rapaz
de nariz comprido é padrinho de um filho de Ernesto.
— Por que
não te casas? pergunta Ernesto às vezes ao seu sócio, amigo e compadre.
— Nada,
meu amigo, responde o outro, eu já agora morro solteiro.
---
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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