
AURORA SEM DIA
Naquele
tempo contava Luís Tinoco vinte e um anos. Era um rapaz de estatura meã, olhos
vivos, cabelos em desordem, língua inesgotável e paixões impetuosas. Exercia um modesto emprego
no foro, donde tirava o parco sustento, e morava com o padrinho cujos meios de
subsistência consistiam no ordenado da sua aposentadoria. Tinoco estimava o
velho Anastácio e este tinha ao afilhado
igual afeição.
Luís
Tinoco possuía a convicção de que estava fadado para grandes destinos, e foi
esse durante muito tempo o maior obstáculo da sua existência. No tempo em que o
Dr. Lemos o conheceu começava a arder-lhe a chama poética. Não se sabe como
começou aquilo. Naturalmente os louros alheios entraram a tirar-lhe o sono. O
certo é que um dia de manhã acordou Luís
Tinoco escritor e poeta; a inspiração, flor abotoada ainda na véspera,
amanheceu pomposa e viçosa. O rapaz atirou-se ao papel com ardor e perseverança, e entre as
seis horas e as nove, quando o foram
chamar para almoçar, tinha produzido um soneto, cujo principal defeito era ter
cinco versos com sílabas de mais e outros cinco com sílabas de menos. Tinoco
levou a produção ao Correio Mercantil, que a publicou entre os a pedidos.
Mal
dormida, entremeada de sonhos interruptos, de sobressaltos e ânsias, foi a
noite que precedeu a publicação. A aurora raiou enfim, e Luís Tinoco, apesar de
pouco madrugador, levantou-se com o sol e foi ler o soneto impresso. Nenhuma mãe contemplou o filho
recém-nascido com mais amor do que o rapaz leu e releu a produção poética,
aliás decorada desde a véspera. Afigurou-se-lhe que todos os leitores do Correio Mercantil estavam fazendo o
mesmo; e que cada um admirava a recente revelação literária, indagando de quem seria esse nome
até então desconhecido.
Não dormiu
sobre os louros imaginários. Daí a dois dias, nova composição, e desta vez saiu uma longa ode
sentimental em que o poeta se queixava à lua do desprezo em que o deixara a
amada, e já entrevia no futuro a morte
melancólica de Gilbert. Não podendo fazer despesas, alcançou, por intermédio de
um amigo, que a poesia fosse impressa de graça, motivo este que retardou a
publicação por alguns dias. Luís Tinoco tragou a custo a demora, e não sei se
chegou a suspeitar de inveja os redatores
do Correio Mercantil. A poesia saiu enfim; e tal contentamento produziu no poeta que
foi logo fazer ao padrinho a grande revelação.
— Leu hoje
o Correio Mercantil, meu padrinho? perguntou ele.
— Homem,
tu sabes que eu só lia os jornais no tempo em que era empregado efetivo. Desde
que me aposentei não li mais os periódicos...
— Pois é
pena! disse Tinoco com ar frio; queria que me dissesse o que pensa de uns versos que lá vêm.
— E de
mais a mais versos! Os jornais já não falam de política? No meu tempo não
falavam de outra coisa.
— Falam de
política e publicam versos, porque ambas as coisas têm entrada na imprensa. Quer ler os versos?
— Dá cá.
— Aqui
estão.
O poeta
puxou da algibeira o Correio
Mercantil, e o velho Anastácio entrou a ler
para si a obra do afilhado. Com os olhos pregados no padrinho, Luís Tinoco
parecia querer adivinhar as impressões que produziam nele os seus elevados
conceitos, metrificados com todas as liberdades possíveis e impossíveis do
consoante. Anastácio acabou de ler os versos e fez com a boca um gesto de enfado.
— Isto não
tem graça, disse ele ao afilhado estupefato; que diabo tem a lua com a
indiferença dessa moça, e a que vem aqui a morte deste estrangeiro?
Luís
Tinoco teve vontade de descompor o padrinho, mas limitou-se a atirar os cabelos
para trás e a dizer com supremo desdém:
— São coisas de poesia que nem todos entendem; esses versos sem graça são meus.
— Teus?
perguntou Anastácio no cúmulo do espanto.
— Sim,
senhor.
— Pois tu
fazes versos?
— Assim
dizem.
— Mas quem
te ensinou a fazer versos?
— Isto não
se aprende; traz-se do berço.
Anastácio
leu outra vez os versos, e só então reparou na assinatura do afilhado. Não
havia que duvidar: o rapaz dera em poeta. Para o velho aposentado era isto uma
grande desgraça. Esse, ligava à idéia de poeta a idéia de mendicidade. Tinham-lhe pintado
Camões e Bocage, que eram os nomes literários que ele conhecia, como dois
improvisadores de esquina, expectorando
sonetos em troca de algumas moedas, dormindo nos adros das igrejas e comendo nas cocheiras das
casas-grandes. Quando soube que o seu
querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se
encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado.
— Dou-lhe
parte de que o Luís está poeta.
— Sim?
perguntou-lhe o Dr. Lemos. E que tal lhe saiu o poeta?
— Não me
importa se saiu mau ou bom. O que sei é que é a maior desgraça que lhe podia acontecer, porque isto
de poesia não dá nada de si. Tenho medo que deixe o emprego, e fique aí pelas
esquinas a falar à lua, cercado de moleques.
O Dr.
Lemos tranqüilizou o homem dizendo-lhe que os poetas não eram esses vadios que ele imaginava; mostrou-lhe
que a poesia não era obstáculo para
andar como os outros, para ser deputado, ministro ou diplomata.
— No
entanto, disse o Dr. Lemos, desejarei falar ao Luís; quero ver o que ele tem
feito, porque como eu também fui outrora um pouco versejador, posso já saber se
o rapaz dá de si.
Luís
Tinoco foi ter com ele; levou-lhe o soneto e a ode impressos, e mais algumas produções não publicadas. Estas
orçavam pela ode ou pelo soneto. Imagens
safadas, expressões comuns, frouxo alento e nenhuma arte; apesar de tudo isso, havia de quando em
quando algum lampejo que indicava da parte do neófito propensão para o mister;
podia ser ao cabo de algum tempo um excelente trovador de salas.
O Dr.
Lemos disse-lhe com franqueza que a poesia era uma arte difícil e que pedia
longo estudo; mas que, a querer cultivá-la a todo o transe, devia ouvir alguns
conselhos necessários.
— Sim,
respondeu ele, pode lembrar alguma coisa; eu não me nego a aceitar-lhe o que me parecer bom, tanto mais
que eu fiz estes versos muito à pressa e não tive ocasião de os emendar.
— Não me
parecem bons estes versos, disse o Dr. Lemos; poderia rasgá-los e estudar antes
algum tempo.
Não é
possível descrever o gesto de soberbo desdém, com que Luís Tinoco arrancou os
versos ao doutor e lhe disse:
— Os seus
conselhos valem tanto como a opinião de meu padrinho. Poesia não se aprende,
traz-se do berço. Eu não dou atenção a invejosos. Se os versos não fossem bons,
o Mercantil não os publicava.
E saiu.
Daí em
diante foi impossível ter-lhe mão.
Tinoco
entrou a escrever como quem se despedia
da vida. Os
jornais andavam cheios de
produções suas, umas tristes, outras alegres, não daquela tristeza nem daquela alegria que vem
diretamente do coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria
que fazia bocejar. Luís Tinoco
confessava singelamente ao mundo que fora invadido do ceticismo byroniano, que
tragara até às fezes a taça do infortúnio, e que para ele a vida tinha escrita
na porta a inscrição dantesca. A inscrição era citada com as próprias palavras
do poeta, sem que aliás Luís Tinoco o tivesse
lido nunca. Ele respingava nas alheias produções uma coleção de alusões e nomes
literários, com que fazia as despesas de sua erudição, e não lhe era preciso,
por exemplo, ter lido Shakespeare para falar do to be or not to be, do
balcão de Julieta e das torturas de Otelo. Tinha a respeito de biografias
ilustres noções extremamente singulares. Uma vez, agastando-se com a sua amada —
pessoa que ainda não existia, — aconteceu-lhe dizer que o clima fluminense
podia produzir monstros daquela espécie, do mesmo modo que o sol italiano
dourara os cabelos da menina Aspásia. Lera casualmente alguns dos salmos do
Padre Caldas, e achou-os soporíferos; falava mais benevolamente da “Morte de
Lindóia”, nome que ele dava ao poema de
J. Basílio da Gama, de que só conhecia quatro
versos.
Ao cabo de
cinco meses tinha Luís Tinoco produzido uma quantia razoável de versos, e
podia, mediante muitos claros e páginas em branco, dar um volume de cento e
oitenta páginas. A idéia de imprimir um livro sorriu-lhe; e daí a pouco era
raro passar por uma loja sem ver no mostrador um prospecto assim concebido:
GOIVOS E CAMÉLIAS
POR
LUÍS TINOCO
Um volume de 200 páginas... 2$000 rs.
O Dr.
Lemos encontrou-o algumas vezes na rua. Andava com o ar inspirado de todos os
poetas novéis que se supõem apóstolos e mártires. Cabeça alta, olhos vagos, cabelos grandes e
caídos; algumas vezes abotoava o paletó e punha a mão ao peito por ter visto
assim um retrato de Guizot; outras vezes andava com as mãos para trás.
O Dr.
Lemos falou-lhe a terceira vez que o viu assim, porque das duas primeiras o rapaz esquivou-se por modo que não
pôde deter-lhe o passo. Fez-lhe alguns
elogios às suas produções. Expandiu-se-lhe o rosto:
—
Obrigado, disse ele; esses elogios são o melhor prêmio das minhas fadigas. O
povo não está preparado para a poesia: as pessoas inteligentes, como o doutor, podem julgar do
merecimento dos outros. Leu a minha “Flor pálida”?
— Uns
versos publicados no domingo?
— Sim.
— Li; são
galantíssimos.
— E
sentimentais. Fiz aquela poesia em meia hora, e não emendei nada. Acontece-me
isso muita vez. Que lhe parecem aqueles esdrúxulos?
— Acho-os
esdrúxulos.
— São
excelentes. Agora vou levar algumas estrofes que compus ontem. Intitulam-se “À
beira de um túmulo”.
— Ah!
— Já
assinou o meu livro?
— Ainda
não.
— Nem
assine. Quero dar-lhe um volume. Sai brevemente. Estou recolhendo as assinaturas.
Goivos e camélias; que lhe parece o título?
—
Magnífico.
— Achei-o
de repente. Lembraram-me outros, mas eram comuns. Goivos e Camélias parece
que é um título distinto e original; é o mesmo que se dissesse: tristezas e alegrias.
—
Justamente.
Durante
esse tempo, ia o poeta tirando do bolso uma aluvião de papéis. Procurava as estrofes de que falara. O Dr.
Lemos quis esquivar-se, mas o homem era implacável; segurou-lhe no braço.
Ameaçado de ouvir ler os
versos na
rua, o doutor convidou o poeta a ir jantar com ele.
Foram a um
hotel próximo.
— Ah! meu
amigo, dizia ele em caminho, não imagina quantos invejosos andam a denegrir o
meu nome. O meu talento tem sido o alvo de mil ataques; mas eu já estava
disposto a isto. Não me espanto. A enxerga de Camões é um exemplo e uma
consolação. Prometeu, atado ao Cáucaso, é o emblema do gênio. A posteridade é a
vingança dos que sofrem os desdéns do seu tempo.
No hotel
procurou o Dr. Lemos um lugar mais afastado, onde não chamassem muito a atenção
das outras pessoas.
— Aqui
estão as estrofes, disse Luís Tinoco conseguindo arrancar de um maço de papéis
a poesia anunciada.
— Não lhe
parece melhor lê-las à sobremesa?
— Como
quiser, respondeu ele; tem razão, porque eu também estou com fome.
Luís Tinoco era todo
prosa à mesa do jantar; comeu desencadernadamente.
— Não
repare, dizia ele de quando em quando; isto é o animal que se está alimentando.
O espírito aqui não tem culpa nenhuma.
À
sobremesa, estando na sala apenas uns cinco fregueses, desdobrou Luís Tinoco o fatal papel e leu as anunciadas
estrofes, com uma melopéia afetada e
perfeitamente ridícula. Os versos falavam de tudo, da morte e da vida, das
flores e dos vermes, dos amores e dos ódios; havia mais de oito ciprestes, cerca de vinte lágrimas, e mais túmulos do que um
verdadeiro cemitério.
Os cinco
fregueses jantantes voltaram a cabeça, quando Luís Tinoco começou a recitar os
versos; depois começaram a sorrir e a murmurar alguma coisa que os dois não
puderam ouvir. Quando o poeta acabou, um dos circunstantes, assaz grosseiro,
soltou uma gargalhada. Luís Tinoco voltou-se enfurecido, mas o Dr. Lemos
conteve-o dizendo:
— Não é
conosco.
— É, meu
amigo, disse ele resignado; mas que lhe havemos de fazer? quem entende a poesia
para a respeitar em toda a parte?
— Deixemos
este lugar, disse o Dr. Lemos; aqui não compreendem o que é um poeta.
— Vamos!
O Dr.
Lemos pagou a conta e saiu atrás de Luís Tinoco, que deitou ao
rideiro um
olhar de desafio.
Luís
Tinoco acompanhou-o até à casa. Recitou-lhe em caminho alguns versos que sabia de cor. Quando ele se
entregava à poesia, não a alheia, que o não preocupava muito, mas a própria,
podia-se dizer que tudo mais se lhe
apagava da memória; bastava-lhe a contemplação de si mesmo. O Dr. Lemos ia ouvindo calado com a resignação
de quem suporta a chuva, que não pode
impedir.
Pouco tempo depois saíram a lume os Goivos e Camélias, que todos os jornais
prometeram analisar mais de espaço.
Dizia o
poeta no prólogo da obra, que era audácia da sua parte “vir assentar-se na mesa da comunhão da poesia, mas
que todo aquele que sentia dentro de si o j’ai quelque chose là, de André
Chénier, devia dar à pátria aquilo que a
natureza lhe deu”. Em seguida pedia desculpa para os seus verdes anos, e afirmava ao público que
não tinha sido “embalado em berços de seda”. Concluía dando a bênção ao livro e
chamando a atenção para a lista dos assinantes que vinha no fim.
Esta obra
monumental passou despercebida no meio da indiferença geral. Apenas um
folhetinista do tempo escreveu a respeito dela algumas linhas que fizeram rir a
toda a gente, menos o autor, que foi agradecer ao
folhetinista.
O Dr.
Lemos perdeu de vista o seu poeta durante algum tempo. Digo mal; só perdeu de vista o homem, porque o poeta de
quando em quando lhe aparecia metido em alguma produção literária que o Dr.
Lemos invariavelmente lia para se benzer da estéril pertinácia de Luís Tinoco. Não havia ocasião, enterro ou espetáculo
solene que escapasse à inspiração do fecundo escritor. Como o número de suas idéias
fosse mui limitado, podia-se dizer que ele só havia escrito um necrológio, uma elegia,
uma ode ou uma congratulação. Os diferentes exemplares de cada uma destas
coisas eram a mesma coisa dita por outro modo. O modo porém constituía a
originalidade do poeta, originalidade que ele não teve a princípio, mas que se desenvolveu muito com
o tempo.
Infelizmente
enquanto se entregava com ardor às lides literárias, esquecia-se o poeta das
lides forenses, de onde lhe vinha o pão. Anastácio queixou-se um dia desta
desgraça ao Dr. Lemos, numa carta que
acabava assim: “Não sei, meu amigo Sr. Lemos, aonde irá parar este rapaz. Não lhe vejo outra conclusão: hospício
ou xadrez”.
O Dr.
Lemos mandou chamar o poeta. Elogiou-lhe as suas obras com o fim de lhe dispor o
espírito a ouvir o que ia dizer. O rapaz expandiu-se.
— Ainda
bem que eu ouço de quando em quando alguma voz animadora, disse ele; não sabe o
que tem sido a inveja a meu respeito. Mas que importa? Tenho confiança no futuro; o que me
vinga é a posteridade.
— Tem
razão, a posteridade é que vinga das maroteiras contemporâneas.
— Li há
dias num papelucho, que eu era um alinhavador de ninharias. Percebi a intenção.
Acusava-me de não meter ombros a obra de mais largo fôlego. Vou desmentir o
papelucho: estou escrevendo um poema épico!
“Ai!”
disse o Dr. Lemos consigo, adivinhando alguma leitura forçada do poema.
— Podia
mostrar-lhe alguma coisa, continuou Luís Tinoco, mas prefiro que leia a obra quando estiver mais adiantada.
— Muito
bem.
— Tem dez
cantos, cerca de 10.000 versos. Mas quer saber a minha desgraça?
— Qual é?
— Estou
apaixonado...
—
Realmente, é uma desgraça na sua posição.
— Que tem
a minha posição?
— Creio
que não é excelente. Dizem-me que se tem descuidado um pouco das suas obrigações do foro, e que brevemente
lhe vão tirar o emprego.
— Fui
despedido ontem.
— Já?
— É
verdade. Se ouvisse o discurso com que eu respondi ao escrivão, diante de toda a gente que enchia o cartório!
Vinguei-me.
— Mas...
de que viverá agora? seu padrinho não pode, creio eu, com o peso da casa.
— Deus me
ajudará. Não tenho eu uma pena na mão? Não recebi do berço um tal ou qual
engenho, que já tem dado alguma coisa de si? Até agora nenhum lucro tentei
tirar das minhas obras; mas era só amador. Daqui em diante o caso muda de
figura; é necessário ganhar o pão, ganharei o pão.
A
convicção com que Luís Tinoco dizia estas palavras, entristeceu o amigo do
padrinho. O Dr. Lemos contemplou durante alguns segundos — com inveja, talvez, —
aquele sonhador incorrigível, tão desapegado da realidade da vida, acreditando não só nos seus
grandes destinos, mas também na
verossimilhança de fazer da sua pena uma enxada.
— Oh!
deixe estar! continuou Luís Tinoco; eu hei de provar-lhes, ao senhor e a meu
padrinho, que não sou tão inútil como lhes pareço. Não me falta coragem,
doutor; quando me faltasse, há uma estrela...
Luís
Tinoco calou-se, retorceu o bigode, e olhou melancolicamente para o céu. O Dr.
Lemos também olhou para o céu, mas sem melancolia, e perguntou rindo:
— Uma
estrela? Ao meio-dia é raro...
— Oh! não
falo dessas, interrompeu Luís Tinoco; lá é que ela devia estar, ali no espaço
azul, entre as outras suas irmãs, mais velhas do que ela e menos formosas...
— Uma
moça?
— Uma
moca, é pouco; diga a mais gentil criatura que o sol ainda alumiou, uma
sílfide, a minha Beatriz, a minha Julieta, a minha Laura...
— Escusa
dizê-lo; deve ser muito formosa se fez apaixonar um poeta.
— Meu
amigo, o senhor é um grande homem; Laura é um anjo, e eu adoro-a...
— E ela?
— Ela
ignora talvez que eu me consumo.
— Isso é
mau!
— Que
quer? disse Luís Tinoco enxugando com o lenço uma lágrima imaginária; é fado
dos poetas arderem por coisas que não podem obter. É esse o pensamento de uns
versos que escrevi há oito dias. Publiquei-os no Caramanchão Literário.
— Que
diacho é isso?
— É a
minha folha, que eu lhe mando de quinze em quinze dias... E diz que lê as minhas obras!
— As obras
leio... Agora os títulos podem escapar. Vamos porém ao que importa. Ninguém lhe
contesta talento nem inspiração fecunda; mas o senhor ilude-se pensando que pode viver dos
versos e dos artigos literários... Note que os seus versos e os seus artigos
são muito superiores ao entendimento popular, e por isso devem ter muito menos aceitação.
Este
desenganar com as mãos cheias de rosas produziu salutar efeito no ânimo de Luís
Tinoco; o poeta não pôde sofrear um sorriso de satisfação e bem-aventurança. O
amigo do padrinho concluiu o seu discurso oferecendo-lhe um lugar de escrevente em casa
de um advogado. Luís Tinoco olhou para ele algum tempo sem dizer palavra.
Depois:
— Volto ao
foro, não? disse ele com a mais melancólica resignação deste mundo. Minha
inspiração deve descer outra vez a empoeirar-se nos libelos, a aturar os
rábulas, a engrolar o vocabulário da chicana! E a troco de quê? A troco de uns magros mil-réis que eu
não tenho e me são necessários para
viver. Isto é sociedade, doutor?
— Má
sociedade, se lhe parece, respondeu o Dr. Lemos com doçura, mas não há outra à mão, e a menos de não estar
disposto a reformá-la, não tem outro recurso senão tolerá-la e viver.
O poeta
deu alguns passos na sala; no fim de dois minutos estendeu a mão ao amigo.
—
Obrigado, disse ele, aceito; vejo que trata de meus interesses, sem desconhecer
que me oferece um exílio.
— Um
exílio e um ordenado, emendou o Dr. Lemos.
Daí a dias
estava o poeta a copiar razões de embargos e de apelação, a lastimar-se,
a maldizer da fortuna, sem adivinhar que daquele emprego devia nascer uma mudança nas suas aspirações.
O Dr. Lemos não lhe
falou
durante cinco meses. Um dia encontraram-se na rua. Perguntou-lhe pelo poema.
— Está
parado, respondeu Luís Tinoco.
— Deixa-o
de mão?
—
Conclui-lo-ei quando tiver tempo.
— E a
folha?
— Deve
saber que acabei com ela; não lha mando há muito tempo.
— É
verdade, mas podia ser um esquecimento. Muito me conta! Então acabou o Caramanchão Literário?
— Deixei-o
morrer no melhor período de vitalidade: tinha oitenta assinantes pagantes...
— Mas
então abandona as letras?
— Não,
mas... Adeus.
— Adeus.
Pareceu
simples tudo aquilo; mas tendo-se ganho alguma coisa, que era empregá-lo, o Dr.
Lemos deixou que o próprio poeta lhe fosse anunciar a causa do seu sono literário. Seria o namoro de
Laura?
Esta
Laura, preciso é que se diga, não era Laura, era simplesmente Inocência; o poeta chamava-lhe Laura nos seus
versos, nome que lhe parecia mais doce, e efetivamente o era. Até que ponto
existiu esse namoro, e em que proporções
correspondeu a moça à chama do rapaz? A história não conservou muita informação
a este respeito. O que se sabe com certeza é que um dia apareceu um rival no
horizonte, tão poeta como o padrinho de Luís Tinoco, elemento muito mais
conjugal do que o redator do Caramanchão Literário, e que de um só lance lhe derrubou todas as esperanças.
Não é
preciso dizer ao leitor que este acontecimento enriqueceu a literatura com uma
extensa e chorosa elegia, em que Luís Tinoco metrificou todas as queixas que
pode ter de uma mulher um namorado traído. Esta obra tinha por epígrafe o nessun maggior dolore do poeta florentino. Quando ele a acabou e emendou, releu-a em
voz alta, passeando na alcova, deu o último apuro a um ou outro verso, admirou
a harmonia de muitos, e singelamente
confessou de si para si que era a sua melhor produção. O Caramanchão Literário ainda existia; Luís Tinoco apressou-se a levar o escrito ao prelo, não
sem o ler aos seus colaboradores, cuja
opinião foi idêntica à dele. Apesar da dor que o devia consumir, o poeta leu as
provas com o maior desvelo e escrúpulo, assistiu à impressão dos primeiros exemplares da folha,
e durante muitos dias releu os versos
até cansar. Do que ele menos se lembrava era da perfídia que os inspirou.
Esta porém
não era a razão do sono literário de Luís Tinoco. A razão era puramente
política. O advogado, cujo escrevente ele era, tinha sido deputado e colaborava numa gazeta política. O
seu escritório era um centro, onde iam ter muitos homens públicos e se
conversava largamente dos partidos e do
governo. Luís Tinoco ouviu a princípio essas conversas com a indiferença de um
deus envolvido no manto da sua imortalidade. Mas a pouco e pouco foi adquirindo
gosto ao que ouvia. Já lia os discursos parlamentares
e os artigos de polêmica. Da atenção passou rapidamente ao entusiasmo, porque
naquele rapaz tudo era extremo, entusiasmo ou indiferença. Um dia levantou-se
com a convicção de que os seus destinos eram
políticos.
— A minha
carreira literária está feita, disse ele ao Dr. Lemos quando falaram nisto;
agora outro campo me chama.
— A
política? Parece-lhe que é essa a sua vocação?
—
Parece-me que posso fazer alguma coisa.
— Vejo que
é modesto, e não duvido que alguma voz interior o esteja convidando a queimar as suas asas de poeta.
Mas, cuidado! Há de ter lido Macbeth... Cuidado com a voz das
feiticeiras, meu amigo. Há no senhor demasiado sentimento, muita
suscetibilidade, e não me parece que...
— Estou
disposto a acudir à voz do destino, interrompeu impetuosamente Luís Tinoco. A política chama-me ao seu campo;
não posso, não devo, não quero cerrar-lhe os ouvidos. Não! as opressões do
poder, as baionetas dos governos imorais
e corrompidos, não podem desviar uma grande convicção do caminho que ela mesma
escolheu. Sinto que sou chamado pela voz da verdade. Quem foge à voz da verdade?
Os covardes e os ineptos. Não sou inepto
nem covarde.
Tal foi a
estréia oratória com que ele brindou o Dr. Lemos numa esquina onde felizmente
não passava ninguém.
— Só lhe
peço uma coisa, disse o ex-poeta.
— O que é?
—
Recomende-me ao doutor. Quero acompanhá-lo, e ser seu protegido; é o meu desejo.
O Dr.
Lemos cedeu ao desejo de Luís Tinoco. Foi ter com o advogado e recomendou-lhe o
escrevente, não com muita solicitude, mas também sem excessiva frieza. Felizmente o advogado
era uma espécie de São Francisco Xavier
do partido, desejoso como ninguém de aumentar o pessoal militante; recebeu a
recomendação com a melhor cara do mundo, e logo no dia seguinte, disse algumas
palavras benévolas ao escrevente, que as ouviu trêmulo de comoção.
— Escreva
alguma coisa, disse o advogado, e traga-me para ver se lhe achamos propensão.
Não foi
preciso dizer-lho duas vezes. Dois dias depois, levou o ex-poeta ao seu
protetor um artigo extenso e difuso, mas cheio de entusiasmo e fé. O advogado
achou defeitos no trabalho; apontou-lhe demasias e nebulosidades, frouxidão de
argumentos, mais ornamentação que solidez; todavia prometeu publicá-lo. Ou
fosse porque lhe fizesse estas observações com muito jeito e benevolência, ou
porque Luís Tinoco houvesse perdido alguma
coisa da antiga suscetibilidade, ou porque a promessa da publicação lhe adoçasse o amargo
da censura, ou por todas estas razões juntas, o certo é que ele ouviu com
exemplar modéstia e alegria as palavras
do protetor.
— Há de
perder os defeitos com o tempo, disse este mostrando o artigo aos amigos.
O artigo
foi publicado e Luís Tinoco recebeu alguns apertos de mão. Aquela doce e indefinível alegria que ele
sentira quando estampou no Correio Mercantil os seus primeiros versos, voltou a experimentá-la agora, mas
alegria complicada de uma virtuosa resolução: Luís Tinoco desde aquele dia
sinceramente acreditou que tinha uma missão, que a natureza e o destino o
haviam mandado à terra para endireitar os tortos políticos.
Poucas
pessoas se terão esquecido do período final da estréia política do ex-redator
do Caramanchão Literário. Era assim:
Releve o
poder — hipócrita e sanhudo, — que eu lhe diga muito humildemente que não temo
o desprezo nem o martírio. Moisés, conduzindo
os hebreus à terra da promissão, não teve a fortuna de entrar nela: é o símbolo
do escritor que leva os homens à regeneração moral e política, sem lhe transpor as portas de ouro.
Que poderia eu temer? Prometeu atado ao
Cáucaso, Sócrates bebendo a cicuta, Cristo expirando na cruz, Savonarola indo ao suplício, John
Brown esperneando na forca, são os
grandes apóstolos da luz, o exemplo e o conforto dos que amam a verdade, o
remorso dos tiranos, e o terremoto do despotismo.
Luís
Tinoco não parou nestas primícias. Aquela mesma fecundidade da estação
literária veio a reproduzir-se na estação política; o protetor, entretanto,
disse-lhe que era conveniente escrever menos e mais assentado. O ex-poeta não repeliu a
advertência, e até lucrou com ela, produzindo
alguns artigos menos desgrenhados no estilo e no pensamento. A erudição
política de Luís Tinoco era nenhuma; o protetor emprestou-lhe alguns livros,
que o ex-poeta aceitou com infinito prazer. Os leitores compreendem facilmente que o autor
dos Goivos e Camélias não era homem que
meditasse uma página de leitura; ele ia atrás das grandes frases, — sobretudo das frases sonoras
— demorava-se nelas, repetia-as,
ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação, análise
parecia-lhe árido, e ele corria depressa por elas.
Algum
tempo depois houve uma eleição primária. O publicista sentiu que havia em si um
eleitor, e foi dizê-lo afoitamente ao advogado. O desejo não foi mal aceito;
trabalharam-se as coisas de modo que Luís Tinoco teve o gosto de ser incluído
numa chapa e a surpresa de ficar batido. Batê-lo
foi possível ao governo; abatê-lo, não. O ex-poeta, ainda quente do combate, traduziu em largos e floreados
períodos o desprezo que lhe
inspirava
aquela vitória dos adversários. A esse artigo responderam os amigos do governo com um, que terminava assim:
“Até onde quererá ir, com semelhante descomedimento de linguagem, o pimpolho do
ex-deputado
Z.?”
Luís
Tinoco quase morreu de júbilo ao receber em cheio aquela descarga ministerial.
A imprensa adversa não o havia tratado até então com a consideração que ele
desejava. Uma ou outra vez, haviam discutido argumentos seus; mas faltava o
melhor, faltava o ataque pessoal, que lhe parecia ser o batismo de fogo naquela
espécie de campanha. O advogado, lendo o ataque, disse ao ex-poeta que a sua
posição era idêntica à do primeiro Pitt quando o ministro Walpole lhe respondeu
chamando-lhe moço em plena Câmara dos
Comuns, e que era necessário repelir no mesmo tom a ofensa ministerial. Luís
Tinoco ignorava até aquela data a existência
de Pitt e de Walpole; achou todavia muito engenhosa a comparação das duas
situações, e com habilidade e cautela perguntou ao advogado se lhe podia
emprestar o discurso do orador britânico “para refrescar a memória”. O advogado
não tinha o discurso, mas deu-lhe idéia dele,
quanto bastou para que Luís Tinoco fosse escrever um longo artigo acerca do que
era e não era pimpolho.
Entretanto,
a luta eleitoral lhe descobrira um novo talento. Como fosse necessário arengar algumas vezes, fê-lo o
pimpolho a grande aprazimento seu e no
meio às palmas gerais. Luís Tinoco perguntou a si mesmo se lhe era lícito aspirar às honras da tribuna. A
resposta foi afirmativa. Esta nova ambição era mais difícil de satisfazer; o
ex-poeta o reconheceu, e armou-se de paciência para esperar.
Aqui há
uma lacuna na vida de Luís Tinoco. Razões que a história não conservou levaram
o jovem publicista à província natal do seu amigo e protetor, dois anos depois
dos acontecimentos eleitorais. Não percamos tempo em conjecturar as causas desta viagem, nem as
que ali o demoraram mais do que queria.
Vamos já encontrá-lo alguns meses depois,
colaborando num jornal com o mesmo ardor juvenil, de que dera tanta prova na
capital. Recomendado pelo advogado aos seus amigos políticos e parentes, depressa criou Luís
Tinoco um círculo de companheiros, e não tardou que assentasse em ali ficar
algum tempo. O padrinho já estava
morto; Luís Tinoco achava-se absolutamente sem família.
A ambição
do orador não estava apagada pela satisfação do publicista; pelo contrário, uma
coisa avivava a outra. A idéia de possuir duas armas, brandi-las ao mesmo
tempo, ameaçar e bater com ambas os adversários, tornou-se-lhe idéia crônica,
presente, inextinguível. Não era a vaidade que o levava, quero dizer, uma vaidade pueril.
Luís Tinoco acreditava piamente que ele
era um artigo do programa da Providência, e isso o sustinha e contentava. A
sinceridade que nunca teve quando versificava os seus infortúnios entre suas
palestras de rapazes, teve-a quando se enterrou a mais e mais na política. É
claro que, se alguém lhe pusesse em dúvida
o mérito político, feri-lo-ia do mesmo modo que os que lhe contestavam
excelências literárias; mas não era só a vaidade que lhe ofendiam, era também, e muito mais, a fé — fé
profunda e intolerante — que ele tinha
de que o seu talento fazia parte da harmonia universal.
Luís
Tinoco mandava ao Dr. Lemos na corte todos os seus escritos da província, e contava-lhe singelamente as suas
novas esperanças. Um dia noticiou-lhe que a sua eleição para a Assembléia
Provincial era objeto de negociações que se lhe afiguravam propícias. O correio
seguinte trouxe notícia de que a
candidatura de Luís Tinoco entrara na ordem dos fatos consumados.
A eleição
fez-se e não deu pouco trabalho ao candidato fluminense, que à força de muita luta e muito empenho pôde ter a
honra de ser incluído na lista dos
vencedores. Quando lhe deram notícia da vitória, entoou a alma de Luís Tinoco um verdadeiro e solene Te Deum Laudamus. Um suspiro, o mais entranhado e desentranhado de quantos
suspiros jamais soltaram homens,
desafogou o coração do ex-poeta das dúvidas e incertezas de longas e cruéis
semanas. Estava enfim eleito! Ia subir o primeiro degrau do Capitólio.
A noite
foi mal dormida, como a da véspera da publicação do primeiro soneto, e entremeada de sonhos análogos à
situação. Luís Tinoco via-se já troando na Assembléia Provincial, entre os
aplausos de uns, as imprecações de outros, a inveja de quase todos, e lendo em
toda a imprensa da província os mais
calorosos aplausos à sua nova e original eloqüência. Vinte exórdios fez o jovem
deputado para o primeiro discurso, cujo assunto seria naturalmente digno de
grandes rasgos e nervosos períodos. Ele já estudava mentalmente os
gestos, a atitude, todo o exterior da
figura que ia honrar a sala dos representantes da província.
Muitos
grandes nomes da política haviam começado no parlamento provincial. Era verossímil, era indispensável
até, para que ele cumprisse o mandato imperativo do destino, que saísse dali em
pouco tempo para vir transpor a porta mais ampla da reapresentação nacional. O
ex-poeta ocupava já no espírito uma das cadeiras da Cadeia Velha, e remirava-se
na própria pessoa e no brilhante papel que teria de desempenhar. Via já diante
de si a oposição ou o ministério estatelado no chão, com quatro ou cinco
daqueles golpes que ele supunha saber dar como ninguém, e as gazetas a falarem,
e o povo a ocupar-se dele, e o seu nome a repercutir em todos os ângulos do império, e uma pasta a
cair-lhe nas mãos, ao mesmo tempo que o
bastão do comando ministerial.
Tudo isto,
e muito mais imaginava o recente deputado, embrulhado nos lençóis, com a cabeça no travesseiro e o
espírito a vagar por esse mundo fora,
que é a coisa pior que pode acontecer a um corpo mortificado como estava o dele
naquela ocasião.
Não se
demorou Luís Tinoco em escrever ao Dr. Lemos, e contar-lhe as suas esperanças e o programa que tencionava
observar, desde que a fortuna lhe abria
mais ampla estrada na vida pública. A carta tratava longamente do efeito provável da sua primeira
oração, e terminava assim:
Qualquer
que seja o posto a que eu suba; qualquer, entenda bem, ainda aquele que é o
primeiro do país, abaixo do imperador (e creio que irei até lá), nunca me há de
esquecer que ao senhor o devo, à animação que me dispensou, à recomendação que
fez de mim. Parece-me que até hoje tenho
correspondido à confiança dos meus amigos; espero continuar a merecê-la.
Inauguraram-se
enfim os trabalhos. Tão ansioso estava Luís Tinoco de falar que, logo nas
primeiras sessões, a propósito de um projeto sobre a colocação de um chafariz,
fez um discurso de duas horas em que demonstrou por A + B que a água era
necessária ao homem. Mas a grande
batalha foi dada na discussão do orçamento provincial. Luís Tinoco fez um longo
discurso em que combateu o governo geral, o presidente, os adversários,
a polícia e o despotismo. Seus gestos eram até então desconhecidos na escala da
gesticulação parlamentar; na província, pelo menos, ninguém tivera nunca a satisfação
de contemplar aquele sacudir de cabeça, aquele arquear de braço, aquele
apontar, alçar, cair e bater com a mão
direita.
O estilo
também não era vulgar. Nunca se falou de receita e despesa com maior luxo de
imagens e figuras. A receita foi comparada ao orvalho que as flores recolhem
durante a noite, a despesa à brisa da manhã que as sacode e lhes entorna um
pouco do sereno vivificante. Um bom governo é apenas brisa; o presidente atual
foi declarado siroco e pampeiro. Toda a maioria protestou solenemente contra
essa qualificação injuriosa, ainda que poética. Um dos secretários confessou
que nunca do Rio de Janeiro lhes fora uma aura mais refrigerante.
Infelizmente
os adversários não dormiam. Um deles, apenas Luís Tinoco acabou o discurso
entre alguns aplausos dos seus amigos, pediu a palavra e cravou longo tempo os
olhos no orador estreante. Depois sacou do
bolso um maço de jornais e um folheto, concertou a garganta e disse:
—
Mandaram-nos do Rio de Janeiro o nobre deputado que me precedeu nesta tribuna.
Diziam que era uma ilustração fluminense, destinada a arrasar os talentos da província.
Imediatamente, Sr. presidente, tratei de obter as obras do nobre deputado.
Aqui tenho eu, Sr. presidente, o Caramanchão Literário, folha
redigida pelo meu adversário, e o volume dos Goivos e Camélias. Tenho lá em casa
mais outras obras. Abramos os Goivos e Camélias.
O SR. LUÍS
TINOCO. — O nobre deputado está fora da ordem! (Apoiados).
O orador: —
Continuo, Sr. presidente; aqui tenho os Goivos e Camélias. Vejamos um goivo.
A Ela.
Quem és tu
que me atormentas
Com teus
prazenteiros sorrisos?
Quem és tu
que me apontas
As portas
dos paraísos?
Imagem do
céu és tu?
És filha
da divindade?
Ou vens
prender em teus cabelos
A minha
liberdade?
Vê V.
Ex.ª, Sr. presidente, que já nesse tempo o nobre deputado era inimigo de todas
as leis opressoras. A assembléia tem visto como ele trata as leis do metro.
Todo o
resto do discurso foi assim. A minoria protestou, Luís Tinoco fez-se de todas
as cores, e a sessão acabou em risada. No dia seguinte os jornais amigos de Luís Tinoco agradeceram ao
adversário deste o triunfo que lhe proporcionou mostrando à província “uma
antiga e brilhante face do talento do ilustre deputado”. Os que indecorosamente
riram dos versos, foram condenados com estas poucas linhas: “Há dias um deputado
governista disse que a situação era uma caravana de homens honestos e bons. É
caravana, não há dúvida; vimos ontem os seus camelos”.
Nem por
isso Luís Tinoco ficou mais consolado. As cartas do deputado ao Dr. Lemos começaram a escassear, até que de
todo cessaram de aparecer. Decorreram assim silenciosos uns três anos, ao cabo
dos quais o Dr. Lemos foi nomeado não
sei para que cargo na província onde se achava
Luís Tinoco. Partiu. Apenas empossado do cargo, tratou de procurar o ex-poeta,
e pouco tempo gastou, recebendo logo um convite dele para ir a um
estabelecimento rural onde se achava.
— Há de me
chamar ingrato, não? disse Luís Tinoco, apenas viu assomar à porta de casa o Dr. Lemos. Mas não sou;
contava ir vê-lo daqui a um ano; e se lhe não escrevi... Mas que tem, doutor?
está espantado?
O Dr.
Lemos estava efetivamente pasmado a olhar para a figura de Luís Tinoco. Era aquele o poeta dos Goivos e camélias, o eloqüente deputado, o fogoso publicista? O que ele tinha
diante de si era um honrado e pacato lavrador, ar e maneiras rústicas, sem o menor
vestígio das atitudes melancólicas do poeta, do gesto arrebatado do tribuno, —
uma transformação, uma criatura muito outra e muito melhor.
Riram-se ambos,
um da mudança, outro do espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luís Tinoco lhe dissesse se era certo haver
deixado a política, ou se aquilo eram apenas umas férias para renovar a alma.
— Tudo lhe
explicarei, doutor, mas há de ser depois de ter examinado a minha casa e a minha roça, depois de lhe
apresentar minha mulher e meus filhos...
— Casado?
— Há vinte
meses.
— E não me
disse nada!
— Ia este
ano à corte e esperava surpreendê-lo... Que duas criancinhas as minhas... lindas como dois anjos. Saem à mãe,
que é a flor da província. Oxalá se pareçam também com ela nas qualidades de
dona de casa; que atividade! que economia!...
Feita a
apresentação, beijadas as crianças, examinado tudo, Luís Tinoco declarou ao Dr.
Lemos que definitivamente deixara a política.
— De vez?
— De vez.
— Mas que
motivo? desgostos, naturalmente.
— Não;
descobri que não era fadado para grandes destinos. Um dia leram-me na
assembléia alguns versos meus. Reconheci então quanto eram pífios os tais
versos; e podendo vir mais tarde a olhar com a mesma lástima e igual arrependimento para as minhas
obras políticas, arrepiei carreira e
deixei a vida pública. Uma noite de reflexão e nada mais.
— Pois
teve ânimo?...
— Tive,
meu amigo, tive ânimo de pisar terreno sólido, em vez de patinhar nas ilusões
dos primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo
orador. Minha vocação era esta. Com poucos anos mais estou rico. Ande agora beber o café que
nos espera e feche a boca, que as moscas andam no ar.
---
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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