
NELSON
− Você conhece?
−
Eu não, mas contaram ao Basílio o caso dele.
O
indivíduo chamava a atenção mesmo, embora não mostrasse nada de berrantemente
extraordinário. Tinha um ar esquisito, ar antigo, que talvez lhe viesse da
roupa mal talhada. Mas que por certo derivava da cara também, encardida, de uma
palidez absurda, quase artificial, como a cara enfarinhada dos palhaços. Olhos pequenos,
claros, à flor da pele, quase que apenas aquela mancha cinzenta, vaga, meio
desaparecendo na brancura sem sombra do rosto.
Deu
uma olhadela disfarçada, bem de tímido, assuntando o ambiente mal iluminado do
bar. Ainda hesitou, numa leve ondulação de recuo, mas acabou indo sentar no
outro lado da sala vazia. Percebeu que os rapazes o examinavam, ficou inquieto,
entre gestos inúteis. Pretendeu se acalmar e depôs as duas mãos, uma agarrando
a outra, sobre a toalha. Mas como que se arrependeu de mostrá-las, retirou-as
rápido pra debaixo da mesa. Se lembrou de repente que não tirara o chapéu,
estremeceu, quis sorrir, disfarçando a encabulação. Mas corou muito, tirou num
gesto brusco o chapéu, escondeu-o no banco em que sentara, ao mesmo tempo que
lançava novo olhar furtivo, muito angustiado, meio implorante, aos rapazes. E
estes fingiram que não o examinavam mais, envergonhados da curiosidade.
−
Não parece brasileiro...
−
Diz-que é. Mora só, numa daquelas casinhas térreas da alameda do Triunfo, perto
de mim. Ele mesmo faz a comida dele...
Parou,
gozando o interesse que causava. Era desses vaidosos que não contam sem
martirizar o ouvinte com pausas de efeito, perguntas de adivinhação, detalhes
sem eira nem beira. Continuou: “Vocês todos sabem onde que ele faz as compras
dele!”... Nova pausa. Os rapazes se mexeram impacientes. Um arrancou:
−
Você garante que ele é brasileiro, enfim você sabe ou não sabe alguma coisa
sobre ele!
−
Eu sei a história dele completinha!... − Olhou lento, imperial os três amigos.
Sorriu. − Mas, puxa! que lerdeza de vocês!... Eu disse que ele mora no Triunfo,
pertinho de mim... Então vocês não são capazes de imaginar onde ele compra as
coisas!...
−
Ora desembucha logo, Alfredo! que diabo de mania essa!...
Diva
passava levando dois duplos escuros. Era visível que ambos pertenciam ao desconhecido,
pois não havia mais ninguém no bar. Recebendo os duplos o homem ficou
envergonhado, tornou a corar forte, mandando outro olho de relance aos rapazes.
Falou qualquer coisa à garçonete, que ficou esperando. Então ele emborcou o
primeiro chope com sofreguidão, bebeu tudo duma vez só, entregando o copo à
moça. E Diva se retirou, sorrindo ao “muito obrigado” quente que o homem lhe
dizia.
Os
rapazes voltavam pensativos aos seus chopes, o desconhecido era de-fato um
sujeito extravagante... Alfredo aproveitou a preocupação de todos, pra retomar
importância. Mas agora “desembuchava” mais rápido.
−
Pois ele compra tudo no Basílio, e o Basílio é que sabe a história dele bem.
Põe tamanha confiança no vendeiro que até pede pra ele fazer compras na cidade,
camisa, roupa de baixo... Diz-que foi até bastante rico. Ele é de Mato Grosso,
possuía uma fazenda de criar no sul do Estado, não tinha parente nenhum depois
que a mãe morreu. De vez em quando atravessava a fronteira que ficava ali
mesmo, dava uma chegada em Assunção que é a capital do Paraguai...
−
Não sabia! pensei que era Campinas!
−...
ia lá só pra farrear, vivendo naquele jejum da fazenda... − Achou graça em si mesmo
e quis tirar mais efeito: − Em Assunção desjejuava a valer. Mas um dia acabou
trazendo uma paraguaia pra fazenda, com ele. Era uma moça lindíssima e ele
tinha paixão por ela, dava tudo pra ela. Trabalhava e era pra ela; ia na cidade
por um dia, imaginem pra quê!... Voltava carregado de presentes muito caros.
Mesmo na fazenda ela só arrastava seda. Mas que ela merecesse, merecia porque
também gostava muito dele e os dois viviam naquele amor. Mas a maior besteira
dele, isso dava um doce se vocês imaginassem?
Quis
parar, mas um dos companheiros percebendo asperejou irritado:
−
Não dê o doce e continue, Alfredo! – Pois acabou passando a fazenda com gado e
tudo e ainda umas casas que tinha em Cuiabá, passou tudo para o nome dela,
porque ela já fizera operação, mocinha, e não podia ter filho que herdasse. Não
sei se vocês sabem:... mesmo casada no juiz, se não tivesse filho e ele
morresse, ela não herdava um isto. E agora é que estou vendo que o Basílio não
me informou se eles eram casados, amanhã mesmo vou saber...
−
Mas... me diga uma coisa, Alfredo: isso interessa pro caso!
−
Quer dizer... interessar sempre interessa... Mas afinal aquela vida era chata
pra moça tão bonita que não podia ser vista nem apreciada por ninguém, não
durou muito ela principiou entristecendo. Ele vinha e perguntava, porém ela
sempre respondia que não tinha nada e virava o rosto pra não dar demonstração
que estava chorando. Ele fez tudo. Comprou uma vitrola, comprou um rádio e a
casa se encheu de polcas paraguaias. Depois até principiou aprendendo o guarani
com ela, o castelhano já falava muito bem. Era que ele imaginou ficar mais
tempo junto da moça, em vez de passar o dia inteiro no campo, cuidando do gado.
−
Mas também que sujeito mais besta − interrompeu um dos rapazes irritado. Ele
era rico, não era?
−
Era...
−
Pois então por que não ia fazer uma viagem!
−
Pois fez, mas aí é que foi a causa de tudo. Eles resolveram ir passear em
Assunção, se divertiram tanto que passaram dois meses lá. Quando voltaram ela
até parecia outra, de tão alegre outra vez, e fizeram projeto de todos os anos
ir passear assim, se divertindo com os outros, o amor é que não havia meios de
afrouxar. Já antes da viagem, no tempo da tristeza, ele assinara uma porção de
revistas, até norte-americanas, pra ver se ela se distraía, ela nem olhava pras
figuras. Pois agora de volta na fazenda, adivinhem pra o que ela deu!...
−
Ora, deu para ler as revistas!
−
Não.
−
Deu pra ficar triste outra vez.
−
Não!
−
Se acostumou...
−
Não!
−
Ora foi ver se você estava na esquina, ouviu!
Os
rapazes estavam totalmente desinteressados da história do Alfredo. Um deles
olhou o homem, de quem a garçonete se aproximava outra vez, levando mais um
chope. O homem, percebendo a moça, retirou brusco as mãos que descansavam na
mesa, uma sobre a outra. Novo olhar angustiado aos rapazes.
−
Parece que ele tem qualquer coisa na mão esquerda, o rapaz avisou interessado.
Não! não virem agora que ele está olhando pra cá, mas nem bem Diva ia chegando
com o chope, ele escondeu a mão. Diva!
A
moça veio se chegando, familiar.
−
Mais chope. Diga uma coisa... chegue mais pra cá.
A
moça chegou contrafeita, depois de uma leve hesitação. Ela sabia que iam lhe
falar do desconhecido, e quando o rapaz perguntou o que o homem tinha na mão,
ela quase gritou um “Nada!” agressivo. E como o rapaz procurasse agarrá-la pelo
braço, ainda perguntando se o homem não tinha um defeito qualquer, ela se
desvencilhou irritada, murmurando “Não!”, “Não sei!”, partiu confusa. O
contador interrompido pretendeu readquirir importância, afirmando apressado:
−
É uma cicatriz medonha, não queiram saber! Foi numa briga, parece que até ele
perdeu um dedo, só que isso eu não sei como foi, o Basílio...
O
quarto rapaz, que se conservara calado, olhando com uma espécie de riso o
sabetudo, murmurou vingativo:
−
Eu sei.
−
Você sabe!
−
Quer dizer: sei... Sei o que me contaram. É o polegar que ele perdeu. Parece
que nem é só o polegar que falta, mas quase toda a carne do braço, é tudo
repuxado, sem pele... Foi piranha que comeu.
−
Safa!
−
Eu não sei bem... tudo no detalhe. Como o Alfredo, eu não sei... Foi na Coluna
Prestes... nem tenho certeza se ele estava com o exército ou com os
revolucionários. Devia ser com estes porque ele era rapaz, se vê que não tem
trinta anos.
−
Isso não! garanto que já passa dos quarenta.
−
Você está doido!
−
Não... − arrancou o Alfredo, meio contra a vontade. − Isso eu também sei
garantido que ele é novo ainda, o Basílio viu a caderneta dele... Tem vinte e
sete, vinte e oito anos.
−
Mas conta como foi a piranha.
−...
diz-que estava em Mato Grosso, um grupinho perseguido pelos contrários,
desgarrado, pra uns nove homens quando muito. Tinham se arranchado na casinha
dum caboclo que ficava perto dum rio, quando o inimigo deu lá, era de noite.
Foi aquele tiroteio feroz, eles dentro da casa, os outros no cerco. Quando
viram que não se aguentavam mais, a munição estava acabando, decidiram furar
pra banda do rio, onde o bote do caboclo estava amarrado na maromba...
−
O que é maromba?
−
É assim um estrado grande, pra servir de chão dos bois, quando o rio enche.
−
Qual! tudo isso é história! pois você não vê logo que os polícias já deviam
estar tomando conta do bote!
−
Você está com despeito de eu saber, quer me atrapalhar à toa: pois é isso
mesmo! Deixe eu acabar, você vai ver. Já era de madrugadinha, mas estava escuro
ainda. De repente eles deram uma descarga juntos, e saíram embolados, frechando
pro rio. Ainda conseguiram passar, que os... contrários, eu não falei que era
polícia que cercava! enfim, os... outros, só tinha dois amoitados no caminhinho
que levava ao porto, se acovardaram. Eles passaram na volada, gritando,
desceram o barranco aos pulos, mas quando chegaram lá, tinha pra uns dez, de
tocaia, na maromba. Se atracaram uns com os outros, e esse um aí se abraçou com
um inimigo e os dois rolaram no rio, afundando. Bem, mas quando voltaram à
tona, sempre grudados um no outro, lutando, o diabo é o que tinham vindo parar
bem debaixo... não sei se vocês sabem... lá, por causa de enchente, eles usam
construir um cais flutuante pra embarcar e desembarcar. O desse porto por sinal
que era bem-feito e mais grande, porque era por ali que a estrada do governo
atravessava o rio: uma espécie de caixão grande bem chato, feito de pranchões. Pois
foi justo debaixo disso que os dois vieram surgir e já estavam desesperados de
vontade de respirar, não se aguentavam mais. Por cima era aquele barulhão de
gente brigando, o caixão sacudia muito, mais outros caíam n’água... Os dois não
queriam, decerto nem podiam se largar, mas não sei como foi, se uma das
pranchas da parte inferior estava podre e cedeu, ou se havia o buraco mesmo...
sei é que num balanço que o caixão fez com os homens que brigavam em cima
deles, esse um ali sentiu que ia saindo fora d’água e pôde respirar. Mas estava
com a cabeça enforcada dentro do caixão chato, até batendo no plano dos
pranchões de cima, parece que estou vendo! quem me contou foi o Querino do
gás... Mas ele respirou fundo, foi ganhando consciência e percebeu que os músculos
do adversário afrouxavam. Se ele largasse, o outro afundava, ia sair lá mais no
largo e denunciava o esconderijo dele, apertou mais. Por cima o inferno já
estava diminuindo, o caixão sacudia menos, paravam com a gritaria dos insultos.
Afinal ele percebeu que os inimigos tinham dominado a situação, eram muito mais
numerosos. Um que mandava nos outros, dava ordens, afirmava que faltavam dois
do grupo inimigo, um era ele, está claro. A manhã principiava branqueando o
rio. Procuravam no largo pra ver se tinha alguém nadando...
Alguns
foram mandados percorrer o matinho ralo da margem. Dois outros, no bote, se
metiam pelas canaranas pra ver se descobriam os fugitivos. Foi quando deram
pela falta de um chamado Faustino, gritavam “Faustino! Faustiiíiino!”, e ele
percebeu que tinha matado um sujeito chamado Faustino. Mas quem disse largar o
cadáver que agarrava pelo gasnete com a mão esquerda. O corpo era capaz que
boiasse, saindo de baixo do caixão, haviam de desconfiar. Na margem e na
maromba ao lado, o pessoal se acalmavam, era um dia claro. Não tinham achado
nem os fugitivos nem Faustino, vinham contando os que voltavam da procura.
Então o chefe mandou que dois ficassem de vigia na maromba, e o resto dos
perseguidores foram lá na casa do caipira ver se faziam um café. Ele estava
quase vestido, calça cáqui, botas. Mas não tivera tempo de vestir o dólmã, com
a surpresa do ataque, e a camisa tinha se rasgado muito, justo no braço
esquerdo que estava dentro d’água, agarrando o corpo do Faustino. Fazia já
algum tempo que ele vinha percebendo uns estremeções esquisitos na cara do
morto, pois súbito sentiu uma ferroada na mão. O rio não era de muita piranha,
mas tinha alguma sim. Outra ferroada mais forte e logo ele conferiu que era
piranha mesmo, não havia mais dúvida. E acudia cada vez mais piranha, o que ele
não aguentou! As piranhas mordiam, arrancavam pedacinhos da mão dele e depois
do braço também, mas ele ali, sem se mover. Lá em cima na maromba as duas
sentinelas conversavam na calma. Ele percebeu, ia desfalecer na certa, porque
já quase nem se aguentava mais, vista turvando. Então, com muito cuidado, muita
lentidão pra os vigias não repararem, cuidou de enfiar mais que a mão direita,
o braço inteiro no buraco dos pranchões porque assim, se desmaiasse, pelo menos
ficava enganchado ali. Foi quando perdeu os sentidos. Até fica difícil garantir
que perdeu os sentidos ou não perdeu, nem ele sabe, nem sabe o tempo que
passou. Só que as forças acabaram cedendo, teve um momento em que ele foi
chamado à consciência porque estava engolindo água, sem ar, se afogando. Mesmo
fraco como estava, bracejou, voltou à tona, se agarrou nas canaranas, conseguiu
chegar num chão mais firme e então desmaiou de verdade. Quando voltou a si, o
sol estava bem alto já, devia ser pelo meio do dia. Os inimigos já tinham
ido-se embora. Então o pobre, ainda ajuntando um resto de força que possuía,
conseguiu se arrastar até próximo da casa do caboclo. Quando este voltou, mais
a mulher, lá dum vizinho longe onde tinham se refugiado, encontraram o homem
estendido no terreiro, moribundo. Trataram dele. É o que eu sei... o Querino é
que anda contando porque até
eu
vi, isso eu vi, ele conversando animado com esse homem, porque andou vários
dias inda na casa dele pra fazer uma instalação de gás. Ele acabou sarando mas
diz-que ficou meio amalucado... Se não ficou, parece.
Olharam
o homem. Ele já estava no quarto ou quinto duplo, já agora como inteiramente
esquecido de mais ninguém. Tinha o queixo no peito, se derreara no banco,
olhando fixamente o chope escuro. A mão direita inquieta tamborilava sobre a
mesa, mas a esquerda se escondera preventivamente no bolso da calça. Um dos
rapazes se lembrou do caso que o Alfredo estava contando.
−
Safa! mas que caso mais diferente do do Alfredo! Mas este, ríspido:
−
Nnnnão... deve ser o mesmo...
−
Mas o que foi que sucedeu com a mulher?
−...
nnnnão tem importância.
−
Ora deixa de besteira! Alfredo! que sujeito mais complicado, você!
−
Não tenho nada de complicado não! Essa história de piranha comer braço de
gente, eu nunca sube. O Basílio também me falou que o homem era de Mato Grosso,
leu na caderneta de identidade... Mas ele ficou meio tantã não foi por causa de
piranha não, foi a paraguaia. Quando ela voltou curada pra fazenda, como eu
dizia, ela até às vezes acompanhava o marido a cavalo no campo, mas quando no
geral ficava em casa, ficava ali, rádio aberto, lendo a quantidade de romances
policiais e os outros livros que trouxera da cidade. E não tinha semana que um
peão não trouxesse aquela quantidade de revistas que vinham do correio. Pois um
dia, quando ele chegou em casa, a mulher estava fechada no quarto e não quis
abir a porta. Ele bateu, chamou de todo jeito, ela gritava que não amolasse,
até que ele perdeu a paciência e ameaçou arrombar a porta. Daí ela abriu e se
percebia que tinha chorado muito. Olhou pra ele com ódio e gritou:
−
O que você me quer! me deixa!
e
coisas assim. Ele estava assombrado, perguntava, ela não respondia, foi no
terraço e se atirou na rede, chorando feito louca. Mas isso?... ele que nem
tocasse de leve nela com a mão, ela fugia o corpo como se ele fosse uma cobra.
Não valeu carinho, não valeu queixa: ela estava muda, longe dele, olhando ele
com ódio, e de repente falou que queria ir embora pra terra dela. Ele não podia
entender, foi discutir, mas ela agarrou dando uns gritos, que ia-se embora
mesmo, que não ficava mais ali, parecia uma doida, saltou da rede, desceu a
escadinha do terraço e deitou correndo pelo pasto, como indo embora pro
Paraguai. Foi um custo trazer ela pra casa, agarrada. Ele muito triste fazia
tudo pra acalmar, jurava que no outro dia mesmo partiam pra Assunção, ela berrava
que não! que havia de ir sozinha e não queria saber mais dele. Ninguém dormiu
naquela casa. A moça acabou se fechando no quarto outra vez. Ele não quis
insistir mais, imaginando que o passar da noite havia de acalmar aquela crise.
Puxou uma cadeira e sentou bem na frente da porta, esperando. Não dormiu nada.
Mas também a moça não dormiu, não vê! Toda a noite ele escutou ela remexendo
coisas, era gaveta que abria, que fechava, móvel arrastando, coisas jogadas no
chão.
Diva
acabara de levar mais um chope ao homem. Veio se abraçar a um dos rapazes,
perguntando se não pagavam um aperitivo. Dois dos rapazes se ajeitaram no banco
em que estavam, cedendo o lugarzinho no meio onde ela se espalhou, encostando
muito logo nos dois, pra ver se ao menos um mordia a isca. O homem do bar mesmo
sem chamarem, muito acostumado, veio servir o vermute.
−...
bem, mas como eu estava contando, no dia seguinte, ainda nem ficara bastante
claro, que a paraguaia abriu a porta do quarto. Vinha simples, até estava
ridícula e bem feia com aquele rosto transtornado, num vestidinho caseiro, o
mais usado, e uma trouxinha de roupa debaixo do braço. E falou dura que ia-se
embora. Foi tudo em vão e esse homem...
−
Que homem? Diva perguntou meio inquieta.
Esse
que está bebendo chope escuro.
−
Santa Maria! mas será que vocês não podem deixar o pobre do homem em paz!
−
Fica quieta aí, Diva!
−
Mas...
−
Tome seu vermute.
Diva
se acomodou de má vontade, irritada, enquanto o contador continuava:
−
Pois ele gostava tanto da paraguaia que acabou cedendo, imaginando que aquilo
havia de passar se ela partisse como estava exigindo. Mandou um próprio
acompanhá-la. Depois ele ia atrás, Assunção é pequena, e o camarada ia
industriado pra ficar por lá, seguindo a moça de longe. E ela foi embora, só,
com a trouxinha, sem uma despedida, sem olhar pra trás. Quando ele foi pra
entrar no quarto quase nem se podia andar lá dentro, tudo aos montes jogado no
chão. Os vestidos estavam estraçalhados de propósito, picados devagar com a
tesourinha de unha. As joias arrebentadas, pedras caras, até o brilhante grande
do anel, fora do aro, relumeando na greta do assoalho. E os livros, os objetos,
as meias de seda, até as roupas dele, ela não poupou nada. E não tinha levado
absolutamente nada. Até a roupa de cama, também picada com a tesourinha, não
sobrara nada sem estrago. Mas agora é que vocês vão se assombrar!...
Só
bem por cima dos dois travesseiros grandes, amontoados de propósito no meio da
cama, um por cima do outro, tinha um livro. Esse não estava estragado como os
outros. Imaginem que... bom, pra encurtar: era simplesmente uma História do
Paraguai em espanhol, desses livros resumidos que a gente estudou no grupo.
Folheando o livro, ele descobriu justamente na última página do capítulo que
falava da guerra com o Brasil, está claro que tudo cheio de mentiras horríveis,
ele descobriu naquela letrona dela que mal sabia assinar o nome: “Infames”!
−
Quem que era infame?
−
Safa, Diva, sua gente mesmo!
−
Que “minha gente”?
−
Os brasileiros, Diva!
−
Eu não sou brasileira!
O
rapaz sorrindo acarinhou os cabelos louros, frios dela. O contador ia
comentando:
−
Foi por causa da Guerra do Paraguai... O homem ficou feito doido, não podia
mais passar sem ela, se botou atrás da moça, porém ela não houve meios de
ceder. E pra não ser mais incomodada, acabou desaparecendo de Assunção, ninguém
sabe pra onde. Foi uma trapalhada dos dianhos vocês nem imaginam, porque a
fazenda, as propriedades não eram mais dele, e ela nunca reclamou nada,
desapareceu pra sempre. Até andaram falando que ela suicidou-se, porque
continuava apaixonadíssima pelo brasileiro, apesar. Mas isto nunca se conseguiu
tirar a limpo. Ele é que vendeu o gado e ficou viajando por todo o Sul, sempre
com pensão na amante. Quando foi da Revolução de 30, se meteu na revolução, sem
gosto, sem acreditar em nada, só porque era revolução contra o Brasil. Diz-que
ele ia ficando maníaco, odiava o Brasil e dava razão pra Solano Lopes que foi
quem declarou a Guerra do Paraguai contra nós. Afinal conseguiu vender a
fazenda e as casas de Cuiabá, mas dizem que na casa onde ele mora não tem nada.
Só que ele prega na parede tudo quanto é notícia ofendendo o Brasil.
−
Ah, não! isso não deve ser verdade senão o Querino me contava!
−
Por que que só o Querino é que há-de saber!
−
Ele entrou vários dias na casa pra instalar o gás, já falei!
−
Uhm...
Diva
não se conteve mais, arrancou:
−
Tudo isso é uma mentira muito besta! Por que vocês não conversam noutra coisa!
−
Você conhece ele, é?
Diva
hesitou.
−...
nnnão. Mas ele sempre vem aqui.
−
Você já foi com ele?
−
Não, ele não quis. Mas falou que eu desculpasse, é muito mais delicado que
vocês todos juntos, sabem!
−
Isso de delicadeza... Deve ser é algum viciado, vá ver que não é outra coisa.
A
garçonete ficou indignada. Se ergueu com brutalidade.
−
Arre que vocês também são uns... Ia insultar, enojada, mas se lembrou que era
garçonete: Por favor, não olhem tanto pra ele assim! Ele vai sair...
De
fato, o homem estava mexendo exagitadamente em dinheiro. Diva foi pra junto
dele, achando jeito, com o corpo, de o esconder da curiosidade dos rapazes.
Fingia procurar troco. Olhou-o com esperança tristonha:
−
Por que o senhor não toma mais um chope... Está quente hoje...
Ele
estremeceu muito, devorou-a com os olhos angustiados:
−
Por que a senhora quer que eu tome mais chope hoje! Seis não é a minha conta de
sempre! Estavam falando de mim naquela mesa, não!
E
foi saindo muito rápido, escorraçado, sem olhar ninguém, sem esperar resposta
nem troco. Era incontestável que fugia.
Na
rua andava com muita pressa, apenas hesitante nas esquinas que acabava dobrando
sempre, procurando desnortear perseguidores invisíveis. Afinal, seis
quarteirões
longe, parou brusco. Estava ofegante, suava muito na noite abafada. Olhou em
torno e não tinha ninguém. Certificou-se ainda se ninguém o perseguia, mas
positivamente não havia pessoa alguma na rua morta, era já bem mais de uma hora
da manhã. Enfim tirava a mão esquerda do bolso e enxugava com algum sossego o
suor do rosto. A mão era mesmo repugnante de ver, a pele engelhada, muito
vermelha e polida. E assim, justamente por ser o polegar que faltava, a mão
parecia um garfo, era horrível.
Depois
de se enxugar, olhou o relógio-pulseira e tornou a esconder a mão no bolso.
Voltou a caminhar outra vez, e agora andava em passo normal, sem mais pressa
nenhuma. Aos poucos foi se engolfando lá nos próprios pensamentos, o rosto
readquiriu uma seriedade sombria enquanto o passo se mecanizava. Tomou aquele
seu jeito de enfiar o queixo no pescoço, cabeça baixa, parecia numa
concentração absoluta. Algum raro transeunte que passava, ele nem dava tento
mais. Às vezes fazia gestos pequenos, gestos mínimos, argumentando, houve um
instante em que sorriu. Mas se recobrou imediatamente, olhando em volta,
apreensivo. Não estava ali ninguém pra lhe surpreender o riso – e era aquele
sorriso quase esgar, apenas uma linha larga, vincando uma porção de rugas na
face lívida.
Mas
decerto perseverara o receio de que o pudessem descobrir sorrindo: principiou
caminhando mais depressa outra vez. Lá na esquina em frente despontavam alguns
rapazes que vinham da noite de sábado, conversando alto. O homem pretendeu
parar, hesitou. Acabou atravessando apenas a rua, tomando o outro passeio pra
não topar de frente com os rapazes. Enfim chegara na alameda do Triunfo. Três
quarteirões mais longe devia ser a casa onde morava, pelo que afirmara o
Alfredo. Na esquina era o botequim de seu Basílio, que estava fechando. O
português chegou na última porta ainda entreaberta, pediu licença aos três
operários, fechou a porta com um “boa-noite” malcriado. Mas os operários
estavam mais falantes com a cerveja do sábado, chegaram até à beira da calçada
e se deixaram ficar ali mesmo, naquela conversa.
O
homem vinha chegando e aos poucos diminuía o andar, observando a manobra do
botequim. Diminuiu o passo mais, dando tempo a que os operários se afastassem.
Afinal parou. Os três homens tinham ficado ali conversando, e ele estacou,
olhou pra trás, pretendendo voltar caminho, talvez. Depois ficou imóvel,
aproveitando o tronco da árvore, disposto a esperar. Dali espiava os operários
sem ser visto. Lhe dava aquela inquietação subitânea, voltava-se rápido.
Parecia temer que alguém viesse pela calçada e o apanhasse escondido ali. Mas a
rua estava deserta, não passava mais ninguém.
A
situação durava assim pra mais de um quarto de hora e os operários não davam
mostra de partir. O homem esperando sempre, só que a impaciência crescia nele.
Olhava a todo instante o relógio, como se tivesse hora marcada, olhos pregados
nos três vultos da esquina. Falavam alto, a conversa chegava até junto dele,
uma conversa qualquer. Agora vinha lá do lado oposto da alameda, o rondante, na
indiferença, bem pelo meio da rua, batendo o tacão da botina, no
despoliciamento proverbial desta
cidade.
O guarda, fosse pelo que fosse, ao menos pra mostrar força diante de gente na
cerveja, resolveu enticar com os operários. E parou na esquina também, olhando
franco os homens, rolando o bastão no pulso. Os operários nem se deram por
achados.
De
longe, meio esquecido do esconderijo, o homem, agora imóvel, devorava a cena,
olhos escancarados sem piscar. O guarda, vendo que os operários não se
intimidavam com a presença dele, resolveu fazer uma demonstração de autoridade.
Se dirigiu calmo aos homens, que pararam a conversa, esperando o que o polícia
ia falar. O homem chegou a sair com o corpo todo de trás do tronco, na ânsia de
escutar o que o guarda dizia. Mas este falava baixo, resolvido a principiar
pelo conselho, paternal. Nasceu uma troca de palavras mas pequena, acabou logo,
porque os operários não estavam pra discutir com um rondante ranzinza.
Resolveram obedecer. Aliás era tarde mesmo. Foram-se embora, ainda conversando
mais alto de propósito, forçando a voz, só porque o guarda falara que eles
estavam acordando quem dormia nas casas. O polícia percebeu, ficou com raiva,
mas também não estava muito disposto a se incomodar, que afinal os operários
eram três, bem fortes. Ficou olhando, mãos na cinta, ameaçador, quando os três
já estavam bem longe, sacudiu a cabeça agressiva e dobrou a esquina,
continuando o seu fingimento de ronda, batendo tacão.
O
homem se viu só. Houve um relaxamento de músculos pelo corpo dele, os ombros
caíram, veio o suspiro de alívio. Reprincipiou a andar devagarinho, calmo outra
vez. Na esquina ainda parou, espiando se o guarda ia longe. Nem sombra de
guarda mais. Atravessou mais rápido a rua, passou pelo boteco do português, e
agora andava com precaução, tirando o molho volumoso de chaves do bolso.
Chegado em frente duma porta, foi disfarçadamente se dirigindo para a beira da
calçada. Parou sobre a guia, aproveitando a sombra da árvore pra se esconder.
Virou os olhos para um lado e outro, examinando a alameda. Num momento, se
dirigiu quase num pulo para a porta, abriu-a, deslizou pela abertura, fechou a
porta atrás de si, dando três voltas à chave.
---
Fonte:
Fonte:
Mário de Andrade: Contos Novos. Projeto Livro Livre. São Paulo, 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário