quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Primeira Queda"

PRIMEIRA QUEDA 

As sapucaias do mato virgem, quando um vento mais forte as agita, deixam cair ao relvedo  da  selva  os  frutos  mais  maduros.  E  tumultuam  junto  às  raízes  da  árvore,  alvoroçadas  pelas  cumbuquinhas que caem, as cutias gulosas e as pacas desconfiadas.

É nesse tempo que os caçadores preparam as cevas, de estaleiro ou de choça, armam os  mundéus enganadores, e do escuro das árvores mais ramalhudas, ao cerrar da tarde, fazem traição  ao macuco, arremedando-lhe os pios tristes e intervalados. A caçada é sempre farta: mas é doído que  muita vez, ao troar da espingarda, que repercute pelas cavernas e grotas em acentos demorados e  trêmulos, algum choro de sauá que se fez órfão atravesse as frondes, vingue a lomba do espigão,  desça à várzea, morra espaçada e tremidamente.

Há caboclo que leva a dona do seu coração e essas festas de mortandade. E por isso  quase sempre, ao calor sufocante do meio-dia, voam para o alto das montanhas bandos barulhentos  de cantigas de amor, que o vento propaga e enternecidamente faz alongar pelas baixadas.

De  vez  em  quando  o  rio  que  passa  mais  próximo  trapeja  mais  forte,  ao  arrufar-se  nos  velhos  troncos  meio  imergidos  na  água:  estão  no  banho  os  caçadores.  Não  é  raro  então  que  tresmalhe do grupo um ou outro deles e se vá refrigerar dos calores dessa hora, ao longe, nos frescos  braços da gentil cabocla que não duvidou perder-se nalguma picada cheia de labirintos. O rio ronca  às vezes, o beija-flor murmura com as asas ao redor do caeté desabrochado, a parasita de espinho  debruça-se do seio da árvore onde fez morada, olha e admira-se: mas nada contam depois. .

As histórias dessas fugas e escapadas − alegres, tristes, festivas, trágicas − vão-se fazendo  complicadas  e  transformando  em  lendas,  mais  tarde,  pelos  arraiais.  Uma  das  que  os  moços  caipiras sabem, nas fazendas do norte, é a da Clorinda, morena corada e matadeira, que tanto era  mestra  de  temperar  um  jembê  como  uma  viola,  e  estava  sozinha  para  aporfiar  com  qualquer  cantador dos mais afiados, num desafio.

Todo  o  mundo  queria  bem  à  Clorinda,  porque  ela  falava  a  todo  o  mundo  com    o  coração nas mãos e bondade na voz. E a voz era muito branda, como a de quem aprende, nos  ermos, a não querer ser mais que a sapuva, cuja copa, sacudida pela aragem, nada mais faz  que soluçar abafadamente, ou ir além da jurava, que, escondida nalguma touceira de jatiboca,  diz por pios fundos e cavos a tristeza ou a alegria de que está possuída.

Ao  primeiro  vermelhar  da  madrugada,  à  hora  inexpressiva  em  que  os  jacus  estremunhados  saltam  de  galho  a  galho,  enchendo  as  clareiras  do  arvoredo  com  a  sombra  longa  e  apavorante  dos  seus  vultos  escuros  e  espectrais,  a  Clorinda  fazia  caminho  para  o  ribeirão que corria ao pé do serrote, longe da casa, lavava o rosto vagarosamente, e internava-se  nos  trilhos  e  carreadouros.  Ia  visitar  os  mundéus  e  esparrelas,  as  arapucas  e  os  laço-se- forca;  abafava,  prudente,  o  estralejar  dos  gravetos:  e  era  quase  de  sempre  voltar  feita  um  bando  de  passarinhos  esvoaçantes  e  com  uma  fieira  de  nambus  e  urus  mortos,  quando  não  trazia  também,  a  rasto,  alguma  paca  chateada  pela  pressão  do  tronco  de  arindiuva  que  sobranceava a armadilha.

Vivia assim, despreocupada e livre, entre aves e entre flores. Não saberia explicar o  motivo de se debicarem tão afagantemente os pavões, no esgalho dos ingazeiros, e de uivarem  de  maneira  tão  lamentosa  os  lobos,  na  meia-treva  das  noites  de  luar,  quando  foge  o  dia,  a  natureza  se  recolhe,  e  começa  a  apontar  a  lua,  assustadoramente  branca,  na  cumeada  dos  morros.

É  verdade  que  a  mãe,  de  quando  em  quando,  lhe  contava  mal  esclarecidos  fatos:  moças muito lindas e muito respeitadas, que se viram ao desamparo, de uma hora para outra,  por conversarem tempo esquecido com fragueiros moços em lures apartados, o que aconteceu  tão somente porque ouvissem demais a linguagem falsa e melada dos conquistadores. Mais a  miúdo  se  contavam,  na  fazenda,  as  façanhas  prodigiosas  de  Cabral,  de  Vasco  da  Gama  e  Colombo, que o patrão tinha escritos num livro grande –, e a Clorinda não caía em porque se  havia de levar a mal a conversa de qualquer moça de preceito com qualquer daqueles homens  que tinham, a todo o custo, conquistado a terra e o mar...

Indagava entre si o porque de ser pecaminosa tal conversa.

Não atinava com a razão dos avisos maternos. E horas e horas se perdia às vezes, em  pensamentos  desencontrados,  carregadinhos  de  dúvidas,  que  se  iam  desfazendo  numa  vaga  flutuação de devaneios, como, num recanto de céu, nuvens escuras, que prometem aguaceiros,  vão pouco a pouco a trocar-se em rendas alvas.

Mal que os pais que lhe principiaram, de acautelados, a vigiar os passos, a Clorinda  sentiu-se deveras constrangida. Surgia-lhe algum de repente, na doce quietez dos retiros. Por  isso, não raro, assustava-se ouvindo o mourejar do vento nos ramos bem vestidos; estremecia  toda, ao escutar a plangência da suindara, em caindo a noite, em qualquer tapera conhecida,  porque naquela voz parecia, acreditado o dito do povo, adivinhar infelicidades que haviam de  vir.  Como  uma  obsessão,  apoderara-se  dela  a  idéia  de  que  por  toda  a  parte,  em  vários  esconderijos, a estavam espreitando: e vivia, temerosa e seu tanto ou quanto amedrontada, na  ânsia constante de quem pecou e precisa de fugir.

Amava,  contudo,  os  pais.  Em  tornando  daquelas  carreiras,  procurava-os  com  solicitude, contando-lhes casos engraçados, trazendo novas de uma tararaca que dera um salto  de duas ou três braças, de puro aterrorizada, entre um peloteiro e o galho mais caído de certo  antonio-alves; de um nambuguaçu que repicava o pio roucamente: e até – coisa espantosa! De  um gavião de penacho que se  aventurara a  arracncar de um mundéu, perto dela, um cateto  novo, um leitãozinho, que esperneava ainda, nas vascas da agonia.

Um dia, como disse à mãe que topara um moço caçador chamado Eugênio, para as  bandas da grota seca, em pós de um mateiro arrenegado, a mãe, com palavras meio veladas e  fortemente persuasivas, aconselhou-lhe que não fosse mais a tais lugares e evitasse encontros  perigosos assim. Admirou-se. Afigurava-se-lhe muito natural que os caçadores atravessem os  mais cerrados matos e as mais apagadas veredas: quando se lhes some a caça cobiçada, é bem  de ver que nada os detêm – valos, moitas de espinho, pedreiras, morros.

Se  o  Eugênio  era  caçador,  seria  de  certo  como  os  outros:  e  tinha  ares  de  tamanha  bondade,  que  não  havia  arrecear-se  dele,  senão  por  muita  e  dura  injustiça.  Não  mudou  de  caminho: todos os dias ia visitar duas esperrelas que armara num paraíso, ao pé do ribeirão,  morada efetiva dos sabiás-coleiros e unas de melhor estilo daquelas cercanias. Até, no mais  íntimo  de  sua  alma,  chegava  a  querer  observar  se  aquele  moço  teria  olhares  tão  maus  e  palavras tão feias, quando acaso outra vez se defrontassem, nalgum trilho indeciso, sozinhos,  à vista, apenas, de Deus. 

Uma vez, afinal, como novamente o Eugênio lhe aparecesse, no abrir de uma porteira  assombreada de canjaranas, ficou perplexa entre o cortejá-lo e o sumir-se mais que depressa  nalgum  densumbroso  ramalhete  de  árvores.  O  destino  deteve-a,  que  tem  muita  força  o  destino! – e o moço perguntou-lhe do rumo de um caminho perdido. Ora, vendo-a   perturbada,   perturbou-se também: mas a feiticeira Clorinda cobrou-se logo de espírito e ensinou-lhe todas  as estradas de algumas duas léguas em redondo.

Não  se  movia  o  caçador,  no  entanto.  A  Clorinda,  agora,  recordava  sensatas  recomendações  e  conselhos  maternos,  que  já  andavam  quase  de  todo  em  todo  desleixados:  não é bom dar trela nunca a jovens caçadores, quando ao perto se não ache algum conhecido:  moço  e  moça  não  devem  caminhar  sem  outra  companhia,  nos  atalhos  extravagantes  e  nas  longas soledades.

No entanto, não se movia. E tendo sido convidada para ver matar uma cutia cevada nas  sapucaias  maduras,  que  a  força  do  vento  espalhava  pelo  chão  acamado  de  folhas  já  murchas, foi coisa de admirar que tão depressa aceitasse o convite. E caminhavam juntos: as  duas  sombras,  na  areia  branca  entremeada  de  pedregulhos,  aumentavam  de  tamanho,  agitavam-se, faziam-se monstruosamente grandes, ao lado uma da outra. Penetraram a mata,  num ponto em que havia montões de ramos quebrados, ao bulir ondulante das folhas tocadas,  e fazendo um rumor precatado, quase nem um.

Já muito longe, à beira de um solapão hiante e profundo, que da aguada subia para a  plena mata, pararam. Dormia a mata. Quedaram não poucas horas à espera da cutia. A cutia  não  vinha.  Os  vegetais  conservavam-se  imóveis.  A  demora  não  era  já  pequena.  Nada  quebrava o silêncio e a soneira das árvores, que se diria estarem tomadas do êxtase de um rico  sonho.  Os mesmos passarinhos mais irrequietos – patativa do sertão, bico-pimenta, alcaide,  picharro – não davam cópia de si. E o Eugênio e a Clorinda, ansiosos, esperavam...

Mas,  a  súbitas,  pesado  rumor  se  fez  ouvir  ao  longe.  O  Eugênio  prestou  atenção,  concheou  a  mão  direita  atrás  da  orelha,  empalideceu:  e  observou  à  companheira  que  uma  grossa  nuvem  de  caçunungas  vinha  chegando.  Caçunungas!  Caçunungas!  –  só  de  pensar  naquele enxame de marimbondos bravios, a Clorinda, tapijara de toda a paragem, disposta e  valente,  começou,  entretanto,  a  tremer.  E  o  enxame  aproximava-se:  parecia  o  trovejar  das  águas  de  um  alto  açude  que  rompeu  represas  possantes  e  agora,  no  meio  da  calma  embasbacada dos arredores, descia vitoriosamente até o ribeirão de onde o tiraram.

Houve uma tal igualdade de pensamentos, no mesmo elo de medo, que se deitaram  lado a lado, unindo-se bem ao chão, precavidos contra a nuvem que passaria a uns dois metros  acima, negra e agitada e quase a urrar. O que, porém, não entrava no capítulo, foi o pegarem a  beijar-se os dois, quando se avizinhavam os caçunungas, enquanto passavam, depois que se  afastaram.  Não  era  da  caçada!  E  a  Clorinda,  bem  no  fundo  da  sua  alma  singela,  entrara  a  pensar  que  a  mãe  a  enganara,  porque  o  Eugênio,  um  caçador  como  os  demais,  não  tinha,  entretanto, ditos ou feitos que espantassem, que a deixassem na tristeza, na vergonha ou na  desconsolação de uma descortesia recebida.

Os caçunungas, em bando compacto, desapareceram na escureza das brenhas. Ainda  rouquejou, muito tempo, o rumor que faziam, perfeita semelhança do temporal que se alonga.  Mas o caçador e a caçadora, numa constante igualdade de pensamentos, detiveram-se à beira  do solapão, distraídos, esquecidos, comovidos. Só deram tento da vida, só pensaram em tornar  para seus pagos quando se viu o primeiro piscar das estrelas no céu. 

Voltaram. Na estrada alva os dois vultos cresciam fantasticamente, agora sombrios e  mais  anchos.  Os  purrutuns  apavorados  levantavam  cansados  vôos  adiante  deles.  E  toda  a
mata, em seguida, readormecia muito serenamente.

Quando  o  Eugênio,  na  sofralda  do  espigão,  teve  de  se  despedir  da  moça,  a  moça  chorava:  prantos  de  amor  que  nasceu  na  incerteza  de  uma  hora  turva!  E  chorou  no  dia  seguinte: mágoa quase doce de quem principia a aprender o sofrimento no que ele tem mais  meigo e mavioso. E chorou nos outros dias: ânsia de quem, não sendo passarinho, ama com  ternura e afã de pomba-piranga, e desejo de rasgar um violento vôo para onde crê se esconde  o companheiro. Depois, saudades.

Mas  o  tempo  tudo  apaga.  Ela  veio  a  consolar-se:  viram-na  de  novo  as  capituvas  amigas, banharam-lhe outra vez o corpo as águas esquecidiças do ribeirão, que passam e não  remontam;  apareceu  nos  catiras,  onde,  foi  coisa  não  costumada  aquilo  –  por  seu  amor  apareceram crencas e contendas.


Hoje,  segundo  a  unânime  afirmação  dos  moços  caipiras,  nas  fazendas  do  norte,  a  Clorinda cai tal e qual as sapucaias do mato virgem...


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007 

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