PRIMEIRA QUEDA
As sapucaias do mato
virgem, quando um vento mais forte as agita, deixam cair ao relvedo da
selva os frutos
mais maduros. E
tumultuam junto às
raízes da árvore,
alvoroçadas pelas cumbuquinhas que caem, as cutias gulosas e as
pacas desconfiadas.
É nesse tempo que os
caçadores preparam as cevas, de estaleiro ou de choça, armam os mundéus enganadores, e do escuro das árvores
mais ramalhudas, ao cerrar da tarde, fazem traição ao macuco, arremedando-lhe os pios tristes e
intervalados. A caçada é sempre farta: mas é doído que muita vez, ao troar da espingarda, que
repercute pelas cavernas e grotas em acentos demorados e trêmulos, algum choro de sauá que se fez
órfão atravesse as frondes, vingue a lomba do espigão, desça à várzea, morra espaçada e
tremidamente.
Há caboclo que leva a dona do seu coração e essas festas
de mortandade. E por isso quase sempre,
ao calor sufocante do meio-dia, voam para o alto das montanhas bandos
barulhentos de cantigas de amor, que o
vento propaga e enternecidamente faz alongar pelas baixadas.
De vez
em quando o
rio que passa
mais próximo trapeja
mais forte, ao
arrufar-se nos velhos
troncos meio imergidos
na água: estão
no banho os
caçadores. Não é
raro então que
tresmalhe do grupo um ou outro deles e se vá refrigerar dos calores
dessa hora, ao longe, nos frescos braços
da gentil cabocla que não duvidou perder-se nalguma picada cheia de labirintos.
O rio ronca às vezes, o beija-flor
murmura com as asas ao redor do caeté desabrochado, a parasita de espinho debruça-se do seio da árvore onde fez morada,
olha e admira-se: mas nada contam depois. .
As histórias dessas fugas e
escapadas − alegres, tristes, festivas, trágicas − vão-se fazendo complicadas
e transformando em
lendas, mais tarde,
pelos arraiais. Uma
das que os
moços caipiras sabem, nas
fazendas do norte, é a da Clorinda, morena corada e matadeira, que tanto
era mestra de
temperar um jembê
como uma viola,
e estava sozinha
para aporfiar com
qualquer cantador dos mais
afiados, num desafio.
Todo o
mundo queria bem
à Clorinda, porque
ela falava a todo o
mundo com o
coração nas mãos e bondade na voz. E a voz era muito branda, como a de
quem aprende, nos ermos, a não querer
ser mais que a sapuva, cuja copa, sacudida pela aragem, nada mais faz que soluçar abafadamente, ou ir além da
jurava, que, escondida nalguma touceira de jatiboca, diz por pios fundos e cavos a tristeza ou a
alegria de que está possuída.
Ao primeiro
vermelhar da madrugada,
à hora inexpressiva
em que os
jacus estremunhados saltam
de galho a
galho, enchendo as
clareiras do arvoredo
com a sombra
longa e apavorante
dos seus vultos
escuros e espectrais,
a Clorinda fazia
caminho para o
ribeirão que corria ao pé do serrote, longe da casa, lavava o rosto
vagarosamente, e internava-se nos trilhos
e carreadouros. Ia
visitar os mundéus
e esparrelas, as
arapucas e os
laço-se- forca; abafava, prudente,
o estralejar dos
gravetos: e era
quase de sempre
voltar feita um
bando de passarinhos
esvoaçantes e com
uma fieira de
nambus e urus
mortos, quando não
trazia também, a
rasto, alguma paca
chateada pela pressão
do tronco de
arindiuva que sobranceava a armadilha.
Vivia assim, despreocupada
e livre, entre aves e entre flores. Não saberia explicar o motivo de se debicarem tão afagantemente os
pavões, no esgalho dos ingazeiros, e de uivarem
de maneira tão
lamentosa os lobos,
na meia-treva das
noites de luar,
quando foge o
dia, a natureza
se recolhe, e
começa a apontar
a lua, assustadoramente branca,
na cumeada dos
morros.
É verdade
que a mãe,
de quando em
quando, lhe contava
mal esclarecidos fatos:
moças muito lindas e muito respeitadas, que se viram ao desamparo, de
uma hora para outra, por conversarem
tempo esquecido com fragueiros moços em lures apartados, o que aconteceu tão somente porque ouvissem demais a
linguagem falsa e melada dos conquistadores. Mais a miúdo
se contavam, na
fazenda, as façanhas
prodigiosas de Cabral,
de Vasco da
Gama e Colombo, que o patrão tinha escritos num
livro grande –, e a Clorinda não caía em porque se havia de levar a mal a conversa de qualquer
moça de preceito com qualquer daqueles homens
que tinham, a todo o custo, conquistado a terra e o mar...
Indagava entre si o porque
de ser pecaminosa tal conversa.
Não atinava com a razão dos
avisos maternos. E horas e horas se perdia às vezes, em pensamentos
desencontrados,
carregadinhos de dúvidas,
que se iam
desfazendo numa vaga
flutuação de devaneios, como, num recanto de céu, nuvens escuras, que
prometem aguaceiros, vão pouco a pouco a
trocar-se em rendas alvas.
Mal que os pais que lhe
principiaram, de acautelados, a vigiar os passos, a Clorinda sentiu-se deveras constrangida. Surgia-lhe
algum de repente, na doce quietez dos retiros. Por isso, não raro, assustava-se ouvindo o
mourejar do vento nos ramos bem vestidos; estremecia toda, ao escutar a plangência da suindara, em
caindo a noite, em qualquer tapera conhecida,
porque naquela voz parecia, acreditado o dito do povo, adivinhar
infelicidades que haviam de vir. Como
uma obsessão, apoderara-se
dela a idéia
de que por
toda a parte,
em vários esconderijos, a estavam espreitando: e vivia,
temerosa e seu tanto ou quanto amedrontada, na
ânsia constante de quem pecou e precisa de fugir.
Amava, contudo,
os pais. Em
tornando daquelas carreiras,
procurava-os com solicitude, contando-lhes casos engraçados,
trazendo novas de uma tararaca que dera um salto de duas ou três braças, de puro aterrorizada,
entre um peloteiro e o galho mais caído de certo antonio-alves; de um nambuguaçu que repicava
o pio roucamente: e até – coisa espantosa! De
um gavião de penacho que se
aventurara a arracncar de um
mundéu, perto dela, um cateto novo, um
leitãozinho, que esperneava ainda, nas vascas da agonia.
Um dia, como disse à mãe
que topara um moço caçador chamado Eugênio, para as bandas da grota seca, em pós de um mateiro
arrenegado, a mãe, com palavras meio veladas e
fortemente persuasivas, aconselhou-lhe que não fosse mais a tais lugares
e evitasse encontros perigosos assim.
Admirou-se. Afigurava-se-lhe muito natural que os caçadores atravessem os mais cerrados matos e as mais apagadas
veredas: quando se lhes some a caça cobiçada, é bem de ver que nada os detêm – valos, moitas de
espinho, pedreiras, morros.
Se o
Eugênio era caçador,
seria de certo
como os outros:
e tinha ares
de tamanha bondade,
que não havia
arrecear-se dele, senão
por muita e
dura injustiça. Não
mudou de caminho: todos os dias ia visitar duas
esperrelas que armara num paraíso, ao pé do ribeirão, morada efetiva dos sabiás-coleiros e unas de
melhor estilo daquelas cercanias. Até, no mais
íntimo de sua
alma, chegava a
querer observar se
aquele moço teria
olhares tão maus
e palavras tão feias, quando
acaso outra vez se defrontassem, nalgum trilho indeciso, sozinhos, à vista, apenas, de Deus.
Uma vez, afinal, como
novamente o Eugênio lhe aparecesse, no abrir de uma porteira assombreada de canjaranas, ficou perplexa
entre o cortejá-lo e o sumir-se mais que depressa nalgum
densumbroso ramalhete de
árvores. O destino
deteve-a, que tem
muita força o
destino! – e o moço perguntou-lhe do rumo de um caminho perdido. Ora,
vendo-a perturbada, perturbou-se também: mas a feiticeira
Clorinda cobrou-se logo de espírito e ensinou-lhe todas as estradas de algumas duas léguas em
redondo.
Não se
movia o caçador,
no entanto. A
Clorinda, agora, recordava
sensatas recomendações e
conselhos maternos, que
já andavam quase
de todo em
todo desleixados: não é bom dar trela nunca a jovens caçadores,
quando ao perto se não ache algum conhecido:
moço e moça
não devem caminhar
sem outra companhia,
nos atalhos extravagantes
e nas longas soledades.
No entanto, não se movia. E
tendo sido convidada para ver matar uma cutia cevada nas sapucaias
maduras, que a
força do vento
espalhava pelo chão
acamado de folhas
já murchas, foi coisa de admirar
que tão depressa aceitasse o convite. E caminhavam juntos: as duas
sombras, na areia
branca entremeada de
pedregulhos, aumentavam de
tamanho, agitavam-se, faziam-se
monstruosamente grandes, ao lado uma da outra. Penetraram a mata, num ponto em que havia montões de ramos
quebrados, ao bulir ondulante das folhas tocadas, e fazendo um rumor precatado, quase nem um.
Já muito longe, à beira de
um solapão hiante e profundo, que da aguada subia para a plena mata, pararam. Dormia a mata. Quedaram
não poucas horas à espera da cutia. A cutia
não vinha. Os
vegetais conservavam-se imóveis.
A demora não
era já pequena.
Nada quebrava o silêncio e a
soneira das árvores, que se diria estarem tomadas do êxtase de um rico sonho.
Os mesmos passarinhos mais irrequietos – patativa do sertão,
bico-pimenta, alcaide, picharro – não
davam cópia de si. E o Eugênio e a Clorinda, ansiosos, esperavam...
Mas, a
súbitas, pesado rumor
se fez ouvir
ao longe. O
Eugênio prestou atenção,
concheou a mão
direita atrás da
orelha, empalideceu: e
observou à companheira
que uma grossa
nuvem de caçunungas
vinha chegando. Caçunungas!
Caçunungas! – só
de pensar naquele enxame de marimbondos bravios, a
Clorinda, tapijara de toda a paragem, disposta e valente,
começou, entretanto, a
tremer. E o
enxame aproximava-se: parecia
o trovejar das
águas de um
alto açude que
rompeu represas possantes
e agora, no
meio da calma
embasbacada dos arredores, descia vitoriosamente até o ribeirão de onde
o tiraram.
Houve uma tal igualdade de
pensamentos, no mesmo elo de medo, que se deitaram lado a lado, unindo-se bem ao chão,
precavidos contra a nuvem que passaria a uns dois metros acima, negra e agitada e quase a urrar. O que,
porém, não entrava no capítulo, foi o pegarem a
beijar-se os dois, quando se avizinhavam os caçunungas, enquanto
passavam, depois que se afastaram. Não
era da caçada!
E a Clorinda,
bem no fundo
da sua alma
singela, entrara a
pensar que a
mãe a enganara,
porque o Eugênio,
um caçador como
os demais, não
tinha, entretanto, ditos ou
feitos que espantassem, que a deixassem na tristeza, na vergonha ou na desconsolação de uma descortesia recebida.
Os caçunungas, em bando
compacto, desapareceram na escureza das brenhas. Ainda rouquejou, muito tempo, o rumor que faziam,
perfeita semelhança do temporal que se alonga.
Mas o caçador e a caçadora, numa constante igualdade de pensamentos,
detiveram-se à beira do solapão, distraídos,
esquecidos, comovidos. Só deram tento da vida, só pensaram em tornar para seus pagos quando se viu o primeiro
piscar das estrelas no céu.
Voltaram. Na estrada alva
os dois vultos cresciam fantasticamente, agora sombrios e mais
anchos. Os purrutuns
apavorados levantavam cansados
vôos adiante deles.
E toda a
mata, em seguida,
readormecia muito serenamente.
Quando o
Eugênio, na sofralda
do espigão, teve
de se despedir
da moça, a
moça chorava: prantos
de amor que
nasceu na incerteza
de uma hora
turva! E chorou
no dia seguinte: mágoa quase doce de quem principia
a aprender o sofrimento no que ele tem mais
meigo e mavioso. E chorou nos outros dias: ânsia de quem, não sendo
passarinho, ama com ternura e afã de
pomba-piranga, e desejo de rasgar um violento vôo para onde crê se esconde o companheiro. Depois, saudades.
Mas o
tempo tudo apaga.
Ela veio a
consolar-se: viram-na de
novo as capituvas
amigas, banharam-lhe outra vez o corpo as águas esquecidiças do
ribeirão, que passam e não
remontam; apareceu nos
catiras, onde, foi
coisa não costumada
aquilo – por
seu amor apareceram crencas e contendas.
Hoje, segundo
a unânime afirmação
dos moços caipiras,
nas fazendas do
norte, a Clorinda cai tal e qual as sapucaias do mato
virgem...
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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