CASTIGO DO CÉU
Ao Alarico Silveira
− Mas por que foi que você me
ficou querendo tanto bem?
− A falar um pouco de verdade,
nem sei: mas cuido que foi porque descobri nos seus olhos a lealdade do seu coração. Você não se
lembra que logo logo que tomei conhecimento
com você, já contei pra muita gente que ‘tava apaixonado?
− Lembro muito, demais: até isso aconteceu
numa festa do espírito santo que houve
em santa cruz; por sinal que você vinha montado num cavalo oveiro, muito
feio, que pegou de corcovos assim que os
foguetes começaram a chiar.
− É isso mesmo, tal e qual. Você
ia saindo da igreja co’a sua mãe, e vestida de chita de ramos cor de rosa, pois não ia?
Ao lusco-fusco
da boca da
noite, debaixo dum
çoita-cavalo de ramadas
enormes, conversavam deste modo, sem
tirar nem pôr, o Totico e a Rosinha. A voz dos dois era macia e de segredo quase; tanto, que um casal de
chanchãs que cutucava o tronco da árvore, nem deu fé, sequer, de que em baixo havia duas
pessoas: e não há quem não saiba que os chanchãs são pássaros muito velhacos e mexeriqueiros.
O
Totico, afamado pela
sua mão de
rédea para acertar,
ganhara fama também,
na Mandaçaia e redondezas, de
bicho carpinteiro da alminha das moças. Ele próprio afirmava, a quem quisesse aturar-lhe as gabolices, que,
para mula chucra, basta passar a mão no fio do
lombo e montar; que tal mula talvez dê seus saltos, um pulo ou
outro, mas logo sossega e pode levar-se pela sombra, que já não conta
mais histórias: e que a diferença dûa mula chucra para ûa mulher, não é lá tão grande coisa!
Depois de
variadas aventuras, encontrou
no caminho de
suas reinações a
Rosinha, a criatura
mais carinhosa que
Deus pôs neste
mundo, e resolveu
enfeitiçá-la. A pobre,
que morava lá
por aqueles fundos
da cachoeirinha da
boa vista e não maliciava
de ninguém, vendo-o tão cheio de bondade e falando
palavras tão doces como as que ele sabia, ficou logo entregue.
E as coisas
foram-se encaminhando de
tal jeito, que
um dia, quando
ela quis precatar-se contra as tentações daquele
demônio, já era tarde. Diz que cada um de nós tem seu anjo
da guarda, que
ensina a estrada
certa da vida
e livra dos
precipícios: o da
Rosinha na certeza
cansou por então,
e dormiu, deixando-a
bem acordada, e o inimigo
do inferno, aproveitando-se da ocasião, tomou conta
daquela criatura desprevenida. Sem dúvida é assim que todas as outras erram o caminho e se
perdem: um descuido, um sozinho qualquer do anjo da guarda...
Notícia má
corre que é
um despropósito. Em
poucos dias o povo da
Mandaçaia foi sabedor daqueles amores. Mulheres idosas
aconselhavam à Rosinha que tivesse tento consigo, porque o Totico era uma alma perdida: e mal
sabiam que esses conselhos já chegavam tarde e
a más horas.
Ela, então, que
tiritava de susto
ao pensar no
futuro, principiou a
ficar melancólica e
distraída. No meio
da melancolia e
da distração em
que se abismava,
constantemente a viam tremer e agitar-se que nem varas verdes: e, se lhe
perguntavam porque tremia assim,
respondia que eram nervos. A resposta contentava, e ela ia vivendo: e, nem bem
o sol entrava, já seu vulto aparecia, à espera do Totico, no lugar
marcado de véspera.
Tantos medos lhe pregaram, que
entrou a cismar que o Totico podia desampará-la ao Deus-dará,
de uma hora
para outra. E
como não tinha
arte nem uma
para dissimular os
pensamentos que a possuíam, um dia que o Totico desejou saber a razão de
ela estar magoada, logo lhe foi dizendo
que se atemorizara por certas prosas que ouvira: e todas lhe repetiu.
O
Totico faltou só
bater-lhe: ficou irado,
com os olhos
em ponto de
fogo e a
boca tremendo: chegou a dizer-lhe
que, se não o acreditava, tratasse de se esquecer dele, que ele faria o mesmo e jurava e trejurava que tudo
aquilo era mentira. Quem vive namorado não põe
muita relutância em crer o que a pessoa predileta diz: a Rosinha, apesar
de lhe fazer espécie o semblante enfurecido
do rapaz, já
estava meio cá,
meio lá, para
se convencer. O que não
conseguiram as palavras, um simples agradinho o conseguiu, porque o
Totico pô-se a abraçá- la, a Rosinha
enterneceu-se, e a
discussão não foi
por diante: por
estas e outras
é que ele
assegurava que a diferença de ûa mula chucra para ûa mulher não é lá tão
grande coisa...
Ora mais dia, menos dia, a
Rosinha deu de ficar moleirona e mofina. A princípio sentia umas
pontadas de banda,
que muito a
atormentavam; depois perdeu
a fome de
uma vez, chegava à mesa e nem bulia nos pratos;
olheiras cor de violeta cercaram-lhe os olhos; perdeu a coragem para todo e qualquer serviço;
doíam-lhe as cadeiras. A mãe, que vivia na inocência, balanceava
entre preparar algûa
mezinha ou mandar
fazer-lhe qualquer benzedura:
pensou, pensou bastante,
e resolveu chamar
para consulta uma
curiosa de muito
bom renome, a
Joaquina das Pedreiras.
A Joaquina das Pedreiras, tanto
que soube da doença, já sentiu a pulga atrás da orelha. Veio, apalpou a Rosinha, deu-lhe palmadas
leves no ventre, passou-lhe a mão no pescoço, e
declarou, alto e bom som, que aquilo era moléstia de nove meses. A mãe
da Rosinha pulou-lhe à goela,
chamando-lhe os piores
nomes deste mundo:
ordinária, desgraçada, caveira
do demônio, e outros de maior
porte, ao fim dos quais, e sob garras tão frenéticas, a mezinheira começou
a soluçar. Abrandou-se
o coração da
mãe da Rosinha,
e a Joaquina
das Pedreiras logrou
sair, praguejando e
com o pescoço
a correr sangue.
E daí a
pouco se verificou
que falara verdade...
O Totico fugiu às léguas, mal que
soube do acontecido. Bem diziam que ele era uma
alma perdida, bem diziam! Ninguém lhe botou mais os olhos em cima:
tornou-se num repente sumidiço que nem
bicho do mato. Apenas, de vez em quando, aparecia notícia que o tinham visto para os lados do capivara, como
capataz de porcada dum tal Maneco de
Lellis: até que enfim
o silêncio caiu
sobre o nome,
e quem continuou
a ser lembrada
e a padecer
foi a Rosinha.
E que padecimentos! As mães de
família tratavam-na de resto, olhando-a sempre com ares de pouco caso; as antigas companheiras
evitavam-na sempre; aonde ela ia como que tudo
se desolava na mesma hora; os próprios homens erados a entristeciam,
passando-lhe pitos e dizendo indiretas
que a pungiam como os espinhos da macaúba37 com que a gente esbarra à sombra duma touceira, no emaranhado. Achava
tão extraordinário o que lhe sucedia, que nem
dava tino das desfeitas e como que ficara meio idiota: após tanto choro
e prantear, nada mais lhe restava que
pedir a Deus lhe perdoasse e a recebesse
na santa glória: e não tinha ânimo de
dirigir tais súplicas a aquele de quem se desviara pelo pecado.
Chegou o dia de adoecer. Foi no
senhor menino. Meio mundo se preparava para ir à missa
do galo, quando
ela principiou a
sentir as dores.
Chorava que era
uma lástima, queixava-se
da sorte e
amaldiçoava o momento
em que conhecera
o Totico; mas
apesar de tudo não o amaldiçoava, a ele que lhe dera
tais e tantos sofrimentos, deixando-a sozinha com a mágoa e com o desespero. A mãe, que de perto
lhe ouvia os gemidos, tinha os olhos amarados
de lágrimas: e dava dó ver aquelas duas sofredoras assim.
Quando nasceu a criança, um
menino miúdo e sadio, a Rosinha desmaiou na loucura da febre;
os olhos pareciam-lhe
brasas ardentes, e
de brasas ardentes
se lhe afigurava
estarem circuladas as fontes; o
secume dos lábios era-lhe insuportável; o ofegar do peito doía-lhe: e como um espectro que a perseguisse, a todo
instante, vagava-lhe em torno o Totico, sem dizer nada, com a expressão de semblante de um
gira. Várias vezes ela disse, na tormenta do delírio:
− Nhá mãe, nhá mãe, tire o Totico
daqui, porque ele ‘tá louco.
E a mãe, silenciosamente, rezava,
rogando aos poderes do céu que afastassem da infeliz, ao menos agora, aquele satanás que só lhe
trazia torturas. Pouco a pouco, porém, serenou o desafortunado espírito da moça: ela dormiu,
num sossego semelhante ao da morte, pois mal se
lhe escutava a respiração −, e a mãe, aos pés da cama, ficou velando-lhe
o sono até as horas mais claras da
madrugada.
Ao acordar,
sobre tarde, a
Rosinha pediu o
filho. Contemplou-o largo
tempo: e uma
enxurrada quente de lágrimas deslisou por suas olheiras abaixo, até cair
às faces e à boca da criança, que lhe
estranhou o amargor. A Rosinha então falou-lhe, como se a criança pudesse entendê-la:
− Meu choro é muito amargo, filhinho? Veja só quanto aquele home’ de coiração de pedra não me tem feito sofrer! Mas tomara que
nada lhe aconteça, porque pode que inda sirva
de muito pra você, pra você que é tão desprotegido, meu filhinho!
Foi um inferno, a vida que a
Rosinha levou, até que o menino engatinhasse. Vigiá-lo a toda
hora, quando o
serviço caseiro queria
cuidados contínuos, quando era
preciso contar a
criação, aprontar as
rações do curral
e do chiqueiro,
fazer o almoço
e a janta,
remendar as roupas velhas, são coisas que só não pesam a
quem traz o coração lavado e alegre. Fraca se
sentia, a coitada, assim que se deitava para conciliar o sono: e esse
mesmo era interrompido sempre pelo
chorar noturno.
Pesadelos e maus sonhos apenas
esperavam que ela cerrasse os olhos, para angustiá-la: e sucediam-se um após do outro, noite fora,
como uma singular penitência. De modo que os
olhos se lhe afundavam, as faces iam-lhe tomando a cor das velas de cera
e a voz se lhe fazia abafada e baça.
Afez-se a
madrugar demais. Nem
bem a manhã
principiava a arraiar,
levantava-se; muitas vezes,
ao depois de
assear a criança,
chegava ao pátio,
sentava-se a um
banco de peroba, e punha-se a contemplar o filho, com
uma tristeza que era também enternecimento e
apreensão: vendo bater os primeiros raios de sol naquele rosto mimoso,
assustava-se, ideando que um fio
de sangue lhe
corria pela epiderme,
provindo dalguma grande
ferida: erguia-se então de pronto, caminhava para a faina.
Mandava nûa máquina de costura
como ninguém; para botar uns pespontos, estava de banda; lidava muito bem na feitura das
rendas: e como atravessava quase o dia inteiro junto à máquina, foi um dia remexer moldes antigos
para fazer certo vestido. No meio dos panos e
papéis havia de tudo: dedais, agulhas de mão de todas as grossuras,
linhas de todo número, retalhos de
chita, alfinetes. A brilhar e rebrilhar entre aquela trapizonga, apareciam vidrilhos ao lado de carrretéis, contas de pérola
espalhadas a parzinho de contas de celulóide. Através da barafunda, movida e removida, tremeu
alguma coisa que dava ares de nada valer: uma rosa seca. Pois foi de admirar o estremecimento
que a moça teve, ao tocar na triste flor, e ao vê-la murcha assim: era de jurar que a pobre moça
imaginava que a pobre rosa, amiga sua, padecia
o mesmo desespero que ela!
Rosa que tudo dizia! Uma vez,
depois de olhares amorosíssimos trocados de esconso, na igreja,
nos pagodes, ao
longo das estradas
da Mandaçaia, a
Rosinha encontrou-se com
o Totico por debaixo dum
çoita-cavalo, no pasto, e prosearam muito tempo... Foi dessa vez que ela se sentiu entregue e sem defesa, e foi aí
que recebeu aquela flor, que passara a suas mãos de uns dedos trêmulos e como febris. Desde
então não soubera nunca mais o que é descanso
de coração: e sentia-o agora avelhentado e sem esperanças, tal e qual
aquela mesma flor, que era impossível
revivesse e corasse ainda.
Inclinou-se para a gavetinha onde
se amontoavam os guardados; repousou o queixo na mão
direita; os pensamentos,
cruzando-se-lhe no espírito
à semelhança de
um bando de
passarinhos estonteados, voaram,
voaram: e enquanto
eles partiam −
talvez ficasse saudosa
por vê-los partir, talvez medrosa de que voltassem −, de novo o ribeirão
das lágrimas correu por aquele rosto
meigo, em dois galhos, sobre os leitos escuros das olheiras.
Já transmontara o sol, quando
surgiu da abstração em que se embrenhara. Acumulavam-se nuvens extravagantes,
ao longe, como se houvessem nascido do seio das montanhas e agora crescessem
apavorantemente na meiga
luz tristonha do
crepúsculo. Os urutaus
gritavam de pedaço
a pedaço, os
xintãs davam os
derradeiros pios. O
ar estava carregado
de um cheiro
forte de cambarás-de-lixa. Os sabiás-unas cantavam cantigas apaixonadas.
Rosinha pôs-se em pé, serena que
nem um fantasma: e por virem os últimos raios do sol avermelhar
a janela a
que se recostara,
seu rosto ainda
inculcou mais sofrimentos,
dentre o fogo triunfal que a circundava.
Mais tempo, menos tempo, ia
passando pela estrada o Totico, algum tanto arrependido da
feia ação que
praticara. Vinha montado
num tobiano uçu,
bracejador e engraçado
como poucos: e como a estrada
tinha muito estrepe, o tobiano dava muitas topadas: e como a alma do Totico se achava deveras apreensiva, cada
abalo do animal lhe era um abalo no fundo da
alma.
Ao chegar em frente à porteira do
pátio, conheceu a Rosinha; conheceu-a, e ficou duro no
socado, tal e
qual como se
tivesse tido um
acidente, porque a
viu magrinha e
pálida a causar
pena: e sentiu
forte pena, realmente,
acompanhada às surdas
de um remorso
muito agudo, que ele ainda se não
confessava, mas que o deixava todo amargurado.
Quis voltar por algum desvio, mas
já não pôde, que a mão não teve forças para torcer a rédea: e permaneceu larga temporada a
vizinhar com a porteira, tendo os cabelos em pé e o corpo
frio. Não lhe
vinha uma idéia
salvadora. Botaria o
tobiano a galope?
Faltava-lhe coragem. Abriria a
porteira? Não tinha modos de falar à Rosinha, à pobre a quem perdera, e de cuja
existência negra tivera
notícias lá pelo
capivara. Ela, porém,
saiu ao pátio:
e o poente
desmaiava a pouco e pouco, no momento em que deu a mão ao Totico para
ajudá-lo a apear. A voz
paralisava-se-lhes na garganta; o grito longínquo dos urutaus infundia um pavor
indizível à quietez da natureza
sonolenta: − e podia-se pensar, olhando-os, que o que sobremodo lhes tolhia a voz e os magoava tanto era o lamento
sugestivo dos urutaus.
O Totico, de repente, montou de
novo. Impulsava-o um sentimento desconhecido, talvez o medo de si mesmo, da sua consciência
pecadora e baixa. Cravou firme as chilenas nas ancas do cavalo.
E enquanto Rosinha lhe
perguntava:
−
Pois você nem
ao menos quer
ver o filhinho,
desnaturado? − a
imagem do pampa
sumia na poeira
do caminho, clareada
do luar nascente.
O Totico soluçava;
seus soluços, levados pelo vento, confundiam-se com os dos
curiangos: e não se sabia bem quais eram os
mais doloridos.
Ninguém o
esperava em casa,
e foi uma
festa o verem-no
chegar assim de
surpresa. Cercaram-no todos
os seus, a
abraçá-lo; mas, reparando-lhe
nas esquisitas feições
do rosto, assustaram-se
e murcharam como
por encanto. Cada
qual queria saber
a razão de tamanho banzo: e as confidências apareceram na
conversa, recatadas e segredosas. Explicava o Totico a cena
acontecida, e seu
falar parecia nublar-se
de um nevoeiro
de incertezas: pois
dizia, o infeliz,
que outras mulheres
também tinham choramingado
um eito, mas
afinal todas se
consolaram e aí andavam pintando a moringuinha pelo mundo de Deus .
Todos se
arrepiaram, recordando-se da
Rosinha: que essa,
qualquer podia jurá-lo
em cima duns evangelhos, não
procedera por tal forma.
E, para
realçar a constância
da roceira da
Mandaçaia, não faltou
quem narrasse os
delírios que ela teve, e as frases que dissera através dos delírios. Foi
repetida a história de que ela falara à
mãe, uma vez, lhe tirasse de perto o Totico, porque ele estava fora do juízo.
Mal que
lhe soaram as
últimas palavras da
narrativa, o Totico
estremeceu como um
broto de assa-peixe à ventania; enveredou por um cogitar complicado e
cheio de labirintos, do qual só rompeu
muito tarde depois, quando os galos já estavam amiudando.
Abriu a porta que dava para a
estrada, e olhou a noite de lua.
Viam-se bem
as sinuosidades das
serras e os
recortes fantásticos dos
caminhos, por onde, a quando e quando, avoaçavam os
purrutuns, numa perseguição lasciva que falhava com a sumidura das companheiras para o outro lado
da aguada. O acertador sentia-se perturbado:
se aquilo saísse certo? Se ele ficasse doido, agora?
Aturdia-lhe as fontes e ouvidos
em extraordinário fragor; ficaram-lhe as pernas bambas, sem resistência, a badalejar uma contra
outra; o coração galopava-lhe desesperado na caixa do peito;
o olhar enchia-se-lhe
de avassaladora umidade...
Tornou-se necessário que o chamassem,
para afastar-lhe do
espírito aquela obsessão;
deitou-se, dormiu um
sono entrecortado de pisadeiras e
súbitos despertares, ao fim do qual viu-se fatigado como depois de
um serão trabalhoso.
E a lembrança
do delírio da
Rosinha voltava-lhe à
mente, a todo
instante, com uma insistência vivíssima.
Perguntaram-lhe, à hora do
almoço, porque não casava duma vez com a Rosinha, que era tão boa, e lhe queria tanto, e lhe fora
tão fiel, e por ele topara tanto
padecimento na vida? Era o desejo que
ele tinha agora,
mas faltava-lhe ânimo
para mandar um
recado àquela desditosa. Ir, bem podia ir sozinho, para
ninguém presenciar a choradeira lastimosa que havia de haver: ela por um lado, ele por outro.
Mas, pensava, ao mesmo tempo, que seria até capaz de ficar sufocado e não poder dizer
coisíssima nem uma, por amor da comoção. E só a idéia do quanto se lhe iria aumentar o remorso, ao pé
da Rosinha, atenuava-lhe sobremaneira a força da resolução. Por último, quase que se resolvia a
ir em pessoa procurá-la.
Pensava no meio de se dirigir à
malfadada criatura, quando viu em torno de si rodopiar tudo à semelhança de milhares de piões;
vergaram-lhe os joelhos; as mãos tactearam-lhe, em desvario, o arredor: e caiu com os olhos em
alvo e a boca espumante, num ataque convulsivo.
Escabujava como um possesso,
arqueando e distendendo o corpo, tornando a arqueá-lo e distendendo-o logo em seguida;
agitavam-se-lhe, num frenesi tremendo, os cantos da boca, donde
a par da
espuma, rompiam estrias
de sangue arrancado,
com a fúria
nervosa, dos rebordos da língua; os braços, que durante
momentos apenas tinham acompanhado ao de leve
os movimentos de
todo o corpo,
barafustavam
desesperadamente, dando cotoveladas
e punhadas terríveis pelos
móveis.
Depois, com
gradações de mais
em mais espaçadas,
foi sossegando; o
arquejar acelerado do peito
diminuiu, ao passo que o corpo se inteiriçava em decúbito dorsal; as mãos caíram-lhe
sobre o ventre,
enclavinhadas já sem
crispações; os olhos
deixaram de tremer,
tomando ares de olhos de idiota; quietou a boca: − e um suspiro
prolongado deslisou pelos lábios cheios
de espuma e de sangue.
De roda dele diziam que aquilo
era um ataque de gota, feito os que o pai também tivera em
vida, tal e
qual: decerto pelo
exagero da viagem.
As vozes eram
cochichadas com resguardo, sucediam-se os gestos e os sinais.
E a mãe do Totico, aloucada de pavor, fizera-se
branca que nem um bugarim, dizendo que aquilo não passava de castigo do
céu. Foi então que apareceu a
Rosinha, chamada às
carreiras: aproximou-se do
Totico, pôs-lhe a
mão na testa
suarenta, e, como ele fitasse nela um olhar assustado e longo,
falou-lhe:
− O que é isso, Totico? Aqui ‘tou
eu, a Rosinha, que te perdôo e te quero bem como toda a vida!
Ele custou a erguer-se, mas
ergueu-se. Pôs-se de joelhos, ali no chão mesmo, em frente à
Rosinha, com os
membros ainda mordidos
de tremuras repentinas,
quase calafrios. E
enquanto ela se abaixava para abraçá-lo, febricitante e chorosa, o
filhinho começou a brincar com os
cabelos de ambos, rindo perdidamente.
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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