AMALDIÇOADA
Fazia muito
tempo que a
noite caíra, uma
noite de assustar,
escura e cortada
de relâmpagos; a
ventania gritava pelo
meio das laranjeiras,
espalhando as flores
que tinham rebentado
aqueles dias mesmo;
o rio, que
de costume é
sossegado ao fundo
do quintal do
Furtuoso, buzinava de fúria, levantando montes de água que vinham
quebrar-se no porto c’um grandioso
rumor: e escutava-se,
através de barulhada
toda, como se
fossem gemidos e
queixas, os mios duma coruja das grandes que andava desguaritada lá no
alto do espigão que vem verter pro rio
perto da ponte.
Sá Chiquinha estava esperando o
Tito, encostada à janela do lado direito: cerrara as folhas
da janela, ficara
quieta duma vez,
segurando a suspiração,
de puro medo.
Agora, ouvindo a matinada da
coruja e reparando na escureza dos ares, teve uns repentes de tramelar a janela, e deitar-se, e morrer: parecia-lhe
adivinhar um infortúnio, em tanta coisa triste que via. O Tito queria-lhe bem, decerto queria −,
porque, pra um homem jurar contra sua alma,
como ele jurava, só tendo muita fiança no juramento: mas o futuro
aparecia-lhe do mesmo feitio que aquela
noite denegrida.
− Como é que há de ser nhô pai?
Pensava: e umas par de lágrimas garravam a correr- lhe pelo rosto abaixo. Na
verdade, o Nico de Souza, pai de sá Chiquinha, não desejava nem ver a sombra do Tito, nem ouvir falar-lhe no
nome: ganhara-lhe ódio à toa, p’r amór de uns
ditérios de gentinha de pouco mais ou menos, dessa gentinha que murmura
dos outros sem mais que nem pra que.
Desconfiado, isso o Nico de Souza vivia desde a festa de seo Batista, porque bem pôs atenção nos olhos doces que sá
Chiquinha fazia pro Tito e o Tito fazia pra
sá Chiquinha.
A moça fechava-não-fechava a
janela, quando lhe bateu nos ouvidos o som de um pio de tico-tico: remancheou um bocadinho, como
se estivesse resolvendo um bandão de coisas
num momento só, inzonou co’a mão direita em riba do coração que
funcionava louco de tudo, e depois,
devagarzinho, pouco a
pouco, afastou de
junto do ombro
a folha esquerda:
seu vestido era branco e sem
peso, vestido de nem um resguardo, quase que só de calor, e o vento aspro que veio de fora por um triz não a
pinchou pra um canto do quarto.
Pregou os
olhos no rumo
da esquina, ali
onde pára o
poste de um
lampião velho, divulgou
um vulto encapotado
que caminhava pra
ela, viu-o vir
chegando, chegando, até
rentear c’a parede da casa, tendo pulado um tirãozinho de cerca baixa
que havia na linha da frente: e daí,
notando aquele vulto, já não sentiu mais o coração funcionar veloz e
violento: pelo contrário, o coração foi-lhe
adormecendo de tal jeito, que logo desmaiou que nem um passarinho,
assim que vê
frechar-se sobre ele
um gavião desses
quiris-quiris, c’as unhas
prontas e as asas espontadas e o bico aberto numa proporção.
Sá Chiquinha caía-não-caía,
quando o Tito lhe falou umas palavras de animação e de muita amizade: ora o que havia de ser, que
tanto a amedrontava? A chegada de seu bem, ora o que havia de ser. Ele pegava-lhe na mão
direita, a mão que ainda lhe permanecia em cima de seu peito, e ia dizendo certas prosas muito
boas, muito mansinhas; no fim das contas, feito carinhos
e mimos, ela
recobrou a voz
e respondeu-lhe no
mesmo tom, em
segredo, cochichado, um
dilúvio de bonitezas. E
já nem sabiam mais
que a trovoada
se formava ao
longe e a tempestade havia de se despenhar por força: namorado, olhando
os relâmpagos, mas porém perto da
namorada, a mó’ que está vendo fogo de
estúcia.
De repente um redomoinho rompeu
pela rua, abalando as guainxumas e os fedegosos, rufando nas telhas, querendo quebrar as
vidraças e arrombar as portas: o mio da coruja das grandes, comprido como nunca, morreu c’a
primeira abalroada do redomoinho, ao fundo do
covancão macota das terras do Ziquiel:
e sá Chiquinha, tapando os olhos, tonta de assombro e de
terror, ia ter
uma vertige, se
o Tito não
a amparasse, dando-lhe
um empuxão forte
no corpo. A chuvarada
desencadeou-se, ver um rio que desce pela cachoeira, grossa e atroadora; os relâmpagos riscavam toda a hora o céu, do
nascente ao poente, cor de enxofre e sumindo
como por encanto.
A água das enxurradas soluçava de
raiva, rasgando-se tal e qual farrapos de renda, nas pedras e nos tijolos esparramados pela rua; o
grito rouca dos trovões, correndo nas costas das montanhas, acabava pela claridade dos
coriscos, e a claridade dos coriscos acabava pelo grito rouco dos trovões: e às vezes os coriscos,
mostrando ares de zanga, davam pulos no meio das nuvens,
amarelos e ligeiros,
semelhando um terno
de caninanas. Ao
depois o firmamento
voltava a ser feio que nem uma barra de chumbo sem fim.
De sopetão, num abrir e fechar
d’olhos, a porta do quarto de sá Chiquinha escancarou-se: a
luz buliçosa duma
candeia apareceu, tremendo
ainda mais p’r
amór de o
vento; e apareceu
a cabeça do
Nico de Souza,
branca, meia na
sombra, adonde os
olhos brilhavam como
os dum gato
escorraçado, nhá cesara,
passando a mão
pelos óculos, desatinada
de espanto, mostrava
as feições do
rosto por cima
do ombro do
marido: e enquanto
sumia o zunido
fino da arage
da chuva no
covancão macota da
outra banda do
rio, e o
rumor da tempestade assossegava seu pouco, também no
quarto de sá Chiquinha se fez um silêncio de
quarto de defunto.
O Nico de Souza botou a candeia
num mancebo, a par co’a porta; fechou os olhos e tornou a abri-los, olhou e tornou a olhar,
como se lhe parecesse impossível acontecer o que etava acontecendo; encostou-se ao portal,
bambo e sem corage, segurou a mão de nhá Cesara
e desatou a chorar; nhá cesara passou-lhe os braços em roda do pescoço e
pranteou com feitio de lhe ter morrido
alguém.
Sá Chiquinha
perdera o sentido,
e o Tito,
assim que os
velhos principiaram suas
lástimas, pulou p’r a janela, com água até os joelhos, e foi ficar
sondando arretirado, junto do poste do
lampião. Tinha passado o mau tempo, a ventania sucumbira, apareceu a
minguante num pedaço
denegrido do céu.
A água das
enxurradas, rodando mais
de vagar, com
mais preguiça, murmurava baixico
umas vozes de candonga. E a coruja das grandes, que se calara um tanto de espaço, miava agora outra vez,
esquisito e soturno.
Foi então que Nico de Souza pôde
desafogar-se:
− Saia de tudo, filha maldita!
Acompanhe esse desgracionado que
lhe roubou o seu coração! Nunca mais cruze os umbrais da porta
desta casa! Saia d’ûa vez, filha maldiçoada!
Sá Chiquinha,
como acordando dum
sono de muitas
horas, por efeito
de um pesadelo, saltou pro meio do quarto e pôs
as mãos em forma de cruz:
− Não me toque, nhô pai: não me
toque, porque eu não devo crime nem um!
E o Nico, sem dó e sem piadade,
respondeu-lhe estas palavras:
− Saia, desgraçada, saia desta
família que nunca viu ûa mancha como a que ‘tá vendo!
Nada puderam seus peditórios,
nada conseguiram seus rogos; por derradeiro, quando viu
que não podia
mais esperar cabida
naquela casa, foi
beijar a mão
da mãe. Nhá
Cesara retraiu-se, pranteando. Sá
Chiquinha chegou ao oratório, adonde morava uma Nossa Senhora Aparecida de olhos cheios de bondade e capa
azul trançada no corpo inteiro, ajoelhou-se, co’a garganta
numa sufocação, tirou
do oratório um
ramo de palma
benta e um
arrelique de baetinha preta, e pegou a mexer a boca,
rezando desanimadamente.
O Nico bradou-lhe espótico:
− Vá-se embora, juruveva da rua!
Que ûa mulher como você nem pode e nem deve
rezar! Vá-se embora, maldiçoada!
Sá Chiquinha saiu. Esperava-a na
esquina o Tito, que a chamou por assobio; mas antes de se encontrar com ele, sá Chiquinha, que ar
da noite a mó’ que animara de soco, rugiu uma
espécie de rugido horroroso que nem de fera, e disse:
− Maldiçoada é que eu não saio!
Misericórdia!
Disparou no rumo do Rio Pardo,
que lá em baixo, espumando e roncando, amostrava estar pelas turinas: e foi por causa de
tamanha espumarada e roncaria que não se pôde ouvir o baque de sá Chiquinha naquele poção fundo do
beco. A coruja das grandes remontara, miava
agora no chato do espigão, com seus mios mais compridos, cada vez mais
esquisito e soturno; e o pobre do
Ziquiel, que há muito tempo está fora do juízo, veio a tão feias horas visitar
a tapera em que morou, e dava cada
gargalhada tão alta, que subia até o chato do espigão e descia até a última corredeira da segunda
volta do rio.
Nem bem
amanheceu, já saiu
gente em procura
do corpo: aprontaram
uma gamela c’uma
vela dentro, acenderam
a vela, e
aquilo foi descendo
feito uma pantasma
pelo rio afora. Quando deu meio dia na cadeia, pouco
antes, pouco depois, a gamela girou duas vezes
perto dum canal que desemboca num mansão de quatro braças, pra cá um
pouco do engenho, e parou direitinho na
vizinhança duns guapés. A canoa da procura chegou, os homes bateram varejão pelos guapés, cutucaram as raízes, e
depois, campeando bem por debaixo da gamela,
encontraram sá Chiquinha, que assim que surgiu à flor d’água assombrou a
todos, por estar
tão desfigurada.
A canoa voltou, rio acima. Quando
chegou ao porto do Nico e puseram a moça numa
rede pra conduzirem pra casa de morada, era só grito e choro que se
ouvia por toda a parte, de mulheres e
crianças, gente que até não tinha nada c’o acontecido.
Tem daqui, tem dali, mais isto,
mais aquilo, diziam mil coisas a respeito da finada; e o que
maiormente havia de
doer à pobrezinha (se
quando se morre
ainda se escura
o que os
mortais proferem), era dizerem que a morte não passava duma complicação.
E rematavam por esta maneira:
− Não podia apanhar chuva,
apanhou; tomou umidade, o sangue subiu-lhe à cabeça, a coitada por isso ficou demente...
O sol já estava a umas três
braças pra mergulhar naquela morraria sem fim, quando saiu o enterro. A tarde era uma tarde triste,
sem canto de passarinho, sem voz de ninguém p’r
as ruas, sem vento que tremesse as árvores. Só uma tapena voava muito
sereno em riba da vila, fazendo vagarosamente suas curvas duma banda pra outra,
co’a cauda ora aberta e ora fechada.
Um caminhante que tinha sabido da
morte e olhava o enterro que ia passando, falou
pra um dos que vinham mais atrás:
− No meu tempo, uma gente que se
matava não tinha lugar no çumitério, ficava pra
fora do sagrado.
Mas ninguém disse nada, o que
tinha recebido a fala mal apenas teve como resposta um gesto de amargura e de sofrimento. E sobre
a grande tristeza da tarde se foi cerrando o
grande desespero da noite.
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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