UMA CONVERSA VULGAR
O meu conhecimento com aquele
venerável velho me viera devido às relações que mantive com um seu neto, que
fora meu colega de colégio. Isto que se passou comigo e ele, e conto agora,
deu-se há anos.
Tinha eu totalmente, por aquela
época, abandonado os estudos, o neto já havia falecido; e, abandonando os
estudos, como se diz, procurara e já
ocupava um emprego público. Apesar da irremediável falta do meu antigo colega,
continuava a freqüentar a casa do velho Florêncio, cujas conversas muito
apreciava. A sua residência era fora da cidade, em um sítio lá pelas bandas de
Campo Grande, bem tratado, com muita laranja, capados, galinhas, perus; e a
casa de moradia era vasta e tinha muitos cômodos.
Ele morava com a filha, mãe do
meu antigo colega, uma mocetona, irmã deste, e um seu irmão, que poderia ter ai
os seus cinqüenta e poucos anos, um tipo acabado de pequeno proprietário rural
das nossas terras.
Este irmão, o mais moço dos
quatro, sendo que dois já eram mortos, tinha tido uma mocidade acidentada; e,
aos quarenta e poucos anos, sossegara, fazendo-se o mais plácido roceiro que se
pode imaginar.
Aposentando-se Florêncio no lugar
de escrivão do almoxarifado da Marinha, viera ele morar com o irmão ali,
acompanhado da filha, viúva com dois filhos, um dos quais, o homem, como já
disse, fora meu colega no internato secundário.
Quando cismava, sem mesmo me
anunciar, ia aos sábados para lá, dormia e todo o domingo, fosse a cavalo pelos
arredores, fosse jogando o solo, nós três — ele, o irmão e eu — passava-o eu na
maior satisfação.
Não era lugar bonito, mas era
são, e toda a gente do velho Florêncio era de uma meiguice para mim de me
encher de saudades quando saía de manhã, segunda-feira, para vir para a morrinha
da repartição.
Calhou aquela segunda-feira cair
em dia que era do recebimento da sua aposentadoria no Tesouro. Florêncio
disse-me logo, pela manhã, na segunda-feira:
— Você, Bandeira, acompanha-me
até o Tesouro, que quero ir com você até ao Pão de Açúcar, no tal bonde aéreo.
Sendo os primeiros dias do mês e
eu não tendo faltado até ali, podia bem acompanhá-lo no passeio que
premeditava.
Florêncio contava perto de
setenta anos mas ainda era forte, pisava com liberdade e segurança e a sua
conversa tinha o pitoresco e o encanto singular de ser como as
"memórias" vivas do Rio de Janeiro.
Muito observador, com uma memória
muito fiel para data e fisionomias, tendo vivido em certas rodas de algum
destaque, podia-se, conversando com ele, saber a vida anedótica do Rio de
Janeiro, quase desde a coroação e sagração de Pedro II, em 1841, até nossos
dias.
Apreciava-o muito por isso, e,
sem precisar provocá-lo, bastava um incidente qualquer, uma velha casa
avistada, em qualquer parte, um encontro, um sobrenome, para ele me contar
histórias pitorescas da vida social, política, sentimental ou escandalosa do
Segundo Reinado.
Saímos do Tesouro logo que
recebeu o seu dinheiro, e fomos em demanda do largo de São Francisco.
Notei que ele olhava para um lado
e outro, como procurando alguém. Quase no meio da praça, quando a atravessamos,
em direitura à rua do Ouvidor, veio a seu encontro um homem, não muito velho,
orçando aí pelos quarenta e poucos, mas avelhantado, sujo mesmo, barba por
fazer. Era mulato claro, de feições regulares. Logo que se apertaram as mãos,
Florêncio disse ao outro:
— Você não foi ao Tesouro!
— Atrasei-me...
E gaguejou, sem encontrar
desculpa.
O velho meu amigo não esperou que
ele a encontrasse e foi dizendo:
— Você não toma juízo... Onde você
está morando?
— No mesmo quarto,
"seu" Florêncio.
— Por que não vai para casa
descansar um pouco?
— “Seu” Florêncio, é longe...
Aqui sempre faço os meus biscates...
— Bem. Tome lá, Ernesto.
E puxou uma nota de dez mil-réis
e deu-lha.
Senti no olhar do Ernesto uma
doida vontade de ir-se, logo que sentiu o dinheiro na algibeira.
Afinal deixamos o rapaz e
reencetamos o caminho da rua do Ouvidor. Eram quase duas horas da tarde e o
largo de São Francisco, se bem que decaído do antigo movimento, quando todas as
linhas de bondes de São Cristóvão e Tijuca nele paravam, tinha alguma agitação.
Emparelhávamos com a estátua,
quando o velho Florêncio me disse:
— Você conhece esse homem?
— Não.
— É filho do visconde de
Castanhal.
— Como? O capitalista?
— Sim; o capitalista.
— Não se acredita.
— Vou contar a você como ele o é.
Quando Castanhal chegou aqui era simplesmente José da Silva. Homem tenaz,
abriu, onde hoje é a luxuosa rua Gonçalves Dias, antiga dos Latoeiros, uma casa
para vender leite em copos, em garrafas e lacticínios. Não havia dessas casas
na cidade e logo foi a dele se afreguesando. Silva atendia à freguesia na sala;
e no interior, para encher as garrafas, lavar os copos, cozinhar para ele e
tratar da sua roupa, tinha uma preta com quem vivia amasiado. Na rua Gonçalves
Dias, canto da do Ouvidor, naquela época, vinham parar os bondes do Jardim
Botânico, cujo título era então em inglês. José da Silva lembrou-se de gelar o
leite, isto é, pôr certo número de garrafas mergulhadas no gelo, que vinha da
América do Norte, nos porões dos navios, pois ainda não se havia descoberto o
processo de fabricá-lo artificialmente. O leite gelado "pegou", como
se diz; e sendo o lugar freqüentado, em breve José da Silva viu-se obrigado a
aumentar a casa que até aí só tinha duas portas.
Um outro seu patrício invejou-lhe
a sorte e Silva, finório que era, tratou logo de passar o estabelecimento
adiante com grande lucro. Mas... eu não contei a você uma coisa.
— Qual é?
— O Silva e a crioula tiveram um
filho e o mulatinho cresceu até aos cinco ou seis anos, na leiteria de Silva,
conhecido dos fregueses como filho dele. Assim o conheci. Passaram-se cinco ou
seis anos sem que eu soubesse do Silva, crioula e filho, quando, indo a Catumbi
e passando na porta de uma estalagem, vejo aproximar-se de mim uma crioula que
me tratava pelo nome. Disse-me que era a rapariga de José da Silva, em cuja
casa de lacticínios me conheceu. Há três anos — é ela a falar — ele, o Silva, a
abandonara, para casar-se convenientemente. Nada dera a ela nem ao filho; e a
sua vida, com o pequeno Ernesto, havia sido até aquele dia um tormento de
angústia e de misérias. Mandei que me procurasse em casa. Morava por esse tempo
com minha mãe e irmãos na rua do Senado, numa casa de altos e baixos, com uma
chácara que dava para o morro já desaparecido. Falei a minha mãe que a
admitisse em casa ao que ela acedeu; e, por minha vez eu, que já estava na
Marinha, consegui colocar o molecote no arsenal como aprendiz. Minha mãe
morreu, etc., etc... O pequeno prosperou, aprendeu a ler, fez-se em breve oficial;
e, quando acabamos com a casa paterna, ele pôde armar a sua e sustentar a mãe.
Parecia marchar muito bem e Ernesto nunca me deixou de procurar.
Gostei sempre dele, pois era bom
filho, honesto, zeloso, e digno de toda a proteção. Há não sei que desgosto
recalcado nessa gente, não sei que ponto fraco, que rachadura, que eles acabam
sempre arrebentando de alguma forma. Este Ernesto depois da morte da mãe deu em
beber. Perdeu o emprego e vive agora como você vê. Tenho muita pena dele,
dou-lhe dinheiro, sabendo mesmo que é para beber; mas não sei que coisa me diz,
que tenho alguma culpa nas carraspanas que transformaram esse rapaz ou na razão
da transformação que o levou a bebedeiras contínuas, que me apiedo dele, do seu
vicio e lhe dou dinheiro.
— Que pai!
— Não há muito que censurá-lo.
Hoje, não sei; mas, naquele tempo, essas ligações preliminares, intróito e
prefácio do venerável casamento com bênção sacerdotal e sacramental da igreja,
eram admitidas; e as suas rupturas simples, inflexíveis, assim como a do Silva
com a mãe do Ernesto, não vexavam ninguém. Os futuros sogros, para dar o
“sim" aos futuros genros, só admitiam uma coisa: e que elas, as rupturas,
se realizassem e os seus genros futuros nunca mais procurassem, não só as
raparigas, o que era justo, mas o filho ou filhos também...
Nós tínhamos chegado à avenida
Central. A moderna via pública tinha o movimento do costume: os mesmos mirones,
os mesmos estafermos com as mesmas caras idiotas para as mulheres e moças que
passavam. Subitamente, Florêncio pega-me pelo braço e, apontando, diz:
— Você sabe quem é aquela moça
que vai ali?
— Onde?
— Com aquelas duas senhoras?
— Quem é?
— É a filha mais moça do
Castanhal; é irmã do Ernesto que acabamos de deixar.
Ainda me demorei olhando pelas
costas a moçoila que seguia em direitura à rua do Ouvidor; e considerei bem o
seu vestuário caro, na moda, de cujo corpete surgia o pescoço bem modelado e de
uma linda tinta moreno-claro.
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Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
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