PERU DE RODA
Bela estampa de homem, o coronel
Pedrinho! Alto, desempenado, a pele corada e rebrunhida pelos sóis do sertão, fazia gosto vê-lo quando
apontava à tardinha no pouso, onde a tropa arranchara, e, estribado na sua grande mula
ruana, passava revista à burrada, em fila ao longo do parapeito, o cabrestame em cruz sobre a
testeira aberta, e mui vivaz e solerte à voz do patrão, interpelando Joaquim Percevejo – o arrieiro.
Sempre num terno de brim
milagrosamente escapo à poeira das estradas, as botas de verniz mui lustrosas sob a prata dos esporins,
um lenço de seda negra cingindo em fofo pela aliança de ouro o pescoço desafogado, mão
firmada na ponteira do chicote que se apoiava à albardana acolchoada da sela bela-vistense –
era mesmo uma bizarria quando o seu perfil moreno atravessava ao largo das fazendas,
donde o pessoal se postava das janelas e currais observando pouco antes a passagem da tropa, ou
rompia árdega a mula pela praça do povoado, à descarga do último lote na rancharia dos
tropeiros.
Figura única aquela, como única a
andadura da ruana, de postura e qualidades tão bem gabadas e discutidas como as vantagens
pessoais de seu dono.
Também, já ia o moço tropeiro
beiradeando pelos trinta e quatro, e desde rapazote batia as estradas comerciais do velho Goiás, a
princípio sob as ordens de seu defunto padrasto, o coronel Gominhos de quem herdara a tropa e o
título, depois por gosto próprio, fugindo à vida marasmática e aperrengada do vilório natal,
com todas as suas intrigalhadas e ódios inevitáveis de facção política.
De Pirenópolis a Araguari, em
Minas, de passagem por Corumbá, Antas, Bela Vista e mais vilarejos do interior, transportando do
sertão dos Pireneus couros e fumo, trazendo das praças mineiras as variadas manufaturas,
ninguém como ele mais estimado e procurado para um ajuste de frete, dada a segurança da sua tropa
– a mais garbosa e luzidia naquelas alturas – e o zelo sempre alerta que punha no resguardo da
carga, quer fossem caixotes com o dístico – cuidado!... – indicando o conteúdo perigoso da
dinamite, quer fosse o letreiro encarnado – frágil – sobre a tampa de pinho dos aparelhos
delicados de louçaria e vidro. E, quando em mãos dos destinatários, não havia então reclamações por
vias de uma peça partida, ou fazenda desbotada pela chuva na caminhada dificultosa.
O seu prestígio corria parelha
com a fama de honradez e sobranceria de caráter em que era tido naquelas funduras.
Já Joaquim Percevejo, o arrieiro,
era um tipo bem diverso do patrão. Com uma longa faca de arrastro sustida ao correão da cinta pela
espera de sola grossa, a barbaça grisalhona, espalhada em leque sobre as cordoveias do papo
túrgido e rubro de peru de roda, afunilada e acabando em bico na boca do estômago, as
pernas mui curtas e em arco pelo hábito da montaria, era um homem cuja eterna sisudez impunha
sempre um respeito desconfiado aos camaradas. E, mui embora lhe viessem sentindo dia a dia a
morrinha impertinente de seu gênio testudo e ateimado de idéias, em contraste à franca
jovialidade do patrão, não ousavam contudo murmurar dos ralhos do arrieiro, quando via as suas
ordens mal cumpridas ou relaxadas pelos seus na labuta cotidiana.
Assim, antes que a madrugada
fosse amiudando, sobre a verde louçania dos serrotes apurpureassem os primeiros listrões da aurora,
já na trempe do rancho, sob o buriti do olhod'água, se pousavam ao relento, chiava o caldeirão do
cozinheiro, preparando o café e a rapaziada
toda fazia roda, pronta a bater o encosto da vargem, ao campeio habitual da
mulada.
Pois toda a satisfação do
arrieiro consistia em ver o patrão, assim saído da barraca, com o seu floreado cuitezinho da bebida estimulante
à espera, e os lotes completos, em fila nas estacas, babujando já a quirera da ração matutina.
Era de vê-lo então apurando o
ouvido, inchando o peito, numa empáfia de mal contido orgulho, à saudação costumeira:
–Ah! sim, que vocês por aqui me
madrugaram hoje, hein?!
– Na forma de sempre, patrão!
E bradava logo, comandativo, ao
dianteiro, a raspar ainda a sua rapadura no fundo da caneca:
–Êh! Jerome! Toca pra diante,
rapaz! Que o sol já 'stá pr'aí botando o seu carão de fora!
O outro não se fazia rogado.
Descido o primeiro fardo da pilha, dava-lhe o boleio de uso, metia os dedos às alças, levantava-o à altura
da cabeça, e, sob um peso de cinco ou seis arrobas de sola, estalava a mão ao fundo, na regra do
costume, descia suavemente ao ombro; e, upa, upa, amiudando um passinho de mulo carregado
que tivera a sua medida, vinha encostá-lo à capota do cargueiro, onde um camarada dava a
demão, enfiando as alças no cabeçote e escorava a cangalha, enquanto ele corria a pegar outro
fardo, restabelecendo do lado oposto o equilíbrio. Vinham os dobros desfazendo as demasias; e,
passado o ligal, arrochado e preso o cambito da sobrecarga, o dianteiro desatava o cabresto,
enfiava-o à argola da cabresteira, e dando um muxoxo ao ouvido da madrinha, esta tomava
prestes a saída do trilho, apanhava o balanço rítmico da marcha, e lá ia arfando estrada
afora, na matinada bimbalhante dos guizos e cincerros.
E o segundo burro, aprestado e
solto, àquela toada costumeira que se alongava e ia distanciando do outro lado do córrego, saía
logo a passo amiudado, impaciente por morder o primeiro na retranca, mal dando tento do peso
morto de dez arrobas e mais que trazia sobre o lombo. E após esse, um a um os demais iam
saindo na poeirada do antecedente, desaparecido no cotovelo do atalho. E quando o último sumia
além, no gorgulho da rampa, já o segundo lote acangalhado e alerta nas estacas recebia os
surrões, nos primeiros aprestos da partida.
Do lado de dentro do rancho,
cotovelos fincados sobre o parapeito, Joaquim Percevejo assistia diariamente à saída da tropa. Era um
garbo ver como as cores dos lotes se sucediam por escalão, o primeiro de crioulos alentados, o
pêlo rebrilhando sobre a fartura luzidia das ancas; o segundo alvejante e albino, na mesma
abundância de carnes roliças, para dar lugar aos rosados, castanhos-escuros e pêlos-de-rato dos
terceiro, quarto e quinto lotes, ainda mui arteiros e indiferentes sob o arrocho dos
carregamentos...
Já o cozinheiro albardara o seu
ruço desferrado, e numa andadura indolente saíra ao alcance do dianteiro, que levava como dobro a
capoeira de seu trem de cozinha. E quando era a vez do culatreiro, ainda os machos queimados
de seu lote – o refugo da tropada – fariam inveja a muita fieira de tropa que briquitava
naquelas estradas!
Então o arrieiro ajeitava a
chilena ao pé esquerdo, aparelhava a ruana do patrão, presa à cancela do rancho, e ia apertar a cilha à sua
mula mascarada, que naquela manha de animal velho e sabido, inchava a barriga, eriçava-lhe
os redomoinhos, para menos sentir os efeitos do arrocho.
O coronel deixava-o pouco
adiante, para um dedo de prosa com os conhecidos das fazendas que se iam avistando a pouco e pouco
à direita, à esquerda, da estrada. E ele torava para a frente, no trote picado da montaria,
chupando o cigarrão, devorando rapidamente as distâncias, no rastro ainda fresco da tropa,
cuja ferradura ia amoldando a argila barrenta da chapada, estrada afora.
E quando galgava a eminência de
um descampado, onde eram o araticum-do-campo, o pequizeiro, a fruteira-de-lobo e os coqueiros
de macaúba que para cá dos listrões de mato se descortinavam esparsos no sapé bravio, a sua
vista perdia-se ao longe, nas ondulações do terreno, abrangendo a récua distante do
dianteiro, contornando um serrote; mais aquém, no fundo da vargem, o segundo, que galgava a
encosta; o terceiro e o quarto ainda ocultos no travessão de mato, lá embaixo, donde não
tardaria em pouco aquele a desembocar; o quinto acobertando-se nas árvores, e os cincerros da
guieira do culatreiro a chocalhar-lhe os ouvidos ali adiante, numa nuvem de poeira, de que recebia
as últimas lufadas.
Na estiagem magnífica da manhã, o
sol aquentando e vibrando todo o sertão numa auréola gloriosa de luzes, zumbidos e
chilreios – trilos de insetos nas touceiras orvalhadas e chirriadas adormentadoras de cigarras,
plumagens multicores de pássaros no verde retinto da folhagem e arrulhos cantantes de água corrente
– Joaquim Percevejo empinava o busto e ficava olhando muito tempo, esquecido, para baixo,
donde vinha, por vezes, o reverberamento do sol, dando de chapa no latão de uma bacia,
emborcada sobre um cargueiro do segundo lote.
Ao longe, os peões bracejavam e
sacudiam a taca, achegados à retranca dos lotes; e nos volteios do caminho, as suas cabeças amarradas
em lenço de alcobaça – as pontas sarapintadas voltadas para trás – passavam como asas de
borboletas, adejando num vôo indolente rasteiras ao solo, uma azul, outra amarela, outra
encarnada, por sobre o verde-pálido indefinível da campina. Faiscavam às vezes, num movimento involuntário
do pescoço, os metais das cabeçadas de prata; subia a toada contínua dos guizos e cincerros;
e, a perder de vista, a terra estuava e desdobrava-se uniforme, na mesma e epitalâmica pujança de
arruídos e de vida.
Joaquim Percevejo ficava olhando,
olhando, estribado sobre os loros; e, vendo-se a sós, não podia que não soltasse o brado de
entusiasmo que lhe transbordava do papo túrgido de peru de roda:
– Eta tropa danada!...
E aquela exclamativa era a
expressão sentimental de toda uma existência subitamente revelada.
Espicaçada por súbita esporada, a
mula descia em dois corcovos bruscos a rampa, crepitando, fazendo às árvores e cupins que
deixava para trás, em postura de monge ermitão, uma carantonha obscena com o rabo erguido.
Pegado o culatreiro, já a sua
fisionomia readquirira a sisudez apática de costume. O vozeirão grosso, descansado, de quem sabe dar
o devido peso às palavras, interpelava:
– Êh! Sô Quim, como vai seguindo
isto por aqui?
– O Passarinho tá danado de
veiaco hoje; essoutro dia tanto coçou nos pau que deitou a carga no atoladô. Agora só qué memo cortá
vorta no mato. Tá danado!
– Chega-lhe a taca, home; que
isso é falta de carga no lombo. Amanhã, bota-lhe em riba mais um dobro da dianteira e o rosário de
ferraduras. Vamos ver se ainda treta depois pelo caminho...
Não lhe dava o xará em respeito à
hierarquia. Tinham chegado ao córrego, no âmago do travessão. Os burros enfurnavam-se pela
garganta do ribeiro acima, entre o arvoredo das margens, recusando cada qual beber a água suja
do que o precedera; e os que ficavam para trás, saciados, experimentando um súbito abaixamento
de temperatura, abriam as pernas, selavam o ventre, e rabo ao ar dejetavam na corrente,
naquela satisfação refestelada de irracionais.
Os dois tinham parado à beira do
córrego. Picando uma rodela de fumo, continuavam a conversa encetada. A mula do arrieiro, mais
filósofa, matava ali mesmo a sede, num chiado agudo de água passando entre os ferros do
freio, até que o primeiro mijado, a descer em bolhas na torrente, lhe despertasse os melindres.
– A modo que a manha de
Passarinho é da cangaia nova. Mecê deve ter assuntado que desde os Olivero o bicho não toma jeito.
– Qual cangaia, qual carapuça!
Encosta o relho e toca pra diante que é treta antiga!
– Êh! êh! Pachola! Ventania!...
Diacho de bicho brabo!
O relho estalou e a burrada foi
cortando pelo mato adentro, rompendo a marmelada-decachorro, vindo de novo ganhar a estrada cá em cima, na
rampa.
Joaquim Percevejo correra a
espora por sobre a anca da besta, já lá ia adiante, nas pegadas do segundo lote. Ia tudo sem novidade.
E quando, passado um quarto d'hora, alcançara o terceiro, encontrou-o encalacrado numa volta
do capoeirão, os burros socados no cerrado e o tocador a arrumar a carga da dianteira – que
não tomava jeito e ia arrecuando e pisando o espinhaço do animal a cada nova subida do
caminho.
– Toma tento na Tetéia, Izequiel;
olha um calço na capota dessa cangaia.
O outro não respondeu. Vendo um
cargueiro adiante raspando terra e fazendo menção de deitar, já lhe correra ao encalço,
sacudindo-lhe a taca ao traseiro, bradando:
– Completo! Diacho de preguiçoso!...
Joaquim Percevejo, vendo-o
naquela entaladura, apeara, concertava o cargueiro abandonado. E como tinha a mão pronta, dera
logo jeito aos dobros, passara de novo o ligal, e arrochava a sobrecarga, mordendo os beiços e
metendo o pé à barriga do burro.
Ao longe, no atalho da serra,
passava um cavaleiro, alvejando, o cão de fila à cola, lambendo a poeira da estrada com o seu palmo
de língua. E Joaquim Percevejo apertou a andadura da besta e foi torando mais depressa
para alcançar o patrão na encruzilhada da serra.
E o ofício era aquele, assim,
duro, na regra de pobre, como dizia o arrieiro.
***
Aquela tarde a tropa arranchara
nas Estacas. Volta e meia Percevejo procurou o culatreiro. Impressionara-o a contradita que
tinham tido, na marcha do dia, a respeito do Passarinho. Topou-o mudando a baeta verde da
cangalha do animal, distintivo dos arreios daquele lote, pela encarnada de um burro do
dianteiro.
Em pouco esquentava a discussão.
– É como lhe digo, rapaz. O
Passarinho quer mas é barrigueira acochada acima do branco das costelas e mais uns dobros por riba. Bicho
novo, amilhado como vai, treteiro de marca, pede carga de sustância. – Não devia relaxar.
Juntasse aos dobros o amarrado de ferraduras.
O outro fez-lhe ver os suadouros
da cangalha, que surrara a cacete. Duas grandes pisaduras, asas agoureiras de borboleta,
maculavam o acolchoado na altura da cruz.
Nem isto o demoveu. Empirraçado
já, recusou-se mesmo a ir verificar nas estacas, o lombo do animal, e palpar-lhe o sentido.
Como seu Quim continuasse
recalcitrante na destroca dos arreios, bufou regurgitado:
– Tu 'stás aí, ainda me cheiras a
ovo, menino! – Nunca se lhe fizera alguém intrometidiço no ofício, nem mesmo no tempo do defunto
compadre Gominhos. Fizesse o que ordenara, senão...
– Tá bão! tá bão!
O Quim encolheu-se logo humilde.
Como todo moço tropeiro, tinha um respeito bem-educado pela barbaça grisalha do outro. Mas o patrão
gritava da barraca pelo arrieiro.
Ali na intimidade das paredes de
lona, chamou-o à ordem. Não o contrariara à vista dos outros, a fim de evitar o seu desprestígio
entre a camaradagem. Mas não tinha andado direito. Assim como queria, o burro ficava inutilizado.
O Passarinho carecia era de cangalha bem assentada, mais larga. Aquela ia-lhe mal; o
culatreiro conhecia bem o seu lote, deixasse-o à vontade.
Joaquim Percevejo espetou os
dedos no barbalhão hirsuto; ajuntou o pêlo todo num puxão, amarfanhou tudo, fechou-o dentro da
boca. Mastigou nervosamente, cuspiu a barba em leque e pediu a sua conta.
O coronel Pedrinho, já
impacientado, abriu as canastras, somou as cifras, passou-lhe o papel.
O arrieiro era bem analfabeto;
sabia porém, com extraordinária memória, tintim por tintim, quanto devia ao justo – três contos,
seiscentos e oitenta mil-réis. O elevado da importância era o insofismável penhor da
estima e confiança em que era tido. No sertão,
camarada relapso não acresce
dívida.
Arreou a sua mula, dispensou a
janta, avisou que estaria de volta ainda naquela noite. Ia entender-se com o seu Ivo, mal-encarado
coronel, afazendado nessas alturas. Conforme combinassem, talvez se desquitava aquele dia
mesmo.
– Vai comendo brasa – disse o
cozinheiro vendo-o chegar ao mesmo tempo relho e espora ao animal.
– Não é p'ra menos – retorquiu
Izequiel; – qu'estúrdia, um pito no arrieiro!
E temperado o pinho, repisou uma
quadrinha predileta de Percevejo:
Quatro cousas neste mundo
Arrenega um bom cristão:
Uma casa goteirenta,
Um cavalo bem choutão,
Uma muié rabugenta
Mais um menino chorão...
E não achou ali ao pé o arrieiro
para dar, triunfante, a resposta na letra:
Mas agora venho a crer
Que pra tudo Deus dá jeito;
O cavalo se barganha,
A casa a gente reteia,
Do guri se tira a manha,
Na muié se mete a peia!
O coronel Ivo era um famanaz temido nas
redondezas. Braço direito dos chefões estaduais,
ferrador de burros e antigo tropeiro como o maioral deles, quando ia à cidade,
os babaquaras da terra interrompiam a
palestra e safavam-se pelos cantos, ao assomar na esquina o seu vulto apessoado de anta brava.
(Não sorriam os leitores; é
histórico e atual. E é até possível que quem escreve estas linhas fizesse o mesmo... Qualquer dia
vê-lo-emos deputado federal pelo Estado.)
Também, as suas façanhas contavam-se
pelos anos de vida; e, entre as menores, registrava-se o castramento por suas mãos de
um pobre pancada em Goiabeiras, o estoiro de outro – de quem suspeitara meter-se-lhe a
engraçado com a mulher, em Curralinho, à força de infusões de malagueta e salmoura deitadas
goelas abaixo, por intermédio de um funil...
Naquela sua fazenda nos arredores
das Estacas, quarenta agregados e acostados enchiam-lhe as casas, pelo menos. O sítio era um arsenal,
centro das marombas politiqueiras do município.
Camarada que para ali fugisse, se era da gente da oposição, tinha coito e
segura garantia.
O coronel Pedrinho era neutro.
Caráter altivo e reto porém, ofendia as fumaças do mandachuva com o seu todo independente e sobranceiro.
Tinha-lhe o outro este ódio secreto
e instintivo de todas as criaturas inferiores e autoritárias para com os que não possuíssem um
mesmo espírito de rebanho.
Gozoso, aproveitou a oportunidade
para uma das suas pirraças. Sabia Percevejo visceralmente honesto. Engambelou portanto o
pobre homem, comprometendo-se a solver a dívida no dia seguinte.
Pois sim, pois sim; o Zeca
Menino, seu capataz, era uma cabeça avoada. Malquistara-o com o administrador do porto de Mão de Pau, um
velho correligionário, na passagem das últimas
boiadas que por conta própria mandara às feiras de Minas. Demais, um perdido de
mulheres... Estava precisando mesmo de
um homem de confiança como Percevejo.
Este voltou inchado ao pouso da
tropa. Fez os seus arranjos, e ao levantar do sol tornava de novo para a fazenda.
O patrão mandou soltar a tropa no
encosto, e esperou-o o dia todo na rede, puxando as espiras azuis de seu goiano. Doera-lhe
despedir o arrieiro. Também, não admitia controvérsias. Como todo chefe sertanejo, era
fundamentalmente autoritário. Mas até aí, felizmente, nunca tivera azo de manifestar a sua energia.
Percevejo trazia a tropa num brinco, e ali estava desde os velhos tempos do padrasto Gominhos.
Estimava-o. Não transigiria, porém.
O crepúsculo veio com a monotonia
dos grilos e sapos nas varjotas. Tons róseos, eslaivados, erraram, passaram fugidios sobre
as franças das últimas cristas da Dourada, além. A noite entrou fechada, sem transição, e
derramou-se no céu a prata das estrelas.
Arrastaram-se as violas no pouso
até às dez. Depois tudo fez silêncio e o arranchamento dormiu embalado à distância pelo polaco das
madrinhas de lote.
O coronel Pedrinho esperava
encontrar Percevejo pela manhã, ao sair da barraca. Não contava, porém, com a lábia do fazendeiro.
Servido o almoço, atrelada a
tropa, acangalhada e alerta nos aprestos de saída, e Percevejo não aparecia com o dinheiro.
Pelo beirar das onze o céu
embruscou-se, soprou um vento quente, grossos pingos começaram a cair, prenunciando chuvarada.
Não se conteve mais, mandou
enfrear a ruana. O rebenque metido no cano da bota, foi à boca do mato, abriu o viva-Goiás, ali tirou
uma comprida e consistente embira de timbó. Fez uma rodilha, amarrou-a na garupa e enfiava o
pé no estribo, quando o dianteiro correu do interior, bradando:
– Olhe, patrão, olhe que esqueceu
o revólver mais a cartucheira!
– Não é preciso, levo ainda o meu
canivete.
Lá na fazenda, Percevejo
conversava, sobre os calcanhares, num canto do curral. O coronel havia-lhe dito:
– Sabe que mais? Não está nos
meus hábitos pagar contas a desafetos. Dou-lhe a minha proteção, é suficiente. Ninguém o tirará
daqui. Deixe-se por aí ficar, não há de ser o seu patrão que mande chover por outra forma.
E sorria pachorrento, nas suas
enxúndias de homenzarrão, afagando os queixais de prognata, a olhar significativamente os
rapazes em torno.
Foi quando o Pedrinho estancou a
mula na cerca. Viu Percevejo acocorado no meio da roda, riscando o chão molhado com a roseta de
sua enorme franqueira. Toda aquela gente ali reunida era um cabide de armas. E ao local
chegava mais um grupo, o cano das clavinas aparecendo de sob as fraldas das carochas de
indaiá.
Nem pestanejou.
– Percevejo, a tropa está há
quatro horas de saída, e não quero saber de mais tardança. Avia essa conta ou volta para o pouso. Não
posso falhar mais este dia!
– Hum! hum! Já aqui estou, por
aqui me vou deixando... A conta será quando seu Ivo quiser...
O moço tropeiro não trepidou.
Bateu violentamente a cancela,
entrou montado no terreiro, saltou da sela; e, a corda na mão, caminhou direito sobre Percevejo.
Nem um único olhar lançara ao
fazendeiro. Pegou o arrieiro pela barba, atou-a num ápice, em nó-de-porco, à embira; prendeu a ponta
desta ao rabo da mula e achou-se montado de novo.
O coronel encarava-o aparvalhado,
os olhos ramelentos, rindo constrangido. Nem um gesto sequer. E ninguém se movera naquele
rápido segundo. Olhavam, estarrecidos.
Viram-no ferrar esporas, a besta
arrancar num trote largo. E, ao primeiro puxão, Percevejo se pusera também a trotar atrás,
desesperadamente. Sumiram-se na quebra do cerrado. E nenhum tiro se ouviu.
Paralisara-os a todos tamanha
audácia!
E foi assim, empastado de suor,
lama e aguaceiro, deitando os bofes pela boca, roxo de vergonha, que Percevejo fez a sua entrada nas
Estacas.
Cortou-lhe a corda o patrão. E
num gesto enérgico despediu-o:
– Vai-te, perrengue! Um homem que
se deixa amarrar pela barba, não é homem, não é homem! Vai-te, não me deves mais nada!
E não se ouviu mais ali palavra a
respeito.
Mas à noite, ponteando na viola,
satirizou num repente o cozinheiro:
Quatro cousas neste mundo
Arrenega o arrieiro:
A manha do Passarinho,
A teima do culatreiro,
Uma conta a liquidar
E costas de fazendeiro...
Izequiel saltou como um boneco de
mola, noutro improviso:
Mas agora venho a crer
Que pra tudo Deus dá jeito:
Lá no mato tem timbó
Que se tira sem o lenho,
Que se passa no gogó
À maneira de sedenho!
No dia seguinte, aproveitando a
estiagem da manhã, a tropa toda arribou das Estacas e desfilou unida ao longo das tranqueiras do
Ivo, sob as vistas de Jerome, elevado à categoria de arrieiro.
Os guizos carrilhonavam em
conjunto no bulício matutino. Os peões, à passagem, faziam estalar indolentemente a lonca de seus
compridos piraís. Mas iam todos precavidos e traziam à bandoleira os rifles de estimação.
Quanto a Percevejo, convenceu-se
tanto o pobre-diabo do que lhe dissera o patrão, que derrubou a grenha e passou daí em diante a
usar a barba raspada à navalha.
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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)
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