NOSTALGIAS...
(Trecho de carta)
Já que vais brevemente à chapada,
vê se ainda se encontra legivelmente o meu nome num tronco novo de jenipapeiro que fica junto à
casa do teu agregado (se é que ainda o manténs), próximo a umas goiabeiras, e aí talhado por
mim a última vez que lá estive. Olha, não te esqueças de dar algumas tarrafadas ao poço do
Periquito, de fundo aliás bem sujo e garranchento;
e também, ao do Mané Fulô, como diziam os caipiras, onde ia todas as tardes, a comprida cana de pesca sobraçada, farnel
d'iscas a tiracolo, descalço às vezes, peito descoberto e em mangas de camisa quase sempre – tal o
nosso Casimiro de Abreu dos Meus oito
anos, – a cantar velhas trovas
nativas pelas estradas...
Era pelas férias, em tardes
luminosas de que já não tenho notícias, pelos meses calorentos de dezembro a março, quando o murici e a
corriola, amadurecidos, embalsamavam o chapadão. Passava a correr, saltando córregos, a tua
espingarda ou outra qualquer ao ombro, às vezes só, quase sempre acompanhado dum moleque, o Manuel
ou o Raimundo do agregado, baixotes e barrigudinhos,
que se incumbiam da longa fieira de peixes quando de retorno.
Gralhas e acauãs guinchavam na
galharada esguia dos cerradões, sobre o arvoredo denso de ao pé dos córregos. Havia o trilo metálico
das cigarras ao mormaço; e, galgando a outra banda – com a chuvarada que descera brusca
para de novo abrir-se o céu, diáfano e azulíneo, ao sol glorioso, descambando além na Barra –
preás levípedes, o olho reluzente e globoso de roedor espreitando em torno, saíam
assustadiços das moitas da beirada, atravessavam aos pinchos a um tempo grotescos e graciosos a
rampa d'argila vermelha, entranhando-se do outro lado, no catingueiro recendente. Não raro, no
emaranhado dos travessões de mato que aí cobrem
habitualmente o curso das
ribeiras, uma caninana inofensiva e modorrenta passava entre os cipoais, em coleios flexuosos, farfalhando as
folhas secas derredor...
Apressava o passo, a gargantear
velhos motivos da terra, ora esse dengoso Compadre
Chegadinho, dos batuques e muxirões
da roça, ora aquela dolente melopéia do Baleador,
tão simples e evocadora:
Ê! baladô!...
Ê! baladô!...
Bateu bala na porteira,
A porteira não quebrou!...
Assim alegremente, fazia os dois
quilômetros que nos separavam do poço onde dormiam, no remanso das águas, os cardumes de
avoadeiras e jeripocas sob as coivaras.
No Manuel Flor, tapera antiga
que, como todas as taperas, diziam mal-assombrada, e de que restavam apenas os moirões d'aroeira,
carcomidos e negros, metia-me pelo atravancado dos gravatás, goiabeiras silvestres, taquaral
estralejante e o sarandi da beira do rio, tomava pelo trilho inculto que levava à pedreira
favorável, e aí, junto dum chiqueiro abandonado sob cujas taquaras apodrentadas adensavam os
mandis-chorões, desenrolava a linha, iscava o anzol, impunha silêncio inviolável ao moleque, e
eis-me todo entregue às emoções variadíssimas da pescaria...
Voltávamos ao sítio pelo
anoitecer, ao assomar a lua no quadrante turquesa e ouro, quando caga-fogos e vaga-lumes luzeluziam nas
baixadas, eu um tanto fatigado da caminhada, mãos e rosto arranhados pelo cipoal, chupando
às vezes o dedo dolorido duma ferroada de jurupensém, mas pronto a recomeçar no dia
seguinte, o Raimundo atrás, sopesando a grossa cambada e nela discriminando já, com olho de
dono, os bagres e lobós que lhe seriam como prêmio adjudicados.
De longe, ouvia-se o rechinar
lamuriento da gangorra no terreiro à frente, onde Vítor e os primos tripudiavam contentes, os mais pequenos
receosos e assustados dum trambolhão a um pinote ou volteio mais rápido.
Caía sobre o Vermelho, que
passava ao fundo, a grande, merencória tristeza da tarde. Berravam nos cercados os bezerros. Piavam
guaxos e joões-congos nas grimpas dos jenipapeiros,
onde ninhos caprichosos, ao feitio de compridas bolsas, balouçavam prenhes. Mosquitinhos azoinantes e zumbidores
enxameavam ao longo das tranqueiras, nas perebas dos moleques, sobre a lombeira sarnosa da
cachorrada, que, a bruscos estremeções do pêlo arrepiado, gania relambendo-se entre palhas,
no borralho.
Distante, na estrada da Barra,
cargueiros passavam ajoujados e resfolegantes sob a carga de mantimentos, em bruacas de couro cru, rumo
da cidade e do mercado. Escutava-se o relho a estalar ao longe, e a voz pigarrosa do
caipira, batendo fogo, assoprando o chumaço da binga, a incitar aos muxoxos a mulada:
– Ehú! Ehú! Ehú!... Crioulo!...
Penacho!...
E mais além, aqui na mata, ali
nos furados de jaraguá, jaós e perdizes correspondiam-se, moduladas e dolentes as primeiras, subitâneas
e estrídulas as outras, de lado a lado rememorando
a história pungentíssima de seu mútuo apartamento...
Anoitecia. A paz do sertão,
sugestiva e boa, descia nos escampos solitários. Na mesa tosca, ao canto da sala, fumegava a janta
sobre a toalha alvacenta d'algodão, alumiada ao centro, vagamente, pela candeia de três bicos, que se
espevitava de vez em vez.
Surgiam o angu de caruru nos
tigelões pintalgados, a feijoada, o ensopado de peixe, farto, em travessas e pratos estanhados, rebrilhando
à luz entre olhos de gordura. Ao lado, o garrafão de caninha e o frasco de malagueta para os
mais velhos, os que gostassem do condimento rústico.
Empanturravam-se como pagãos que
éramos, à primitiva moda e ao apetite das velhas colônias...
Que rica bóia e depois que rico
sono, aquele que nos surpreendia pela volta das nove, ao tempo que se contava ainda na fieira dos anos
onze, doze, treze primaveras apenas!
Não raro, o caseiro do sítio,
forte e desempenado em sua robustez de oitenta anos – o braço mais rijo e feroz dos eitos da roça três
léguas derredor – vinha para a soleira da porta, encapotava-se banzento ao batente, acendia um
cigarrão, e, a cabeça nevando ao luar como capucho d'algodoeiro, punha-se a devanear,
baforando... Cercávamo-lo todos, grandes e pequenos.
Eram sempre histórias antigas,
das passadas eras do Império e presídios do Araguaia. Ficávamos a escutar, sonhando com essa região
longínqua de canguçus e caboclos desnudos, areias infindáveis alvejando à distância, onde
a pintada vinha uivar em cio à noite, agoniada do luar, e de cujo fundo das águas saíam, em
estação propícia, as tracajás à desova pelas praias d'arribação...
E a mente exaltava-se, repassando
contos e lendas, frutos de leituras precoces duns e outros que, mais felizes, tinham visto ou
descrito o Araguaia, e bebido em suas paragens a selvática poesia dos sertões brasílios...
– Ah! tempos que passaram, tempos
de moço, como cabo ordenança e vaqueiro particular do capitão José Manuel, teu pai, nosso
tio-avô!
Vinham logo narrações da vida à
beira do grande rio, proezas de caça e pesca, combates e matanças dos índios canoeiros, caiapós e
xavantes; o ataque do fortim de Santa Maria, como ele, ajoelhado à soleira do rancho, a velha
espingarda reiúna e respectiva munição ao lado, mordendo impassível o cartucho, fizera frente
a toda uma tribo encarniçada de guerreiros, fuzilando-a à queima-roupa e dando assim tempo
à guarnição de tocar a rebate e acudir em defesa às muralhas.
– Era pelo meio da noite, um luar
tão claro como dia. A caboclada tingira-se de preto, uma larga faixa branca pintada na testa. Isso
servia de pontaria. Não perdera um tiro. O rancho ficara que nem porco-espim: crivado d'alto a
baixo de frechas e tantas que, ao outro dia, andando os soldados a apanhá-las nos
arredores, ajuntaram feixes enormes, que depois serviram para manter o fogo da cozinha semanas a fio.
De sua parte, por conta e risco, só ele matara oito.
– Tempos brabos – comentava.
(Ai, meu pobre herói obscuro, que
dormes hoje, entre florinhas agrestes, o teu sono de paz numa cova rasa do cemitério da Barra,
junto ao filho do Anhangüera, o desbravador de meus pagos!)
Relatava agora, entre sério e
jocoso, como a colerina alastrara súbito no presídio, afrontando do último recruta ao comandante; de
como faltaram então todos os recursos e mantimentos
naqueles fundões. Só a ele poupara, a danada! Ia para o fundo do quintal, o
paude-fogo aperrado, entre os bamburrais, assuntando. Tucanos, quebrando talas,
grazinavam saltitantes nas embaúbas.
– Pum! pum! Botava um, botava
dois, três, abaixo; e era essa a canja que, com milho pilado, servia ao pé do leito aos patrões
devorados de febre.
– Bicho duro, o tucano!
Pernoitava dias inteiros no fogo e nada de dar caldo que prestasse. Como ele, só papagaio, vote!
Parecia até o capeta em figura de ave.
Depois, era como duma feita
sangrara um cabra intrometidiço, que se lhe fizera engraçado com a mulher. O camarada riscara a
parnaíba com vontade; ele aparou e deu-lhe resposta bem segura, entre costelas, no
bucho...
E explicava: O anspeçada fora
procurá-lo no açougue da vila – estavam então em Santa Leopoldina – onde ele acabara de abater uma
rês gorda, cria da fazenda, por ordem de seu capitão. O cabra chegou como quem vinha mesmo
decidido a armar sarseiro, cara amarrada, berrando alto, gesticulando atrevido,
arrotando pacholices e valentias, uma dose forte de cachaça nos bofes.
Ele ouviu, ouviu, como quem não
entendia; mas num repente, ante um desaforo mais grosso, quando o provocador transpunha já o
limiar, saltou por cima do balcão, ajuntou o famanaz pelos peitos, atirando-o com violência
ao meio da rua.
O Domingos foi de roldão bater na
quina dum frade, e voltou de lá cego, o facão à mostra, piscando os olhinhos de cobra
assanhada, sobre o adversário, que já o esperava também do lado de fora, a comprida faca do corte –
reluzente e ensebada do serviço – na mão firme.
O crioulo marrou-lhe, a bem
dizer, uma pontada direita ao coração; ele torceu e deixou-o passar. De novo, frechou-lhe em cima o
anspeçada, faca a prumo, num bote curto, procurando aberta; novamente ele furtou o corpo, mas
esperava-o dessa vez na ponta do ferro, onde o cabra veio espetar-se, bruscamente, o sangue
esguichando com fartura para os lados, aos borbotões.
– Ah, como que ainda sentia pelas
mãos, na cara – vão quarenta e cinco anos – o sangue do Minguinhos salpicando-o d'alto a baixo,
todo fumegante, como brasa!
Animado pelo calor da narrativa,
acrescentava depois como derrubara doutra vez, numa tarde mui límpida e calorenta d'agosto, um
velho carajá que topara acocorado no alto duma árvore, todo acobardado e trêmulo ao vê-lo,
duma feita, quando vinha do campeio...
E anotava:
– Qual! Carajás... nação fraca...
– Mas mataste-o à toa, Casimiro?
– Ora, ora, o velho coroca
arregalava-me o olho do alto do pau, assim que nele botei a vista, como guariba assustada, batendo os
dentes, a dizer com perrenguice: “Aí tori... aí tori... (cristão, cristão), mata Bremeri... (nome lá
da língua deles), aí ele não faz mal... Tori valente!...” E tremia, que nem atacado de maleitas. Eu
atravessara o meu pampa campeador no meio do caminho, a coronha da lazarina sobre o
serigote dos arreios, todo encruado em minhas perneiras e guarda-peito de mateiro, o chapelão para
trás, preso ao queixo pela barbela de sola, mão em pala, assuntando... Dera com aquele diabo ao
sair do cerrado, onde andava a campear umas reses do capitão José Manuel, seu tio-avô, que
Deus tenha em sua santa guarda. Tinha achado rastros frescos num brejal, entre touças de
caranã, mas batera três dias seguidos as redondezas, não topando vivalma. Daí a presunção em que
vinha: pintada não fora, senão deixava algum sinal, resto de carniça, marca das patas,
qualquer cousa; e só muito faminta atacava cria taluda... Os índios, talvez... Vai senão, topo aquele
estorvo.
– Desce do pau, ó tapuio!...
– Aí tori... aí tori... mata
ele... Brequeti não faz mal... Aí tori valente!...
– Ora, ora, o perereca batia a
queixada como caititu acuado e eu – diacho de velho pra viver!... – quando o pampa dera já algumas
passadas, torci-me no arção da cutuca, e despejei-lhe nas costelas a carga da reiúna. – Que bufo,
vote!
Aqui interrompia a segunda mulher
do caseiro – que a primeira há muitos anos morrera – toda lastimosa, um travo de zanga na voz:
– Pois tu não tens vergonha de
contar cousas dessas, Casimiro! Credo! Olha o purgatório!
– Mulher, mulher, mete-te com tua
vida, deixa os outros sossegados. Mortes, tenho treze nas costas, mal contado; e não me arrependo,
mais não fora, tanta gente ruim anda pelo mundo!...
– E remorsos, nunca os teve? –
indago.
O velho, cuja cabeça nevava ainda
mais o luar, olhou-me em silêncio, como se não compreendera. Depois riu, a boca murcha
espichando num bocejo cínico, onde sobressaía desenhada toda aquela vida primitiva no seio
bruto do deserto, a par de feras e perigos, sem contemplações e sem piedade para com os mais
fracos, os vencidos...
– Leréia...
Sim, lérias, discutia eu no meu
íntimo, que nessa época já começava a tirar lições práticas do mundo, e sabia que o cafuzo que ali estava,
o busto ainda alto e espigado, onde os três sangues da raça se caldeavam apaziguados,
nunca passara da cartilha de mão, e vivera assim desde rapazote, à gandaia da natureza, a
grande mestra da vida.
Quando fora da estopada do
Minguinhos, cristão como ele e companheiro de tarimba, não tivera, quanto mais daquele velho coroca, a
bem dizer bicho do mato!...
Ora, ora, anos depois, de
passagem, fora ver o local: a caveira reluzia ao sol e ria macabramente no aceiro da selva, enquanto que
a ossada se espalhava em torno, dispersa pelas enxurradas e animais bravios...
Terras bárbaras, gente forte!
***
– Ai, a nostalgia do sertão!...
Pela manhã a Merência, papuda e
avara, ia ao curral ordenhar a sua parelha magricela de vaquinhas barrosas, cujo leite nos vendia
sovinamente a tostão o guampo. Também, crivávamos-lhe
de epítetos e epigramas, à veia estudantal, a papeira mazomba, mal virava, rezingando, a costa acorcovada.
Amigo: não val descrever a vida
que aí levamos e da qual fruis ainda os doces encantos. Longe, numa terra inóspita para os pequenos e
humildes, nesta trapeira velha onde noite alta zune a ventania e vem visitar-me alcatéias de
ratazanas, às voltas com os meus tédios e minhas pequenas manias de rabiscador anônimo, o
espetáculo grandioso da civilização desenrolando-se ao pé pelo buzinar álacre dos autos nas
avenidas e pedalar intermitente de tranvias, tão só, à espera dum futuro que não chega e sabendo quão
amarga sói às vezes ser a solidão para os que meditam e sonham e quão duro é viver distante
das cousas que nos foram familiares, relembro a paisagem adusta de nossa velha terra, e
confesso – não raro uma lágrima furtiva ressuma em minhas faces escaldadas, como óbulo votivo ao
torrão onde vi a luz, onde minha infância decorreu como todas, ai, tão depressa, tão
descuidosa...
Mas basta de sentimentalismo!
Revê-la-ei? Não sei. Talvez
nunca. Entanto, nesta luta insana pela existência que é o viver cotidiano das grandes cidades, assediado a
cada momento por vivos e contrários embates de interesses e paixões mesquinhas, sinto que o
meu íntimo permaneceu o mesmo doutrora, insensível
e sereno a todas as agressões brutais deste meio material e grosseiro que o
cinge e aperta num supremo e frenético
esforço de conquista e erguendo, em meio o seu abandono e em meio a sua tristeza, a grande escada de fogo
por onde se guindará a outras paragens mais amigas, filhas do meu Sonho e da minha
Saudade...
Vale.
Rio... 1915
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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)
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