ENCONTROS REVELADORES
Contarei hoje aos meus leitores um caso que se passou no tempo do
Segundo Império. A historieta não será talvez muito divertida, mas é humana. Lá
vai: Para mostrar-se agradecido ao ministro da Justiça, que o nomeara juiz de
Direito de Niterói, lembrou-se o
Dr. Sales de
convidá-lo para padrinho
de seu último pimpolho.
O ministro aceitou o convite, mas como a época era de grande
agitação política e não lhe sobravam lazeres para batizados, passou procuração
ao seu oficial de gabinete, Dr. Pinheiro, para representá-lo na cerimônia, e
levar o pequeno à pia.
À hora aprazada, o Dr. Pinheiro apresentou-se em casa do Dr.
Sales, onde o receberam com a mesma solenidade com que receberiam o próprio
conselheiro.
O bom homem
já estava, aliás,
habituado a esses
togatés. Depois que
o ministro, seu companheiro de infância e amigo íntimo, fizera dele o
seu oficial de gabinete, o seu
auxiliar de imediata
confiança, quase o
seu alter ego, o Dr. Pinheiro verificou, surpreso, que tinha
inúmeros amigos de cuja existência nem sequer suspeitava. Antes que ele
exercesse aquela posição oficial, pouca gente o cumprimentava; depois que a
exercia, todos lhe tiravam o chapéu!
Terminada a cerimônia
do batizado, o
Dr. Pinheiro quis
retirar-se: estava cumprida a
sua missão, mas o Dr. Sales e toda a família instaram com ele para almoçar.
O almoço fez-lhe mal. Na ocasião em que o padrinho por procuração
ergueu a sua taça de champanha para agradecer um brinde feito pelo juiz de
Direito ao seu ilustre compadre, o Exmo. Sr. conselheiro X, ministro e
secretário de Estado dos negócios da
Justiça, o Sr.
Pinheiro sentiu turbar-se-lhe
a vista e a casa andar à roda. Caiu sentado sobre a
cadeira, quebrando a taça que tinha na mão, e perdeu os sentidos.
Foi um alvoroço. Saíram todos dos seus lugares e cercaram o Sr.
Pinheiro, que não dava acordo de si.
Entre os comensais havia, felizmente, um médico. Transportado para
um quarto e estendido sobre
um leito, o
Dr. Pinheiro foi
imediatamente socorrido e medicado.
- Não há de ser nada, explicou o médico, mas é preciso que o
doente fique no mais absoluto repouso; que ninguém lhe fale nem ele fale a
ninguém!
- Mas, que foi?
- Um ameaço de congestão.
No mesmo dia o Dr. Sales mandou à casa do Dr. Pinheiro, que era
viúvo e não tinha família de espécie alguma e morava com ele apenas um criado,
que foi ter logo com o amo enfermo, levando-lhe roupa branca.
No dia seguinte o Dr. Sales procurou o ministro, seu compadre,
para participar-lhe que o seu oficial de gabinete adoecera em Niterói, mas S.
Exa. não lhe pôde dar ouvidos: preparava-se para responder a uma interpelação
na Câmara, e não podia pensar noutra coisa.
O Dr. Pinheiro
logo no outro
dia pretendeu recolher-se
aos penates, mas
o médico proibiu-lhe terminantemente, dizendo: - uma imprudência pela
qual não me responsabilizo!
Ficou, pois, o Dr. Pinheiro cinco dias em Niterói, metido entre
quatro paredes, sem conversar nem ler. Ao sexto dia sentiu-se completamente
restabelecido, e teve alta. Durante esse tempo alguma coisa se passara, de
certa importância, mas em casa
do Dr. Sales
nada disseram ao
Dr. Pinheiro, receando
que qualquer comoção moral lhe produzisse novo ataque.
Seguido pelo seu fiel criado, que o não abandonou um instante, o
Dr. Pinheiro tomou a barca, e chegando
ao Pharoux, entrou num carro que estava
à sua espera, indo o criado para a boléia.
Ao passar pelo Largo do Paço, notou que certo pretendente, figura
obrigada do gabinete do ministro,
sujeito que costumava
saudá-lo com muitos
rapapés, agora, ao vê-lo, apenas levou a mão à aba do chapéu.
Mais adiante, na Rua da Assembléia, outro importuno olhou para ele
e desviou os olhos, fingindo que não o via.
No Largo da Carioca,
um oficial da secretaria, que se empenhara, não havia muito,
com o Dr. Pinheiro para ser, como foi, promovido, teve para o oficial de gabinete
um olhar de proteção. .
- Não há que ver, pensou o Dr. Pinheiro, caiu o ministério!
De fato, havia
três dias que
o ministério caíra, depois
da tal interpelação. Ninguém o
dissera ao Dr.
Pinheiro, nem verbalmente
nem por escrito:
ele adivinhou-o, graças àqueles três encontros reveladores.
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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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