
O SEGREDO DE AUGUSTA
CAPÍTULO PRIMEIRO
São onze
horas da manhã.
D. Augusta
Vasconcelos está reclinada sobre um sofá, com um livro na mão. Adelaide, sua
filha, passa os dedos pelo teclado do piano.
— Papai já
acordou? pergunta Adelaide à sua mãe.
— Não,
responde esta sem levantar os olhos do livro.
Adelaide
levantou-se e foi ter com Augusta.
— Mas é
tão tarde, mamãe, disse ela. São onze horas. Papai dorme muito.
Augusta
deixou cair o livro no regaço, e disse olhando para Adelaide:
— É que
naturalmente recolheu-se tarde.
— Reparei
já que nunca me despeço de papai quando me vou deitar. Anda sempre fora.
Augusta
sorriu.
— És uma
roceira, disse ela; dormes com as galinhas. Aqui o costume é outro. Teu pai tem
que fazer de noite.
— É
política, mamãe? perguntou Adelaide.
— Não sei,
respondeu Augusta.
Comecei
dizendo que Adelaide era filha de Augusta, e esta informação, necessária no
romance, não o era menos na vida real em que se passou o episódio que vou
contar, porque à primeira vista ninguém diria que havia ali mãe e filha;
pareciam duas irmãs, tão jovem era a mulher de Vasconcelos.
Tinha
Augusta trinta anos e Adelaide quinze; mas comparativamente a mãe parecia mais
moça ainda que a filha. Conservava a mesma frescura dos quinze anos, e tinha de mais o que faltava
a Adelaide, que era a consciência da
beleza e da mocidade; consciência que seria louvável se não tivesse como conseqüência uma imensa e
profunda vaidade. A sua estatura era
mediana, mas imponente. Era muito alva e muito corada. Tinha os cabelos
castanhos, e os olhos garços. As mãos compridas e bem feitas pareciam criadas
para os afagos de amor. Augusta dava melhor emprego às suas mãos; calçava-as de macia
pelica.
As graças
de Augusta estavam todas em Adelaide, mas em embrião. Adivinhava-se que aos vinte anos Adelaide
devia rivalizar com Augusta; mas por enquanto havia na menina uns restos da
infância que não davam realce aos elementos que a natureza pusera nela.
Todavia,
era bem capaz de apaixonar um homem, sobretudo se ele fosse poeta, e gostasse
das virgens de quinze anos, até porque era um pouco pálida, e os poetas em todos os tempos tiveram
sempre queda para as criaturas
descoradas.
Augusta
vestia com suprema elegância; gastava muito, é verdade; mas aproveitava bem as enormes despesas, se acaso
é isso aproveitá-las. Deve-se fazer-lhe
uma justiça; Augusta não regateava nunca; pagava o preço que lhe pediam por qualquer coisa. Punha
nisso a sua grandeza, e achava que o procedimento contrário era ridículo e de
baixa esfera.
Neste
ponto Augusta partilhava os sentimentos e servia aos interesses de alguns mercadores,
que entendem ser uma desonra abater alguma coisa no preço das suas mercadorias.
O
fornecedor de fazendas de Augusta, quando falava a este respeito, costumava dizer-lhe:
— Pedir um
preço e dar a fazenda por outro preço menor, é confessar que havia intenção de
esbulhar o freguês.
O
fornecedor preferia fazer a coisa sem a confissão.
Outra
justiça que devemos reconhecer era que Augusta não poupava esforços para que Adelaide fosse tão elegante
como ela.
Não era
pequeno o trabalho.
Adelaide desde
a idade de cinco anos fora educada na roça em casa de uns parentes de Augusta,
mais dados ao cultivo do café que às despesas do vestuário. Adelaide foi
educada nesses hábitos e nessas idéias. Por isso quando chegou à corte, onde se reuniu à
família, houve para ela uma verdadeira transformação. Passava de uma
civilização para outra; viveu numa longa
série de anos. O que lhe valeu é que tinha em sua mãe uma excelente mestra.
Adelaide reformou-se, e no dia em que começa esta narração já era outra; todavia estava ainda
muito longe de Augusta.
No momento
em que Augusta respondia à curiosa pergunta de sua filha acerca das ocupações
de Vasconcelos, parou um carro à porta.
Adelaide
correu à janela.
— É D.
Carlota, mamãe, disse a menina voltando-se para dentro.
Daí a
alguns minutos entrava na sala a D. Carlota em questão. Os leitores ficarão conhecendo esta nova personagem com a
simples indicação de que era um segundo
volume de Augusta; bela, como ela; elegante, como ela; vaidosa, como ela.
Tudo isto
quer dizer que eram ambas as mais afáveis inimigas que pode haver neste mundo.
Carlota
vinha pedir a Augusta para ir cantar num concerto que ia dar em casa, imaginado
por ela para o fim de inaugurar um magnífico vestido novo.
Augusta de
boa vontade acedeu ao pedido.
— Como
está seu marido? perguntou ela a Carlota.
— Foi para
a praça; e o seu?
— O meu
dorme.
— Como um
justo? perguntou Carlota sorrindo maliciosamente.
— Parece,
respondeu Augusta.
Neste
momento, Adelaide, que por pedido de Carlota tinha ido tocar um noturno ao
piano, voltou para o grupo.
A amiga de
Augusta perguntou-lhe:
— Aposto
que já tem algum noivo em vista?
A menina
corou muito, e balbuciou:
— Não fale
nisso.
— Ora, há
de ter! Ou então aproxima-se da época em que há de ter um noivo, e eu já lhe profetizo que há de ser
bonito...
— É muito
cedo, disse Augusta.
— Cedo!
— Sim,
está muito criança; casar-se-á quando for tempo, e o tempo está longe...
— Já sei,
disse Carlota rindo, quer prepará-la bem... Aprovo-lhe a intenção. Mas nesse
caso não lhe tire as bonecas.
— Já não
as tem.
— Então é
difícil impedir os namorados. Uma coisa substitui a outra.
Augusta
sorriu, e Carlota levantou-se para sair.
— Já?
disse Augusta.
— É
preciso; adeus!
— Adeus!
Trocaram-se
alguns beijos e Carlota saiu logo.
Logo
depois chegaram dois caixeiros: um com alguns vestidos e outro com um
romance; eram encomendas
feitas na véspera.
Os vestidos eram caríssimos,
e o romance tinha este título: Fanny, por Ernesto Feydeau.
CAPÍTULO II
Pela uma
hora da tarde do mesmo dia levantou-se Vasconcelos da cama.
Vasconcelos
era um homem de quarenta anos, bem apessoado, dotado de um maravilhoso par de
suíças grisalhas, que lhe davam um ar de diplomata, coisa de que estava afastado umas
boas cem léguas. Tinha a cara risonha e expansiva; todo ele respirava uma
robusta saúde.
Possuía
uma boa fortuna e não trabalhava, isto é, trabalhava muito na destruição da
referida fortuna, obra em que sua mulher colaborava conscienciosamente.
A observação
de Adelaide era verídica; Vasconcelos recolhia-se tarde; acordava sempre depois do meio-dia; e saía às
ave-marias para voltar na madrugada seguinte. Quer dizer que fazia com
regularidade algumas pequenas excursões
à casa da família.
Só uma
pessoa tinha o direito de exigir de Vasconcelos mais alguma assiduidade em
casa: era Augusta; mas ela nada lhe dizia. Nem por isso se davam mal, porque o
marido em compensação da tolerância de sua esposa não lhe negava nada, e todos
os caprichos dela eram de pronto satisfeitos.
Se
acontecia que Vasconcelos não pudesse acompanhá-la a todos os passeios e bailes, incumbia-se disso um irmão
dele, comendador de duas ordens, político de oposição, excelente jogador de
voltarete, e homem amável nas horas
vagas, que eram bem poucas. O irmão Lourenço era o que se pode chamar um irmão terrível. Obedecia
a todos os desejos da cunhada, mas não poupava de quando em quando um sermão ao
irmão. Boa semente que não pegava.
Acordou,
pois, Vasconcelos, e acordou de bom humor. A filha alegrou-se muito ao vê-lo, e
ele mostrou-se de uma grande afabilidade com a mulher, que lhe retribuiu do
mesmo modo.
— Por que
acorda tão tarde? perguntou Adelaide acariciando as suíças de Vasconcelos.
— Porque
me deito tarde.
— Mas por
que se deita tarde?
— Isso
agora é muito perguntar! disse Vasconcelos sorrindo.
E
continuou:
— Deito-me
tarde porque assim o pedem as necessidades políticas. Tu não sabes o que é
política; é uma coisa muito feia, mas muito necessária.
— Sei o
que é política, sim! disse Adelaide.
— Ah!
explica-me lá então o que é.
— Lá na
roça, quando quebraram a cabeça ao juiz de paz, disseram que era por política; o que eu achei esquisito,
porque a política seria não quebrar a cabeça...
Vasconcelos
riu muito com a observação da filha, e foi almoçar, exatamente quando entrava o irmão, que não
pôde deixar de exclamar:
— A boa
hora almoças tu!
— Aí
vens tu com
as tuas reprimendas.
Eu almoço quando
tenho fome... Vê se me queres agora escravizar às horas e às
denominações. Chama-lhe almoço ou lunch, a verdade é que estou comendo.
Lourenço
respondeu com uma careta.
Terminado
o almoço, anunciou-se a chegada do Sr. Batista. Vasconcelos foi recebê-lo no
gabinete particular.
Batista
era um rapaz de vinte e cinco anos; era o tipo acabado do pândego; excelente
companheiro numa ceia de sociedade equívoca, nulo conviva numa sociedade
honesta. Tinha chiste e certa inteligência, mas era preciso que estivesse em clima próprio para
que se lhe desenvolvessem essas qualidades. No mais era bonito; tinha um lindo
bigode; calçava botins do Campas, e vestia no mais apurado gosto; fumava tanto
como um soldado e tão bem como um lord.
— Aposto
que acordaste agora? disse Batista entrando no gabinete do Vasconcelos.
— Há três
quartos de hora; almocei neste instante. Toma um charuto.
Batista
aceitou o charuto, e estirou-se numa cadeira americana, enquanto Vasconcelos acendia um fósforo.
— Viste o
Gomes? perguntou Vasconcelos.
— Vi-o
ontem. Grande notícia; rompeu com a sociedade.
— Deveras?
— Quando
lhe perguntei por que motivo ninguém o via há um mês, respondeu-me que estava passando por uma
transformação, e que do Gomes que foi só ficará lembrança. Parece incrível, mas
o rapaz fala com
convicção.
— Não
creio; aquilo é alguma caçoada que nos quer fazer. Que novidades há?
— Nada;
isto é, tu é que deves saber alguma coisa.
— Eu,
nada...
— Ora
essa! não foste ontem ao Jardim?
— Fui,
sim; houve uma ceia...
— De
família, sim. Eu fui ao Alcazar. A que horas acabou a reunião?
— Às
quatro da manhã...
Vasconcelos
estendeu-se numa rede, e a conversa continuou por esse tom, até que um moleque veio dizer a Vasconcelos
que estava na sala o Sr. Gomes.
— Eis o
homem! disse Batista.
— Manda
subir, ordenou Vasconcelos.
O moleque
desceu para dar o recado; mas só um quarto de hora depois é que Gomes apareceu,
por demorar-se algum tempo em baixo conversando com Augusta e Adelaide.
— Quem é
vivo sempre aparece, disse Vasconcelos ao avistar o rapaz.
— Não me
procuram..., disse ele.
— Perdão;
eu já lá fui duas vezes, e disseram-me que havias saído.
— Só por
grande fatalidade, porque eu quase nunca saio.
— Mas
então estás completamente ermitão?
— Estou
crisálida; vou reaparecer borboleta, disse Gomes sentando-se.
— Temos
poesia... Guarda debaixo, Vasconcelos...
O novo
personagem, o Gomes tão desejado e tão escondido, representava ter cerca de
trinta anos. Ele, Vasconcelos e Batista eram a trindade do prazer e da dissipação, ligada por uma
indissolúvel amizade. Quando Gomes, cerca
de um mês antes, deixou de aparecer nos círculos do costume, todos repararam
nisso, mas só Vasconcelos e Batista sentiram deveras. Todavia, não insistiram
muito em arrancá-lo à solidão, somente pela
consideração de que talvez houvesse nisso algum interesse do rapaz.
Gomes foi
portanto recebido como um filho pródigo.
— Mas onde
te meteste? que é isso de crisálida e de borboleta? Cuidas que eu sou do mangue?
— É o que
lhes digo, meus amigos. Estou criando asas.
— Asas!
disse Batista sufocando uma risada.
— Só se
são asas de gavião para cair...
— Não,
estou falando sério.
E com
efeito Gomes apresentava um ar sério e convencido.
Vasconcelos
e Batista olharam um para o outro.
— Pois se
é verdade isso que dizes, explica-nos lá que asas são essas, e sobretudo para
onde é que queres voar.
A estas
palavras de Vasconcelos, acrescentou Batista:
— Sim,
deves dar-nos uma explicação, e se nós que somos o teu conselho de família,
acharmos que a explicação é boa, aprovamo-la; senão, ficas sem asas, e ficas
sendo o que sempre foste...
— Apoiado,
disse Vasconcelos.
— Pois é
simples; estou criando asas de anjo, e quero voar para o céu do amor.
— Do amor!
disseram os dois amigos de Gomes.
— É
verdade, continuou Gomes. Que fui eu até hoje? Um verdadeiro estróina, um perfeito pândego, gastando às
mãos largas a minha fortuna e o meu coração. Mas isto é bastante para encher a
vida? Parece que não...
— Até aí
concordo... isso não basta; é preciso que haja outra coisa; a diferença está na
maneira de...
— É exato,
disse Vasconcelos; é exato; é natural que vocês pensem de modo diverso, mas eu acho que tenho razão em
dizer que sem o amor casto e puro a vida
é um puro deserto.
Batista
deu um pulo...
Vasconcelos
fitou os olhos em Gomes:
— Aposto
que vais casar? disse-lhe.
— Não sei
se vou casar; sei que amo, e espero acabar por casar-me com a mulher a quem
amo.
— Casar!
exclamou Batista.
E soltou
uma estridente gargalhada.
Mas Gomes
falava tão seriamente, insistia com tanta gravidade naqueles projetos de regeneração, que os dois amigos
acabaram por ouvi-lo com igual
seriedade.
Gomes
falava uma linguagem estranha, e inteiramente nova na boca de um rapaz que era o mais doido e ruidoso nos
festins de Baco e de Citera.
— Assim,
pois, deixas-nos? perguntou Vasconcelos.
— Eu? Sim
e não; encontrar-me-ão nas salas; nos hotéis e nas casas equívocas, nunca mais.
— De profundis... cantarolou Batista.
— Mas,
afinal de contas, disse Vasconcelos, onde está a tua Marion? Pode-se saber quem
ela é?
— Não é
Marion, é Virgínia... Pura simpatia ao princípio, depois afeição pronunciada,
hoje paixão verdadeira. Lutei enquanto pude; mas abati as armas diante de uma
força maior. O meu grande medo era não ter uma alma capaz de oferecer a essa
gentil criatura. Pois tenho-a, e tão fogosa, e tão virgem como no tempo dos
meus dezoito anos. Só o casto olhar de uma virgem poderia descobrir no meu lodo
essa pérola divina. Renasço melhor do que era...
— Está
claro, Vasconcelos, o rapaz está doido; mandemo-lo para a Praia Vermelha; e como pode ter algum acesso, eu
vou-me embora...
Batista
pegou no chapéu.
— Onde
vais? disse-lhe Gomes.
— Tenho
que fazer; mas logo aparecerei em tua casa; quero ver se ainda é tempo de
arrancar-te a esse abismo.
E saiu.
CAPÍTULO III
Os dois
ficaram sós.
— Então é
certo que estás apaixonado?
— Estou.
Eu bem sabia que vocês dificilmente acreditariam nisto; eu próprio não creio ainda, e contudo é verdade. Acabo por onde tu começaste. Será
melhor ou pior? Eu creio que é melhor.
— Tens interesse
em ocultar o nome da pessoa?
— Oculto-o
por ora a todos, menos a ti.
— É uma
prova de confiança...
Gomes
sorriu.
— Não, disse ele, é uma condição sine qua non; antes de todos
tu deves saber quem é a escolhida do meu coração; trata-se de tua filha.
—
Adelaide? perguntou Vasconcelos espantado.
— Sim, tua
filha.
A
revelação de Gomes caiu como uma bomba. Vasconcelos nem por sombras suspeitava
semelhante coisa.
— Este
amor é da tua aprovação? perguntou-lhe Gomes.
Vasconcelos
refletia, e depois de alguns minutos de silêncio, disse:
— O meu
coração aprova a tua escolha; és meu amigo, estás apaixonado, e uma vez
que ela te ame...
Gomes ia
falar, mas Vasconcelos continuou sorrindo:
— Mas a
sociedade?
— Que
sociedade?
— A
sociedade que nos tem em conta de libertinos, a ti e a mim, é natural
que não
aprove o meu ato.
— Já vejo
que é uma recusa, disse Gomes entristecendo.
— Qual
recusa, pateta! É uma objeção, que tu poderás destruir dizendo: a sociedade
é uma grande caluniadora e uma famosa indiscreta. Minha filha é tua, com
uma condição.
— Qual?
— A
condição da reciprocidade. Ama-te ela?
— Não sei,
respondeu Gomes.
— Mas
desconfias...
— Não sei;
sei que a amo e que daria a minha vida por ela, mas ignoro se sou correspondido.
— Hás de ser...
Eu me incumbirei de apalpar o terreno. Daqui a dois dias dou-te a minha
resposta. Ah! se ainda tenho de ver-te meu genro!
A resposta
de Gomes foi cair-lhe nos braços. A cena já roçava pela comédia quando deram
três horas. Gomes lembrou-se que tinha rendez-vous com um amigo; Vasconcelos
lembrou-se que tinha de escrever
algumas
cartas.
Gomes saiu
sem falar às senhoras.
Pelas
quatro horas Vasconcelos dispunha-se a sair, quando vieram anunciar-lhe a
visita do Sr. José Brito.
Ao ouvir
este nome o alegre Vasconcelos franziu o sobrolho.
Pouco
depois entrava no gabinete o Sr. José Brito.
O Sr. José
Brito era para Vasconcelos um verdadeiro fantasma, um eco do abismo, uma voz da
realidade; era um credor.
— Não
contava hoje com a sua visita, disse Vasconcelos.
— Admira,
respondeu o Sr. José Brito com uma placidez de apunhalar, porque hoje são 21.
— Cuidei
que eram 19, balbuciou Vasconcelos.
—
Anteontem, sim; mas hoje são 21. Olhe, continuou o credor pegando no Jornal do Comércio que se achava numa
cadeira: quinta-feira, 21.
— Vem
buscar o dinheiro?
— Aqui
está a letra, disse o Sr. José Brito tirando a carteira do bolso e um papel da carteira.
— Por que
não veio mais cedo? perguntou Vasconcelos, procurando assim espaçar a questão
principal.
— Vim às
oito horas da manhã, respondeu o credor, estava dormindo; vim às nove, idem;
vim às dez, idem; vim às onze, idem; vim ao meio-dia, idem. Quis vir à uma hora, mas tinha de mandar
um homem para a cadeia, e não me foi possível acabar cedo. Às três jantei, e às
quatro aqui estou.
Vasconcelos
puxava o charuto a ver se lhe ocorria alguma idéia boa de escapar ao pagamento com que ele não contava.
Não achava
nada; mas o próprio credor forneceu-lhe ensejo.
— Além de
que, disse ele, a hora não importa nada, porque eu estava certo de que o senhor
me vai pagar.
— Ah!
disse Vasconcelos, é talvez um engano; eu não contava com o senhor hoje, e não
arranjei o dinheiro...
— Então,
como há de ser? perguntou o credor com ingenuidade.
Vasconcelos
sentiu entrar-lhe n’alma a esperança.
— Nada
mais simples, disse; o senhor espera até amanhã...
— Amanhã
quero assistir à penhora de um indivíduo que mandei processar por uma larga
dívida; não posso...
— Perdão,
eu levo-lhe o dinheiro à sua casa...
— Isso
seria bom se os negócios comerciais se arranjassem assim. Se fôssemos dois
amigos é natural que eu me contentasse com a sua promessa, e tudo acabaria
amanhã; mas eu sou seu credor, e só tenho em vista salvar o meu interesse...
Portanto, acho melhor pagar hoje...
Vasconcelos
passou a mão pelos cabelos.
— Mas se
eu não tenho! disse ele.
— É uma
coisa que o deve incomodar muito, mas que a mim não me causa a menor
impressão... isto é, deve causar-me alguma, porque o senhor está hoje em
situação precária.
— Eu?
— É
verdade; as suas casas da Rua da Imperatriz estão hipotecadas; a da Rua de S.
Pedro foi vendida, e a importância já vai longe; os seus escravos têm ido a um e um, sem que o senhor o perceba,
e as despesas que o senhor há pouco fez
para montar uma casa a certa dama da sociedade equívoca são imensas. Eu sei
tudo; sei mais do que o senhor...
Vasconcelos
estava visivelmente aterrado.
O credor
dizia a verdade.
— Mas
enfim, disse Vasconcelos, o que havemos de fazer?
— Uma
coisa simples; duplicamos a dívida, e o senhor passa-me agora mesmo um
depósito.
— Duplicar
a dívida! Mas isto é um...
— Isto é
uma tábua de salvação; sou moderado. Vamos lá, aceite. Escreva-me aí o depósito, e rasga-se a letra.
Vasconcelos
ainda quis fazer objeção; mas era impossível convencer o Sr. José Brito.
Assinou o
depósito de dezoito contos.
Quando o
credor saiu, Vasconcelos entrou a meditar seriamente na sua vida.
Até então
gastara tanto e tão cegamente que não reparara no abismo que ele próprio cavara
a seus pés.
Veio porém
adverti-lo a voz de um dos seus algozes.
Vasconcelos
refletiu, calculou, recapitulou as suas despesas e as suas obrigações, e viu
que da fortuna que possuía tinha na realidade menos da quarta parte.
Para viver
como até ali vivera, aquilo era nada menos que a miséria.
Que fazer
em tal situação?
Vasconcelos
pegou no chapéu e saiu.
Vinha
caindo a noite.
Depois de
andar algum tempo pelas ruas entregue às suas meditações, Vasconcelos entrou no
Alcazar.
Era um
meio de distrair-se.
Ali
encontraria a sociedade do costume.
Batista
veio ao encontro do amigo.
— Que cara
é essa? disse-lhe.
— Não é
nada, pisaram-me um calo, respondeu Vasconcelos, que não encontrava melhor
resposta.
Mas um
pedicuro que se achava perto de ambos ouviu o dito, e nunca mais perdeu de
vista o infeliz Vasconcelos, a quem a coisa mais indiferente incomodava. O olhar persistente do pedicuro
aborreceu-o tanto, que Vasconcelos saiu.
Entrou no
Hotel de Milão, para jantar. Por mais preocupado que ele estivesse, a exigência
do estômago não se demorou.
Ora, no
meio do jantar lembrou-lhe aquilo que não devia ter-lhe saído da cabeça: o pedido de casamento feito nessa
tarde por Gomes.
Foi um
raio de luz.
"Gomes
é rico, pensou Vasconcelos; o meio de escapar a maiores desgostos é este; Gomes casa-se com Adelaide,
e como é meu amigo não me negará o que
eu precisar. Pela minha parte procurarei ganhar o perdido... Que boa fortuna
foi aquela lembrança do casamento!”
Vasconcelos
comeu alegremente; voltou depois ao Alcazar, onde alguns rapazes e outras pessoas fizeram esquecer
completamente os seus infortúnios.
Às três
horas da noite Vasconcelos entrava para casa com a tranqüilidade e regularidade
do costume.
CAPÍTULO IV
No dia
seguinte o primeiro cuidado de Vasconcelos foi consultar o coração de Adelaide.
Queria porém fazê-lo na ausência de Augusta. Felizmente esta precisava de ir
ver à Rua da Quitanda umas fazendas novas, e saiu com o cunhado, deixando a Vasconcelos toda a
liberdade.
Como os
leitores já sabem, Adelaide queria muito ao pai, e era capaz de fazer por ele
tudo. Era, além disso, um excelente coração. Vasconcelos contava com essas duas forças.
— Vem cá,
Adelaide, disse ele entrando na sala; sabes quantos anos tens?
— Tenho
quinze.
— Sabes
quantos anos tem tua mãe?
— Vinte e
sete, não é?
— Tem
trinta; quer dizer que tua mãe casou-se com quinze anos.
Vasconcelos
parou, a fim de ver o efeito que produziam estas palavras; mas foi inútil a
expectativa; Adelaide não compreendeu nada.
O pai
continuou:
— Não
pensaste no casamento?
A menina
corou muito, hesitou em falar, mas como o pai instasse, respondeu:
— Qual,
papai! Eu não quero casar...
— Não
queres casar? É boa! por quê?
— Porque
não tenho vontade, e vivo bem aqui.
— Mas tu
podes casar e continuar a viver aqui...
— Bem; mas
não tenho vontade.
— Anda
lá... Amas alguém, confessa.
— Não me
pergunte isso, papai... eu não amo ninguém.
A
linguagem de Adelaide era tão sincera que Vasconcelos não podia duvidar.
— Ela fala
a verdade, pensou ele; é inútil tentar por esse lado...
Adelaide
sentou-se ao pé dele, e disse:
—
Portanto, meu paizinho, não falemos mais nisso...
— Falemos,
minha filha; tu és criança, não sabes calcular. Imagina que eu e a tua mãe morremos amanhã. Quem te há de
amparar? Só um marido.
— Mas se
eu não gosto de ninguém...
— Por ora;
mas hás de vir a gostar se o noivo for um bonito rapaz, de bom coração... Eu já
escolhi um que te ama muito, e a quem tu hás de amar.
Adelaide
estremeceu.
— Eu?
disse ela, Mas... quem é?
— É o
Gomes.
— Não o
amo, meu pai...
— Agora,
creio; mas não negas que ele é digno de ser amado. Dentro de dois meses está
apaixonada por ele.
Adelaide
não disse palavra. Curvou a cabeça e começou a torcer nos dedos uma das tranças bastas e negras. O seio
arfava-lhe com força; a menina tinha os
olhos cravados no tapete.
— Vamos,
está decidido, não? perguntou Vasconcelos.
— Mas,
papai, e se eu for infeliz?...
— Isso é
impossível, minha filha; hás de ser muito feliz; e hás de amar muito a teu
marido.
— Oh!
papai, disse-lhe Adelaide com os olhos rasos de água, peço-lhe que não me case
ainda...
—
Adelaide, o primeiro dever de uma filha é obedecer a seu pai, e eu sou teu pai.
Quero que te cases com o Gomes; hás de casar.
Estas
palavras, para terem todo o efeito, deviam ser seguidas de uma retirada rápida.
Vasconcelos compreendeu isso, e saiu da sala deixando Adelaide na maior
desolação.
Adelaide
não amava ninguém. A sua recusa não tinha por ponto de partida nenhum outro
amor; também não era resultado de aversão que tivesse pelo seu pretendente.
A menina
sentia simplesmente uma total indiferença pelo rapaz.
Nestas
condições o casamento não deixava de ser uma odiosa imposição.
Mas que
faria Adelaide? a quem recorreria?
Recorreu
às lágrimas.
Quanto a
Vasconcelos, subiu ao gabinete e escreveu as seguintes linhas ao futuro genro:
Tudo
caminha bem; autorizo-te a vires fazer a corte à pequena, e espero que dentro
de dois meses o casamento esteja concluído.
Fechou a
carta e mandou-a.
Pouco
depois voltaram de fora Augusta e Lourenço.
Enquanto Augusta subiu para o quarto da toilette para
mudar de roupa,Lourenço foi ter com Adelaide, que estava no jardim.
Reparou
que ela tinha os olhos vermelhos, e inquiriu a causa; mas a moça negou que
fosse de chorar.
Lourenço não
acreditou nas palavras da sobrinha, e instou com ela para que lhe contasse o
que havia.
Adelaide
tinha grande confiança no tio, até por causa da sua rudeza de maneiras. No fim
de alguns minutos de instâncias, Adelaide contou a Lourenço a cena com o pai.
— Então, é
por isso que estás chorando, pequena?
— Pois
então? Como fugir ao casamento?
—
Descansa, não te casarás; eu te prometo que não te hás de casar...
A moça
sentiu um estremecimento de alegria.
— Promete,
meu tio, que há de convencer a papai?
— Hei de
vencê-lo ou convencê-lo, não importa; tu não te hás de casar. Teu pai é um tolo.
Lourenço
subiu ao gabinete de Vasconcelos, exatamente no momento em que este se dispunha
a sair.
— Vais
sair? perguntou-lhe Lourenço.
— Vou.
— Preciso
falar-te.
Lourenço
sentou-se, e Vasconcelos, que já tinha o chapéu na cabeça, esperou de pé que
ele falasse.
—
Senta-te, disse Lourenço.
Vasconcelos
sentou-se.
— Há
dezesseis anos...
— Começas
de muito longe; vê se abrevias uma meia dúzia de anos, sem o que não prometo
ouvir o que me vais dizer.
— Há
dezesseis anos, continuou Lourenço, que és casado; mas a diferença entre o
primeiro dia e o dia de hoje é grande.
—
Naturalmente, disse Vasconcelos. Tempora mutantur et...
— Naquele
tempo, continuou Lourenço, dizias que encontraras o paraíso, o verdadeiro
paraíso, e foste durante dois ou três anos o modelo dos maridos. Depois mudaste
completamente; e o paraíso tornar-se-ia verdadeiro
inferno se tua mulher não fosse tão indiferente e fria como é, evitando assim as mais terríveis cenas
domésticas.
— Mas,
Lourenço, que tens com isso?
— Nada;
nem é disso que vou falar-te. O que me interessa é que não sacrifiques tua filha por um capricho,
entregando-a a um dos teus companheiros
de vida solta...
Vasconcelos
levantou-se:
— Estás
doido! disse ele.
— Estou
calmo, e dou-te o prudente conselho de não sacrificares tua filha a um
libertino.
— Gomes
não é libertino; teve uma vida de rapaz, é verdade, mas gosta de Adelaide, e
reformou-se completamente. É um bom casamento, e por isso acho que todos devemos aceitá-lo. É a
minha vontade, e nesta casa quem manda sou eu.
Lourenço
procurou falar ainda, mas Vasconcelos já ia longe.
"Que
fazer?" pensou Lourenço.
CAPÍTULO V
A oposição
de Lourenço não causava grande impressão a Vasconcelos. Ele podia, é verdade,
sugerir à sobrinha idéias de resistência; mas Adelaide, que era um espírito fraco, cederia ao último
que lhe falasse, e os conselhos de um
dia seriam vencidos pela imposição do dia seguinte.
Todavia era
conveniente obter o apoio de Augusta. Vasconcelos pensou em tratar disso o mais
cedo que lhe fosse possível.
Entretanto,
urgia organizar os seus negócios, e Vasconcelos procurou um advogado a quem entregou todos os papéis e
informações, encarregando-o de orientá-lo em todas as necessidades da situação,
quais os meios que poderia opor em qualquer caso de reclamação por dívida ou
hipoteca.
Nada disto
fazia supor da parte de Vasconcelos uma reforma de costumes. Preparava-se
apenas para continuar a vida anterior.
Dois dias
depois da conversa com o irmão, Vasconcelos procurou Augusta, para tratar
francamente do casamento de Adelaide.
Já nesse
intervalo o futuro noivo, obedecendo ao conselho de Vasconcelos, fazia corte prévia à filha. Era possível que,
se o casamento não lhe fosse imposto, Adelaide acabasse por gostar do rapaz.
Gomes era um homem belo e elegante; e, além disso, conhecia todos os recursos
de que se deve usar para impressionar uma mulher.
Teria
Augusta notado a presença assídua do moço? Vasconcelos fazia essa pergunta ao
seu espírito no momento em que entrava na toilette da mulher.
— Vais
sair? perguntou ele.
— Não;
tenho visitas.
— Ah!
quem?
— A mulher
do Seabra, disse ela.
Vasconcelos
sentou-se, e procurou um meio de encabeçar a conversa especial que ali o
levava.
— Estás
muito bonita hoje!
— Deveras?
disse ela sorrindo. Pois estou hoje como sempre, e é singular que o digas
hoje...
— Não;
realmente hoje estás mais bonita do que costumas, a ponto que sou capaz de ter
ciúmes...
— Qual!
disse Augusta com um sorriso irônico.
Vasconcelos
coçou a cabeça, tirou o relógio, deu-lhe corda; depois entrou a puxar as barbas, pegou numa folha, leu dois ou
três anúncios, atirou a folha ao chão, e
afinal, depois de um silêncio já prolongado, Vasconcelos achou melhor atacar a praça de frente.
— Tenho
pensado ultimamente em Adelaide, disse ele.
— Ah! por
quê?
— Está
moça...
— Moça!
exclamou Augusta, é uma criança...
— Está
mais velha do que tu quando te casaste...
Augusta
franziu ligeiramente a testa.
— Mas
então... disse ela.
— Então é
que desejo fazê-la feliz e feliz pelo casamento. Um rapaz, digno dela a todos
os respeitos, pediu-ma há dias, e eu disse-lhe que sim. Em sabendo quem é, aprovarás a escolha; é o
Gomes. Casamo-la, não?
— Não!
respondeu Augusta.
— Como,
não?
— Adelaide
é uma criança; não tem juízo nem idade própria... Casar-se-á quando for tempo.
— Quando
for tempo? Estás certa se o noivo esperará até que seja tempo?
—
Paciência, disse Augusta.
— Tens
alguma coisa que notar no Gomes?
— Nada. É
um moço distinto; mas não convém a Adelaide.
Vasconcelos
hesitava em continuar; parecia-lhe que nada se podia arranjar; mas a idéia da
fortuna deu-lhe forças, e ele perguntou:
— Por quê?
— Estás
certo de que ele convenha a Adelaide? perguntou Augusta, eludindo a pergunta do
marido.
— Afirmo
que convém.
— Convenha
ou não, a pequena não deve casar já.
— E se ela
amasse?...
— Que
importa isso? esperaria!
—
Entretanto, Augusta, não podemos prescindir deste casamento... É uma necessidade
fatal.
— Fatal?
não compreendo.
— Vou
explicar-me. O Gomes tem uma boa fortuna.
— Também
nós temos uma...
— É o teu
engano, interrompeu Vasconcelos.
— Como
assim?
Vasconcelos
continuou:
— Mais
tarde ou mais cedo havias de sabê-lo, e eu estimo ter esta ocasião de dizer-te toda a verdade. A verdade é que,
se não estamos pobres, estamos
arruinados.
Augusta
ouviu estas palavras com os olhos espantados. Quando ele acabou, disse:
— Não é
possível!
—
Infelizmente é verdade!
Seguiu-se
algum tempo de silêncio.
“Tudo está
arranjado”, pensou Vasconcelos.
Augusta
rompeu o silêncio.
— Mas,
disse ela, se a nossa fortuna está abalada, creio que o senhor tem coisa melhor para fazer do que estar
conversando; é reconstruí-la.
Vasconcelos
fez com a cabeça um movimento de espanto, e como se fosse aquilo uma pergunta,
Augusta apressou-se a responder:
— Não se
admire disto; creio que o seu dever é reconstruir a fortuna.
— Não me
admira esse dever; admira-me que mo lembres por esse modo. Dir-se-ia que a culpa é minha...
— Bom!
disse Augusta, vais dizer que fui eu...
— A culpa,
se culpa há, é de nós ambos.
— Por quê?
é também minha?
— Também.
As tuas despesas loucas contribuíram em grande parte para este resultado; eu
nada te recusei nem recuso, e é nisso que sou culpado. Se é isso que me lanças em rosto, aceito.
Augusta
levantou os ombros com um gesto de despeito; e deitou a Vasconcelos um olhar de
tamanho desdém que bastaria para intentar uma ação de divórcio.
Vasconcelos
viu o movimento e o olhar.
— O amor
do luxo e do supérfluo, disse ele, há de sempre produzir estas conseqüências. São terríveis, mas explicáveis.
Para conjurá-las era preciso viver com moderação. Nunca pensaste nisso. No fim
de seis meses de casada entraste a viver
no turbilhão da moda, e o pequeno regato das despesas tornou-se um rio imenso de
desperdícios. Sabes o que me disse uma vez meu irmão? Disse-me que a idéia de
mandar Adelaide para a roça foi-te
sugerida pela necessidade de viver sem cuidados de natureza alguma.
Augusta
tinha-se levantado, e deu alguns passos; estava trêmula e pálida.
Vasconcelos
ia por diante nas suas recriminações, quando a mulher o interrompeu, dizendo:
— Mas por
que motivo não impediu o senhor essas despesas que eu fazia?
— Queria a
paz doméstica.
— Não!
clamou ela; o senhor queria ter por sua parte uma vida livre e independente;
vendo que eu me entregava a essas despesas imaginou comprar a minha tolerância com a sua
tolerância. Eis o único motivo; a sua vida não será igual à minha; mas é
pior... Se eu fazia despesas em casa o senhor as fazia na rua... É inútil
negar, porque eu sei tudo; conheço, de nome, as rivais que sucessivamente o
senhor me deu, e nunca lhe disse uma única palavra, nem agora lho censuro,
porque seria inútil e tarde.
A situação
tinha mudado. Vasconcelos começara constituindo-se juiz, e passara a ser
co-réu. Negar era impossível; discutir era arriscado e inútil. Preferiu sofismar.
— Dado que
fosse assim (e eu não discuto esse ponto), em todo caso a culpa será de nós
ambos, e não vejo razão para que ma lances em rosto. Devo reparar a fortuna, concordo; há um meio,
e é este: o casamento de
Adelaide
com o Gomes.
— Não!
disse Augusta.
— Bem;
seremos pobres, ficaremos piores do que estamos agora; venderemos tudo...
— Perdão,
disse Augusta, eu não sei por que razão não há de o senhor, que é forte, e tem
a maior parte no desastre, empregar esforços para a reconstrução da fortuna destruída.
— É
trabalho longo; e daqui até lá a vida continua e gasta-se. O meio, já lho disse, é este: casar Adelaide com o Gomes.
— Não
quero! disse Augusta, não consinto em semelhante casamento.
Vasconcelos
ia responder, mas Augusta, logo depois de proferir estas palavras, tinha saído
precipitadamente do gabinete.
Vasconcelos
saiu alguns minutos depois.
CAPÍTULO VI
Lourenço
não teve conhecimento da cena entre o irmão e a cunhada, e depois da teima de Vasconcelos resolveu nada
mais dizer; entretanto, como queria muito à sobrinha, e não queria vê-la
entregue a um homem de costumes que ele reprovava, Lourenço esperou que a
situação tomasse caráter mais decisivo para assumir mais ativo papel.
Mas, a fim
de não perder tempo, e poder usar alguma arma poderosa, Lourenço tratou de instaurar uma pesquisa
mediante a qual pudesse colher informações minuciosas acerca de Gomes.
Este
cuidava que o casamento era coisa decidida, e não perdia um só dia na conquista
de Adelaide.
Notou,
porém, que Augusta tornava-se mais fria e indiferente, sem causa que ele
conhecesse, e entrou-lhe no espírito a suspeita de que viesse dali alguma
oposição.
Quanto a
Vasconcelos, desanimado pela cena da toilette, esperou melhores dias, e contou
sobretudo com o império da necessidade.
Um dia,
porém, exatamente quarenta e oito horas depois da grande discussão com Augusta,
Vasconcelos fez dentro de si esta pergunta:
"Augusta
recusa a mão de Adelaide para o Gomes; por quê?"
De
pergunta em pergunta, de dedução em dedução, abriu-se no espírito de Vasconcelos
campo para uma suspeita dolorosa.
"Amá-lo-á
ela?" perguntou ele a si próprio.
Depois,
como se o abismo atraísse o abismo, e uma suspeita reclamasse outra,
Vasconcelos perguntou:
—
Ter-se-iam eles amado algum tempo?
Pela
primeira vez, Vasconcelos sentiu morder-lhe no coração a serpe do ciúme.
Do ciúme
digo eu, por eufemismo; não sei se aquilo era ciúme; era amor-próprio ofendido.
As
suspeitas de Vasconcelos teriam razão?
Devo dizer
a verdade: não tinham. Augusta era vaidosa, mas era fiel ao infiel marido; e isso por dois motivos: um de
consciência, outro de temperamento. Ainda que ela não estivesse convencida do
seu dever de esposa, é certo que nunca trairia o juramento conjugal. Não era
feita para as paixões, a não ser as paixões ridículas que a vaidade impõe. Ela
amava antes de tudo a sua própria
beleza; o seu melhor amigo era o que dissesse que ela era mais bela entre as
mulheres; mas se lhe dava a sua amizade, não lhe daria nunca o coração; isso a
salvava.
A verdade
é esta; mas quem o diria a Vasconcelos? Uma vez suspeitoso de que a sua honra
estava afetada, Vasconcelos começou a recapitular toda a sua vida. Gomes
freqüentava a sua casa há seis anos, e tinha nela plena liberdade. A traição
era fácil. Vasconcelos entrou a recordar as palavras, os gestos, os olhares,
tudo que antes lhe foi indiferente, e que naquele momento tomava um caráter suspeitoso.
Dois dias
andou Vasconcelos cheio deste pensamento. Não saía de casa. Quando Gomes chegava, Vasconcelos observava a
mulher com desusada persistência; a própria frieza com que ela recebia o rapaz
era aos olhos do marido uma prova do
delito.
Estava
nisto, quando na manhã do terceiro dia (Vasconcelos já se levantava cedo) entrou-lhe no gabinete o
irmão, sempre com ar selvagem do costume.
A presença
de Lourenço inspirou a Vasconcelos a idéia de contar-lhe tudo.
Lourenço
era um homem de bom senso, e em caso de necessidade era um apoio.
O irmão
ouviu tudo quanto Vasconcelos contou, e concluindo este, rompeu o seu silêncio com estas palavras:
— Tudo
isso é uma tolice; se tua mulher recusa o casamento, será por qualquer outro
motivo que não esse.
— Mas é o
casamento com o Gomes que ela recusa.
— Sim,
porque lhe falaste no Gomes; fala-lhe em outro, talvez recuse do mesmo modo. Há de haver outro motivo; talvez
Adelaide lhe contasse, talvez lhe
pedisse para opor-se, porque tua filha não ama o rapaz, e não pode casar com ele.
— Não
casará.
— Não só
por isso, mas até porque...
— Acaba.
— Até
porque este casamento é uma especulação do Gomes.
— Uma
especulação? perguntou Vasconcelos.
— Igual à
tua, disse Lourenço. Tu dás-lhe a filha com os olhos na fortuna dele; ele
aceita-a com os olhos na tua fortuna...
— Mas ele
possui...
— Não
possui nada; está arruinado como tu. Indaguei e soube da verdade. Quer
naturalmente continuar a mesma vida dissipada que teve até hoje, e a tua fortuna é um meio...
— Estás
certo disso?
—
Certíssimo!...
Vasconcelos
ficou aterrado. No meio de todas as suspeitas, ainda lhe restava a esperança de
ver a sua honra salva, e realizado aquele negócio que lhe daria uma excelente situação.
Mas a
revelação de Lourenço matou-o.
— Se
queres uma prova, manda chamá-lo, e dize-lhe que estás pobre, e por isso lhe
recusas a filha; observa-o bem, e verás o efeito que as tuas palavras lhe hão de produzir.
Não foi
preciso mandar chamar o pretendente. Daí a uma hora apresentou-se ele em casa
de Vasconcelos.
Vasconcelos
mandou-o subir ao gabinete.
CAPÍTULO VII
Logo
depois dos primeiros cumprimentos Vasconcelos disse:
— Ia
mandar chamar-te.
— Ah! para
quê? perguntou Gomes.
— Para
conversarmos acerca do... casamento.
— Ah! há
algum obstáculo?
—
Conversemos.
Gomes
tornou-se mais sério; entrevia alguma dificuldade grande.
Vasconcelos
tomou a palavra.
— Há
circunstâncias, disse ele, que devem ser bem definidas, para que se possa
compreender bem...
— É a
minha opinião.
— Amas
minha filha?
— Quantas
vezes queres que to diga?
— O teu
amor está acima de todas as circunstâncias?...
— De
todas, salvo aquelas que entenderem com a felicidade dela.
— Devemos
ser francos; além de amigo que sempre foste, és agora quase meu filho... A discrição entre nós seria
indiscreta...
— Sem
dúvida! respondeu Gomes.
— Vim a
saber que os meus negócios param mal; as despesas que fiz alteraram
profundamente a economia da minha vida, de modo que eu não te minto dizendo que estou pobre.
Gomes
reprimiu uma careta.
—
Adelaide, continuou Vasconcelos, não tem fortuna, não terá mesmo dote; é apenas
uma mulher que eu te dou. O que te afianço é que é um anjo, e que há de ser excelente esposa.
Vasconcelos
calou-se, e o seu olhar cravado no rapaz parecia querer arrancar-lhe das
feições as impressões da alma.
Gomes
devia responder; mas durante alguns minutos houve entre ambos um profundo
silêncio.
Enfim o
pretendente tomou a palavra.
— Aprecio,
disse ele, a tua franqueza, e usarei de franqueza igual.
— Não peço
outra coisa...
— Não foi
por certo o dinheiro que me inspirou este amor; creio que me farás a justiça de
crer que eu estou acima dessas considerações. Além de que, no dia em que eu te pedi a querida do meu
coração, acreditava estar rico.
—
Acreditavas?
— Escuta.
Só ontem é que o meu procurador me comunicou o estado dos meus negócios.
— Mau?
— Se fosse
isso apenas! Mas imagina que há seis meses estou vivendo pelos esforços inauditos
que o meu procurador fez para apurar algum dinheiro, pois que ele não tinha ânimo de
dizer-me a verdade. Ontem soube tudo!
— Ah!
— Calcula
qual é o desespero de um homem que acredita estar bem, e reconhece um dia que não tem nada!
— Imagino
por mim!
— Entrei
alegre aqui, porque a alegria que eu ainda tenho reside nesta casa; mas a
verdade é que estou à beira de um abismo. A sorte castigou-nos a um tempo...
Depois
desta narração, que Vasconcelos ouviu sem pestanejar, Gomes entrou no ponto mais difícil da questão.
— Aprecio
a tua franqueza, e aceito a tua filha sem fortuna; também eu não tenho, mas ainda me restam forças para
trabalhar.
— Aceitas?
— Escuta.
Aceito D. Adelaide, mediante uma condição; é que ela queira esperar algum tempo, a fim de que eu comece a
minha vida. Pretendo ir ao governo e pedir um lugar qualquer, se é que ainda me
lembro do que aprendi na escola... Apenas tenha começado a vida, cá virei
buscá-la. Queres?
— Se ela
consentir, disse Vasconcelos abraçando esta tábua de salvação, é coisa
decidida.
Gomes
continuou:
— Bem,
falarás nisso amanhã, e mandar-me-ás resposta. Ah! se eu tivesse ainda a minha
fortuna! Era agora que eu queria provar-te a minha estima!
— Bem,
ficamos nisto.
— Espero a
tua resposta.
E despediram-se.
Vasconcelos
ficou fazendo esta reflexão:
"De
tudo quanto ele disse só acredito que já não tem nada. Mas é inútil esperar: duro com duro não faz bom muro."
Pela sua
parte Gomes desceu a escada dizendo consigo:
"O
que acho singular é que estando pobre viesse dizer-mo assim tão antecipadamente
quando eu estava caído. Mas esperarás debalde: duas metades de cavalo não fazem
um cavalo."
Vasconcelos
desceu.
A sua
intenção era comunicar a Augusta o resultado da conversa com o pretendente. Uma
coisa, porém, o embaraçava: era a insistência de Augusta em não consentir no casamento de
Adelaide, sem dar nenhuma razão da recusa.
Ia
pensando nisto, quando, ao atravessar a sala de espera, ouviu vozes na sala de
visitas.
Era
Augusta que conversava com Carlota.
Ia entrar
quando estas palavras lhe chegaram ao ouvido:
— Mas
Adelaide é muito criança.
Era a voz
de Augusta.
— Criança!
disse Carlota.
— Sim; não
está em idade de casar.
— Mas eu
no teu caso não punha embargos ao casamento, ainda que fosse daqui a alguns
meses, porque o Gomes não me parece mau rapaz...
— Não é;
mas enfim eu não quero que Adelaide se case.
Vasconcelos
colou o ouvido à fechadura, e temia perder uma só palavra do diálogo.
— O que eu
não compreendo, disse Carlota, é a tua insistência. Mais tarde ou mais cedo
Adelaide há de vir a casar-se.
— Oh! o
mais tarde possível, disse Augusta.
Houve um
silêncio.
Vasconcelos
estava impaciente.
— Ah!
continuou Augusta, se soubesses o terror que me dá a idéia do casamento de
Adelaide...
— Por que,
meu Deus?
— Por que,
Carlota? Tu pensas em tudo, menos numa coisa. Eu tenho medo por causa dos
filhos dela que serão meus netos! A idéia de ser avó é horrível, Carlota.
Vasconcelos
respirou, e abriu a porta.
— Ah!
disse Augusta.
Vasconcelos
cumprimentou Carlota, e apenas esta saiu, voltou-se para a mulher, e disse:
— Ouvi a
tua conversa com aquela mulher...
— Não era
segredo; mas... que ouviste?
Vasconcelos
respondeu sorrindo:
— Ouvi a
causa dos teus terrores. Não cuidei nunca que o amor da própria beleza pudesse
levar a tamanho egoísmo. O casamento com o Gomes não se realiza; mas se
Adelaide amar alguém, não sei como lhe recusaremos o nosso consentimento...
— Até
lá... esperemos, respondeu Augusta.
A conversa
parou nisto; porque aqueles dois consortes distanciavam-se muito; um tinha a
cabeça nos prazeres ruidosos da mocidade, ao passo que a outra meditava
exclusivamente em si.
No dia
seguinte Gomes recebeu uma carta de Vasconcelos concebida nestes termos:
Meu Gomes.
Ocorre uma
circunstância inesperada; é que Adelaide não quer casar. Gastei a minha lógica,
mas não alcancei convencê-la.
Teu
Vasconcelos.
Gomes
dobrou a carta e acendeu com ela um charuto, e começou a fumar fazendo esta
reflexão profunda:
"Onde
acharei eu uma herdeira que me queira por marido?"
Se alguém
souber avise-o em tempo.
Depois do
que acabamos de contar, Vasconcelos e Gomes encontram-se às vezes na rua ou no Alcazar; conversam, fumam,
dão o braço um ao outro, exatamente como
dois amigos, que nunca foram, ou como dois velhacos que são.
---
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1870. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1870. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
Nenhum comentário:
Postar um comentário