domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "A Primeira Entrevista"

A PRIMEIRA ENTREVISTA
  
Às ave-marias, arrumada a vaca e picada a ração para o cavalo numa espécie de estrebaria improvisada sob as ramagens bastas dos cafeeiros, cercando ao fundo a cozinha, o João Valente entrou em casa, a tomar o seu casaco de brim e o seu bordão de camboatá para as costumadas excursões noturnas pela freguesia.

Estrelava, quando desceu o terreiro e os seus grossos tamancos de couro começaram a estalar em cadência sobre o arcão da vereda que ia dar à estrada. Caminhava cantando, sob o esplendor da noite transparente, na doçura daquele descanso bem ganho à labuta do campo. E a sua alma exultava, feliz, por entre as sebes do atalho, onde os grilos veladores soltavam já, pelas moitas, os seus piqueniques metálicos.

À porteira parou, porque ouviu de repente, para os lados de cima, uma algazarra de rapazes. Esperou um instante, para ver se era gente das redes ou alguns dos companheiros de andadas. Tirou o isqueiro do bolso e, acendendo o grosso cigarro de palha que trazia à orelha, pôs-se a escutar. Na volta do caminho as vozes se tornaram mais claras. Reconheceu, então, o bando costumado — o Lino, o Honório e o Cosme, com a troçada tiririca — que lá vinha, nas habituais correrias dos sábados, para os fandangos da Baixada. Recolheu logo à porteira, correndo-lhe precipitadamente as varas, e agachou-se em seguida, escondendo o cigarro na escuridão das ramagens.

Não queria ser visto para poder escapar ao grupo que, constantemente nesses dias assim, o arrastava para aquelas folias noturnas. Já estava cansado das longas caminhadas e festas por essas paragens distantes. Depois, naquela noite, não se pertencia, pois tinha de ir à rua Velha, onde o seu coração achara agora um encanto. E na ânsia de se ocultar, com medo de que o menor ruído o revelasse, comprimia o peito, sofreando a respiração, para não faltar — louvado fosse Deus! — ao primeiro encontro que ia ter com a Rosinha, pela volta das oito, conforme haviam tratado em casa da tia Marciana.

Mas o bando passou num estrépito, numa alegre correria, em direção à Figueira Grande, onde a estrada real se bifurcava na da Baixada e na da Ponta das Canas. E durante muito tempo o rumor dos passos e vozes ecoou no caminho, afastando-se para longe...

Quando o silêncio voltou, só interrompido vagamente pelo saudoso perpassar do vento na folhagem sussurrante, o João Valente ergueu-se e sacudindo a roupa meio irrorada pela umidade da grama, com o cigarro fumegando nos beiços, transpôs a porteira rompendo o caminhar à tola. Num outeiro próximo, por onde a estrada subia para cair outra vez na planície, entrou a moderar a marcha, porque sentiu novamente a barulhada dos rapazes estalar adiante. Já um pouco nervoso, desesperava-se, no temor de que as horas passassem e não pudesse chegar mais a tempo à casa da tia Marciana. Na descida parou à sombra de um vasto cafezal que margeava o caminho, e, enquanto o bando se perdia além, na zoada que esmorecia para os lados da Baixada, impaciente e inquieto, ora batia freneticamente com o porrete no chão, ora fixava as estrelas vivíssimas, abrindo no alto um sendal de ouro flamante.

Em pouco, porém, a matinada se escoou ao longe e ele volveu a caminhar a passadas gigantes. Pelo engenho do Silvano, situado antes da encruzilhada, encontrou o Rufino, um camarada de infância, que corria para casa do vigário a buscar remédio para a mãe, agonizante de repente com uma sufocação. Fê-lo estacar por momentos; e após algumas perguntas tumultuosas a que o outro respondia arfando, quase a chorar, com umas garrafas na mão, inquiriu ainda:

− E uma coisa: não esbarraste com o bando do Lino numa balbúrdia por aí fora?...

O Rufino gritou-lhe, já numa andada de gamo pela ladeira acima, a cabeça voltada, a voz contrafeita pelo esforço da marcha:

−  Não! Só se embarafustaram pela Figueira Grande...

Daí a instantes, o João Valente, passado o sítio da grota, onde havia uma pequena ponte arruinada sobre um córrego murmurante, cujo fio de água prateada se perdia entre as ervagens do campo, entrou a demorar o passo, pois avistara lá no alto, contra o maciço escuro do pomar, a casa da tia Marciana.

Antes de tomar a vereda que levava até lá, cumpria evitar a cancela do velho Estêvão Santos, cuja casa era logo adiante. O abastado lavrador, ou alguém do seu lar, se o visse passar, inutilizava-lhe imediatamente o “plano” e ele perderia, desta vez, a primeira entrevista com a amada.

Conhecia quanto aquela gente o malqueria e do que o velho era capaz, se viesse a saber um dia do seu amor pela filha, que idolatrava. Por isso, desde que o seu afeto nascera — havia um ano — guardava o maior sigilo, não o narrando mesmo à sua mãe, para que ele se não divulgasse até que fizesse o casamento. E era por essa razão que, a muito custo, depois de enorme relutância da parte da Rosinha, obtivera dela, para aquela noite, uma entrevista em casa da tia Marciana, que protegia solicitamente o namoro de ambos. Não queria, pois, por coisa alguma do mundo, perder a oportunidade de assentar, de uma vez, as bases da única felicidade que aspirava o seu coração.

Meteu-se, então, por um canavial que acompanhava aí a estrada até a porteira do campo, e foi sair do atalho, bem em frente à casa da tia da Rosinha, que tinha luz na varanda. Botou-se à pressa pela vereda acima, muito alegre na sua paixão, e feita a volta da fonte, caiu em cheio no terreiro, na empena para onde dava a porta. A Rosinha e a tia, ao avistarem-no, ergueram-se logo do degrau onde estavam sentadas e correram para ele, exclamando:

− Boas horas! Estamos aqui há que tempo... Que demora, Virgem Santa!...

O Valente, apertando-lhes as mãos, ainda meio cansado da corrida, começou a contar-lhes, miudamente, as contrariedades que sofrera, desde a saída da casa até aquele instante. E ia para entrar, a pilheriar no meio de ambas, que se desfaziam em risos, quando, lá embaixo, no caminho, uma voz grossa e forte estrugiu de repente:

− Ó comadre! Ó comadre! Olhe, a Rosinha que ande!... Eu cá estou à porteira...

Os três estacaram, atônitos, ao som da voz tão conhecida e temida do velho Estêvão Santos. E tia e sobrinha, assustadas e trêmulas, correram para a varanda, dizendo apenas ao rapaz:

− Esconda-se, por Nossa Senhora, senão o velho o apanha...

O Valente, atarantado e indeciso, nos apuros do momento, procurava onde ocultar-se, quando ouviu os passos do velho, que subia já em direção ao terreiro. Desorientado, atirou-se à vereda, a fim de alcançar um algodoeiro ao pé e galgar a estrada no outro extremo do terreno; mas, na cegueira em que ia, esbarrou, sem esperar e tão violentamente, com o velho, que o derribou contra a sebe, na escuridão das ramagens espessas.

O homem soltou um rugido abafado, em meio à terrível surpresa, e, levantando-se logo, muito rijo e possante no seu todo hercúleo de lavrador, desceu ao caminho, brandindo o seu grosso cajado de laranjeira, trovejando, indignado e colérico:

− Ah! canalha! Se te apanho, sacudia-te o pelo!...

O Valente, na disparada, saltara a cerca do outro lado, e, varando um mandiocal à esquerda, agachou-se entre as ramas, a espreitar o caminho, o coração aos saltos, com medo do velho Estêvão. Só pode respirar livremente quando o perfil gigantesco do homem se sumiu no atalho. Saiu, então, para a estrada e deu de andar para a casa, murmurando de si para si, entre desapontado e satisfeito:

Felizmente, o demônio não me conheceu!...


Outubro de 1896


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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

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