quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Padre Antônio Vieira: "Sermão da Terceira Dominga da Quaresma na Capela Real"

SERMÃO DA TERCEIRA DOMINGA DA QUARESMA NA CAPELA REAL (1655)


Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus, et admiratae sunt turbae.

CAPÍTULO I

O milagre deste dia representa o mistério da Confissão perfeita, o mudo fala de­pois da expulsão do demônio. Na parábola das bodas o pecador é condenado por não falar. Na parábola do filho pródigo, auto sacramental da confissão, o pecador é conde­nado antes de falar. As piores confissões. as em que o mudo fala e o demônio fica, como no caso de Judas. A confissão das confissões será a matéria do presente sermão. Como a turba que presenciou o milagre, o autor se admira das confissões malfeitas.

Quando ou as cortes eram mais cristãs, ou os pregadores menos de corte,quando se fazia menos caso da graça dos ouvintes, para que eles só fizessem caso da graça de Deus, quando a doutrina que se tirava do Evangelho eram verdades sólidas e evangélicas, e não discursos vãos e inúteis, quando finalmente as vozes dos precursores de Cristo chamavam os pecadores ao Jordão e os levavam às fontes dos sacramentos, o argumento comum deste Evangelho e a matéria utilíssima deste dia era a confissão. Esta antiguidade determino desenterrar hoje, esta velhice determino pregar, e só me pesa que há de ser, ainda que eu não queira, com grande novidade.

O pior estado desta vida, e o mais infeliz, de todos, é o pecado. Mas se neste extremo de mal pode haver ainda outro mal maior, é o de pecado, e mudo. O mais desventurado homem de que Cristo nos quis deixar um temeroso exemplo, foi aquele da parábola das bodas, a quem o rei, atado de pés e mãos, mandou lançar para sempre no cárcere das trevas. Orei era Deus, o cárcere o inferno, e o homem foi o mais desven­turado de todos os homens, porque no dia e no lugar em que todos se salvaram, só ele se condenou. E em que esteve a sua desgraça? Só em pecar? Não, porque muitos depois de pecar se salvaram. Pois em que esteve? Em emudecer depois de pecar. Estra­nhou-lhe o rei o descomedimento de se assentar à sua mesa, e em tal dia, com vestido indecente, e ele em vez de solicitar o perdão da sua culpa confessando-a, confirmou a sua condenação emudecendo: At ille obimutuit (Mt. 22, 12): E ele, diz o evangelista, emudeceu. – Aqui esteve o remate da desgraça. Mais mofino em emudecer que em pecar, porque cometido o pecado tinha ainda o remédio da confissão, mas emudecida a confissão, nenhum remédio lhe ficava ao pecado. Pecar é enfermar mortalmente; pecar é emudecer, é cair na enfermidade, é renunciar o remédio. Pecar é fazer naufrágio o navegante; pecar e emudecer, é ir-se com o peso ao fundo, e não lançar mão da tábua em que se pode salvar. Pecar é apagarem-se as alâmpadas às virgens néscias; pecar e emudecer é apagar-se-lhes as a lâmpadas e fechar-se-lhes as portas. O pecado tem mui­tas portas para entrar e uma só para sair, que é a confissão. Pecar é abrir as portas ao demônio para que entre à alma; pecar e emudecer, é abrir-lhe as portas para que entre, e cerrar-lhe a porta para que não possa sair. Isto é o que em alegoria comum temos hoje no Evangelho. Um homem endemoninhado e mudo. Endemoninhado, porque abriu o homem as portas ao pecado; mudo, porque fechou o demônio a porta à confissão.

E que fez Cristo neste caso? Maior caso ainda! Erat ejiciens daemonium (Lc. 11, 14). Não diz o evangelista que lançou Cristo o demônio fora, senão que o estava lançando. Achava Cristo repugnância, achava força, achava resistência, porque não há coisa que resista a Deus neste mundo senão um pecador mudo. Tantas vozes de Deus aos ouvidos, e o pecador mudo? Tantos raios e tantas luzes aos olhos, e o pecador mudo? Tantas razões ao entendimento, tantos motivos à vontade, tantos exemplos e tão desastrados e tão repetidos à memória, e o pecador mudo? Que fez alfim Cristo? Aplicou a virtude de seu poder eficaz, bateu à porta; porque não bas­tou bater à porta, insistiu, apertou, venceu, saiu rendido o demônio, e falou o mudo: Cum ejecisset daemonium, locutus est motus. – Este foi o fim da batalha, glorioso para Cristo, venturoso para o homem, afrontoso para o demônio, maravilhoso para os circunstantes, e só para o nosso intento parece que menos próprio e menos airoso. Diz que primeiro saiu o demônio, e depois falou o mudo: Cum ejecisset daemonium, locutus est motus. E nesta circunstância, parece que se encontra a ordem do milagre com a essência do mistério. Na confissão, primeiro fala o mudo, e depois sai o demônio; primeiro se confessa o pecador, e depois se absolve o pecado. Logo, se neste milagre se representa o mistério da confissão, primeiro havia de falar o mudo, e depois havia de sair o demônio. Antes não, e por isso mesmo, porque aqui não só se representa a confissão, senão a confissão perfeita, e a confissão perfeita não é aquela em que primeiro se confessa o pecado, e depois se perdoa, senão aquela em que primeiro se perdoa, e depois se confessa.

Resolveu-se o pródigo a tornar para casa do pai e confessar sua culpa, e como bom penitente dispôs e ordenou primeiro a sua confissão: Ibo ad pairem meum, et dicam ei: Pater, peccavi in coelum, et coram te. Feita esta primeira diligência, pôs-se a caminho, e estando ainda muito longe: Cum adhuc longe esset, eis que subitamente se acha entre os braços do pai, apertando-o estreitamente neles, e chegando-o ao rosto com as maiores carícias: Accurrens cecidit super collum ejus, et osculatus est eum. – Então se lançou o pródigo a seus pés e fez a sua confissão como a trazia prevenida: Et dixit ei filius: Pater, peccavi in coelum et coram te. –Pois agora, filho pródigo? Não era isso o que vós tínheis ensaiado. Enfim temos a comédia turbada. O pai saiu cedo, o filho falou tarde. Perderam as figuras as deixas, erraram a história, trocaram o mistério. Esta histó­ria do pródigo não é a comédia ou o ato sacramental da confissão? Sim. Logo, primeiro havia o pródigo de lançar-se aos pés do pai e fazer o papel da sua confissão, como a trazia estudada, e depois havia o pai de lançar-lhe os braços, e restituí-lo à sua graça. Pois por que se troca toda a ordem, e primeiro lhe lança os braços o pai, e depois se confessa o filho? Porque representavam ambos não só o ato sacramental da confissão, senão da confissão perfeitíssima. Na confissão menos perfeita, primeiro se confessa o pecado, e depois se recebe a graça; na confissão perfeitíssima primeiro se recebe a graça, e depois se confessa o pecado. A confissão menos perfeita começa pelos pés de Deus, e acaba pelos braços; a confissão perfeitíssima começa pelos braços e acaba pelos pés, como aconteceu ao pródigo. A razão é clara, porque a confissão perfeitíssi­ma é aquela em que o pecador vai aos pés de Deus verdadeiramente contrito e arrepen­dido de seus pecados. Vai verdadeiramente contrito e arrependido? Logo já vai emgraça, já vai perdoado, já vai absolto. E esta é a confissão que hoje temos no milagre do Evangelho. Confissão em que primeiro se recebe a graça e depois se confessa o peca­do; confissão em que primeiro sai o demônio, e depois fala o mudo: Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus.

Se não houvera no mundo mais modos de confissões que estes dois que tenho dito, não me ficava a mim para fazer hoje mais que seguir, como dizia, as pisadas dos nossos pregadores antepassados, e exortar à freqüência deste sacramento e à confissão e arrependimento dos pecados. Mas se me não engano, ainda há outro modo de confissão, e mui própria da corte. Deve ser como os trajos: confissão à la moda. Dissemos que havia confissão em que primeiro sai o demônio e depois fala o mudo, e confissão em que primeiro fala o mudo e depois sai o demônio. Ainda há mais confissão. E qual é? Confissão em que o mudo fala e o demônio não sai; con­fissão em que o mudo fala e o demônio fica. Judas quer dizer confessio: confissão. E assim como no apostolado de Cristo houve um Judas traidor e outro Judas santo, assim há hoje na Igreja confissões santas e confissões traidoras. Judas, o traidor, não foi traidor mudo; antes a boca e a língua foi o principal instrumento de sua traição. Ave Rabbi; et osculatus est eum. Desta sorte são muitas das confissões que hoje vemos no mundo, e por isso eu há muito que me temo muito mais das confissões que dos pecados. É de fé que toda a verdadeira confissão causa graça na alma. Nunca houve tanta freqüência de confissões como hoje; contudo vemos muito poucos efei­tos da graça. Qual será a causa disto: tanta confissão e tão pouca graça? Eu não sei a causa que é, mas sei a causa que só pode ser. A causa que só pode ser é que são confissões em que falam os mudos, mas não saem os demônios. A confissão bem feita é sacramento, a malfeita é sacrilégio; a confissão bem feita tira todos os peca­dos, a malfeita acrescenta mais um pecado; a confissão bem feita lança o demônio fora, a malfeita mete-o mais dentro. E se cada dia vos vemos mais entrados e mais penetrados do demônio, que fé quereis que tenhamos nas vossas confissões? Ora, eu hoje hei de tratar da confissão como prometi. Mas, porque o remédio se deve aplicar conforme a chaga, não hei de tratar da confissão dos pecados, senão da confissão das confissões. Eis aqui a velhice e a novidade do assunto que trago hoje. Não vos hei de exortar a que confesseis os pecados, senão a que confesseis as confissões. Os escrúpulos que a isto me movem irei discorrendo em um exame particular. Eu farei o exame, para que vós façais a confissão; eu serei o escrupuloso, para que vós sejais os confessados.

Mas como a matéria é tanto das portas a dentro da alma, e poderia parecer temeridade, e querela julgar de fora, direi primeiro qual é a minha tenção em tudo o que disser. Este milagre do diabo mudo fez diferentes efeitos nos ânimos dos pre­sentes. Houve quem louvou, houve quem condenou, e houve quem admirou. Uma mulher devota louvou: Beatus venter qui te portavit. Os escribas e fariseus conde­naram: In Beelzebub, principe daemoniorum ejiciit daemonia. As turbas, a gente do povo, admirou: Et admiratae sunt turbae. A estes últimos me hei de acostar hoje. Não hei de ser dos que louvam, nem hei de ser dos que condenam; só hei de ser dos que admiram. As vossas confissões, vistas a uma luz, parece que têm que louvar; vistas a outra luz, parece que têm que condenar: eu nem as louvarei, nem as conde­narei; somente me admirarei delas. Estas minhas admirações são as que haveis de ouvir. Não será o sermão admirável, mas será admirativo: Et admiratae sunt turbae.


CAPÍTULO  II

As confissões em que o mudo fala e o demônio fica. Há homens que ainda depois de falar continuam mudos, porque falam no que dizem e são mudos no que calam. O pecado e a confissão de Arão.

Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus, et admiratae sunt turbae. Hão de se confessar as confissões, como dizíamos, e as confissões que se hão de confes­sar são aquelas em que o mudo fala e o demônio fica. Mas, como pode ser, falando em termos de confissão, que o demônio fique, se o mudo fala? No material das palavras temos a resposta: Locutus est mutus: falou o mudo. Se ele falou, como lhe chamam mudo? Porque na confissão há homens que ainda depois de falar são mu­dos. Falam pelo que dizem e são mudos pelo que calam; falam pelo que declaram, e são mudos pelo que dissimulam; falam pelo que confessam, e são mudos pelo que negam. Fez o Batista aquela sua famosa confissão, posto que confissão em outro gênero, e diz o evangelista: Confessus est, et non negavit, et confessus est(Jo. I, 20): Confessou, e não negou, e confessou. – Notável duplicação de termos! Se tinha dito que confessou, por que acrescenta que não negou: Confessus est, et non nega-vit? E depois de dizer que confessou e não negou, por que torna a repetir que confes­sou: Confessus est, et non negavit, et confessus est? Não bastava dizer que confes­sou? Não: porque nem todo o confessar é confessar. Quem confessa e nega, não confessa; só confessa quem confessa sem negar. E porque João confessou e não negou, por isso diz o evangelista que confessou: Confessus est, et non negavit, et confessus est. Ah! quantas confissões negadas! Ah! quantas confissões não confes­sadas se absolvem sem absolvição neste sacramento! Virá o dia do Juízo, virá o dia daquele grande cadafalso do mundo: quantos se verão ali confessos e negativos, confessos e diminutos, confessos e não confessos, e por isso condenados?

Admirável coisa é ver muitos pecados como se fazem, e ouvir como se con­fessam! Vistos fora da confissão, e em si mesmos, são pecados e graves pecados; ouvidos na confissão, e com as cores de que ali se revestem, ou não parecem peca­dos, ou parecem virtudes. Seja exemplo, para que nos acomodemos ao lugar, o peca­do e a confissão de um grande ministro.

Trataram os hebreus de ter um Deus, ou um ídolo, que em lugar de Moisés os guiasse pelo deserto. Vão-se ter com Arão, e dizem-lhe: Fac nobis deos, qui nos praecedant (Êx. 32, 1): Arão, fazei-nos um deus, ou uns deuses, que vão diante de nós. – Arão neste tempo era supremo ministro eclesiástico e secular, porque em ausência de Moisés ficara com o governo do povo, e como cabeça espiritual e tem­poral tinha dobrada obrigação de não consentir com os intentos ímpios dos idóla­tras, e de os repreender e castigar como um atrevimento tão sacrílego merecia, e de defender e sustentar a fé, a religião, o culto divino, e quando mais não pudesse, dar a vida, e mil vidas, em sua defesa. Isto é o que Arão tinha obrigação em consciência de fazer. Mas que é o que fez? Ide advertindo as palavras, porque todas importam muito para o caso. Respondeu Arão em conseqüência da proposta daquela gente, que fossem às suas casas, que tirassem as arrecadas das orelhas a suas mulheres, a suas filhas e a seus filhos, conforme o uso da Ásia, e que Ihas trouxessem todas: Tollite maures aureas de uxorum, filiorumque et fïliarum vestrarum, et afferte ad me. Trazidas as arrecadas, tomou-as Arão, derreteu o ouro, e feitas suas formas segundo a arte, fundiu e fez um bezerro: Quas cum Ille accepisset, formavit operefusorio, fecitque ex eis vitulum conflatibilem, – Tanto que apareceu acabada a nova imagem, aclamaram logo todos em presença de Arão, que aquele era o Deus que os tinha livrado do cativeiro do Egito. E por se não mostrar menos religioso, o sacerdo­te supremo: Aedificavit altare coram eo, et praeconis voce clamavit, dicens: Cras solemnitas Domini est: Edificou Arão um altar, pôs sobre ele o ídolo, e mandou lançar pregão por todos os arraiais, que no dia seguinte se celebrava a festa do Senhor, – chamando Senhor ao bezerro. Há ainda mais blasfêmias e mais indignida­des? Ainda. Surgentesque inane, obtulerunt holocausta et hostias pacificas, et sedit populus manducare, et surrexerunt ludere. Amanheceu o dia soleníssimo, fizeram os sacerdotes muitos sacrifícios, seguiram-se aos sacrifícios banquetes e aos ban­quetes festas e danças; tudo em honra e louvor do novo deus. Até aqui, ao pé da letra, a primeira parte da história.

Pergunto agora: E se Arão houvesse de confessar este pecado, parece-vos que tinha bem que confessar? Pois assim aconteceu. Houve de confessar o seu pecado Arão, confessou-o, mas vede como o confessou, que é muito para ver e para apren­der. Desceu Moisés do monte no mesmo ponto em que se estavam fazendo as festas, vê o ídolo, acende-se em zelo, argúi a Arão de todo o sucedido: Quid tibi fecit hic populus, ut induceres super euro peccatum maximum? Que te fez este pobre povo, para o fazeres réu diante de Deus do maior de todos os crimes? – Confessou Arão a sua culpa, e confessou-a por estes termos: Tu nosti populum istum, quod pronus sit ad malum: Vós, senhor, sabeis que este povo é inclinado ao mal. Dixeruntque mihi: Fac nobis deos, qui praecedant nos: Disseram-me que lhes fizesse deuses a quem seguissem. – Agora vai a confissão. Ide-vos lembrando de tudo o que temos dito. - Quibus ego dixi: Quis vestrum habet aurum? Tulerunt, et dederunt mihi, et projeci illud in ignem, egressusque est hic vitulus: Perguntei quem tinha ouro? Foram-no buscar, e trouxeram-mo, e eu lancei-o no fogo, e saiu este bezerro. – Há tal confis­são? Há tal caso no mundo? Vinde cá, Arão; estai a contas comigo diante de Deus. Vós não mandastes a todos estes homens (mandado lhe chama o texto: Fecit popu­lus quae jusserat) vós não mandastes a todos estes homens que fossem buscar as arrecadas de ouro de suas mulheres, de suas filhas e de seus filhos, e que Ihas tiras­sem das orelhas, e vo-las trouxessem? Pois como agora na confissão dizeis que perguntastes somente quem tinha ouro: Dixi illis: Quis vestrum habet aurum? - Mais. Vós não tomastes o ouro, não o derretestes, não o fundistes, não o formastes e fizestes o bezerro: Formavit opere fusorio, fecitque vitulum conflatibilem? Pois como dizeis agora na confissão, que lançastes o ouro no fogo, e que o ídolo se fez a si mesmo, e não vós a ele: Projeci illud in ignem, egressusque est hic vitulus? Mais ainda. Vós não fabricastes o altar? Não pusestes nele o ídolo? Não lhe dedicastes dia santo? Não lhe chamastes Senhor? Não lhe fizestes, ou mandastes fazer sacrifícios, holocaustos, banquetes, jogos, festas? Pois como na confissão agora calais tudo isto, e não se vos ouve uma só palavra em matéria de tanto peso? Eis aqui como dizem os pecados com as confissões, e as confissões com os pecados! E assim con­fessou os seus o maior ministro eclesiástico e secular do povo de Deus.

Falou Arão no que disse, e foi mudo no que calou: Locutus est mutus. Mas notai que se fez grande injúria à pureza da confissão no que calou, muito maior injúria lhe fez no que disse, pelo modo com que o disse: porque no que calou, calou pecados; no que disse, fez de pecados virtudes. Que é que calou Arão? Calou o altar que levantara ao ídolo, a adoração que lhe dera, o nome do Senhor com que o hon­rara, os pregões, o dia solene, as ofertas, os sacrifícios, as festas, e sobretudo, abrir a primeira porta e dar princípio às idolatrias do povo de Israel, que duraram com infinitos castigos por mais de dois mil anos. São boas venialidades estas para se calarem na confissão? Pois isto é o que calou Arão. E que é o que confessou, ou como o confessou? O que confessou foi o seu pecado, mas o modo com que o confessou foi tão diverso que, sendo o maior pecado, parecia a maior virtude. De maneira que se Deus não tivesse revelado a Moisés o que passava, pudera Moisés por esta confissão de Arão, pô-lo no mesmo altar que ele tinha edificado. O que Arão disse a Moisés foram estas palavras formais: Dixi illis: Quis vestrum habet aurum; et tulerunt mihi, et projeci illud in ignem: Pediram-me que lhes fizesse um ídolo; perguntei-lhes se tinham ouro, trouxeram-no, e eu arremessei-o no fogo. - Olhai como referiu a história! Olhai como despintou a ação! Olhai como enfeitou o pecado! Pedir o ouro para fazer o ídolo, e derretê-lo, e fundi-lo, e formá-lo, e expô-lo para ser adorado, isso não era só concorrer para a idolatria, mas ser autor e dog­matista dela. E isto é o que fez Arão. Pelo contrário, pedir o ouro de que o povo cego queria se formasse o ídolo, e arremessá-lo no fogo, era pôr o fogo à idolatria, era abrasá-la, era queimá-la, era fazê-la em pó e em cinza. E isto é o que Arão confessou que fizera. Julgai agora se têm muito que confessar semelhantes confissões, e se são boas para lançar o demônio fora da alma, ou para o meter mais dentro. Falo da confissão de Arão: cada um examine as suas. Se as vossas confissões são como a de Arão, têm muito que condenar; se são como as do Batista, têm muito que louvar. Mas eu nem louvo com Marcela,  nem condeno com os fariseus; admiro-me so­mente com as turbas: Et admiratae sunt turbae.


CAPÍTULO  III

Confessionário geral de um ministro cristão: Quis? Quem sou eu? O escrú­pulo dos cargos. Quantos ofícios tenho? Assim como o sol, o homem não pode presidir a mais de um hemisfério. A Adão foram dados três ofícios, dos quais não soube dar conta. Escrúpulos da alma santa dos Cânticos e de Moisés, grão-minis­tro de Deus e de sua república.

Suposto pois que há confissões que merecem ser confessadas, bem será que desçamos com a nossa admiração a fazer um exame particular delas, para que cada um conheça melhor os defeitos das suas. E para que o exame se acomode ao auditó­rio, não será das consciências de todos os estados, senão só dos que têm o estado à sua conta. Será um confessionário geral de um ministro cristão. Os teólogos morais reduzem ordinariamente este modo de exame a sete títulos: Quis? Quid? Ubi? Qui­bus auxiliis? Cur? Quomodo? Quando?  A mesma ordem seguiremos, eu para maior clareza do discurso, vós para maior firmeza de memória. Deus nos ajude.

Quis? Quem sou eu? Isto se deve perguntar a si mesmo um ministro, ou seja Arão secular, ou seja Arão eclesiástico. Eu sou um desembargador da casa da supli­cação, dos agravos, do paço. Sou um procurador da coroa. Sou um chanceler-mor. Sou um regedor da justiça. Sou um conselheiro de Estado, de guerra, do ultramar, dos três estados. Sou um vedor da fazenda. Sou um presidente da câmara, do paço, da mesa da consciência. Sou um secretário de estado, das mercês, do expediente. Sou um inquisidor. Sou um deputado. Sou um bispo. Sou um governador de um bispado, etc. Bem está: já temos o ofício, mas o meu escrúpulo, ou a minha admira­ção, não está no ofício, senão no um. Tendes um só destes ofícios, ou tendes muitos? Há sujeitos na nossa corte que têm lugar em três e quatro tribunais: que têm quatro, que têm seis, que têm oito, que têm dez ofícios. Este ministro universal não pergunto como vive, nem quando vive. Não pergunto como acode a suas obrigações, nem quando acode a elas? Só pergunto como se confessa? Quando Deus deu forma ao governo do mundo, pôs no céu aqueles dois grandes planetas, o sol c a lua, e deu a cada um deles uma presidência: ao sol, a presidência do dia: Luminare majus, ut praeesset diei; e à lua a presidência da noite: Luminare minus, ut præesset nocti. E por que fez Deus esta repartição? Porventura por que se não queixasse a lua e as estrelas? Não, porque com o sol ninguém tinha competência, nem podia ter justa queixa. Pois, se o sol tão conhecidamente excedia a tudo quanto havia no céu, por que não proveu Deus nele ambas as presidências? Por que lhe não leu ambos os ofícios? Porque ninguém pode fazer bem dois ofícios, ainda que seja o mesmo sol. O mesmo sol, quando alumia um hemisfério, deixa o outro às escuras.E que haja de haver homem com dez hemisférios, e que cuide, ou se cuide, que eu todos pode alumiar? Não vos admiro a capacidade do talento; a da consciência sim.

Dir-me-eis, como doutos que deveis ser, que no mesmo tempo em que Deus deu uma só presidência e um só hemisfério ao sol, deu três presidências e três hemisférios a Adão. Uma presidência no mar, para que governasse os peixes; outra previdência no ar, para que governasse as aves; outra presidência na terra, para que governasse os outros animais: Et praesit piscibus maris, et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae (Gên. I, 26). E o mesmo é governar a animais que governar a homens? E o mesmo é o estado da inocência, em que então estava Adão, e o estado da natureza corrupta e corrup­tíssima em que estamos hoje? Mas quando tudo fora igual, o exemplo nem faz por vós, nem contra mim. Por vós não, porque naquele tempo não havia mais que um homem no mundo, e era força que ele tivesse muitos ofícios. Contra mim não, antes muito por mim, porque Adão com esses ofícios, bem se vê a boa conta que deles deu (Gên. 3, 23). Não eram passadas vinte quatro horas em que Adão servia os três ofícios, quando já tinha perdidos os ofícios, e perdido o mundo, e perdido a si, e perdidos a nós. Se isto aconte­ceu a um homem que saía flamante das mãos de Deus, com justiça original com ciência infusa, que será aos que não são tão justos, nem tão cientes, e aos que têm outros originais e outras infusões? Não era cristão Platão, e mandava na sua república que nenhum oficial pudesse aprender duas artes. E a razão que dava era porque nenhum homem pode fazer bem dois ofícios. Se a capacidade humana é tão limitada que para fazer este barrete são necessários oito homens de artes e ofícios diferentes, um que crie a lã, outro que a tosquie, outro que a carde, outro que a fie, outro que a teça, outro que a tinja, outro que a tose, e outro que a corte e a cosa; se nas cidades bem ordenadas, o oficial que molda o ouro não pode lavrar a prata, se o que lavra a prata não pode bater o ferro, se o que bate o ferro não pode fundir o cobre, se o que funde o cobre não pode moldar o chumbo nem tornear o estanho, no governo dos homens, que são metais com uso de razão, no governo dos homens, que é a arte das artes, como se hão de ajuntar em um só homem, ou se hão de confundir nele, tantos ofícios? Se um mestre com carta de examinação dá má conta de um ofício mecânico, um homem, que muitas vezes não chegou a ser obreiro, como há de dar boa conta de tantos ofícios políticos? E que não faça disto consciência este homem? Que se confesse pela quaresma, e que continue a servir os mesmos ofícios, ou a servir-se deles, depois da Páscoa? Isto me admira!

Em semelhantes obrigações se viu metida uma hora a Alma Santa, mas vede como ela confessou a sua insuficiência, e depôs o seu escrúpulo: Posuerunt ¡me custo­dem in vineis; vineam meam non custodivi: Puseram-me por guarda das vinhas, e eu não guardei a minha vinha (Cânt. I, 6). Pois ao menos, Alma Santa, a vossa vinha, por vossa, por que a não guardaste? Porque a quem entregam muitas vinhas não pode guardar nenhuma, Assim o confessa uma alma que se quer salvar. Confessou a sua insuficiência, e confessa a sua culpa. Se alguém parece que pudera ter desculpa em tal caso, era essa alma, pelo que ela mesma diz: Posuerunt me: Puseram-me. – Ainda quando vos pusessem nesses ofícios, tínheis obrigação de depor os ofícios e confessar os erros. E que será quando vós sois o que vos pusestes neles, o que pretendestes, o que buscas­tes, o que os subornastes, e o que porventura os tirastes a outrem para os pôr em vós? Moisés, aquele grão-ministro de Deus e da sua república, metendo-lhe o mesmo Deus na mão a vara, e mandando-o que fosse libertar o povo, respondeu: Quis ego sum, ut vadam ad pharaonem(Êx. 3, Il): E quem sou eu, Senhor, ou que capacidade há em mim para esta comissão? – Mine quem missurus es (Ex. 4, 14): Mandai a quem vos possa servir como convém. – Oh! ministro verdadeiramente de Deus! Antes de aceitar o cargo, representou a insuficiência, e para que se visse que esta representação era consciência e não cortesia, repugnou uma e outra vez, e não aceitou senão depois que Deus lhe deu Arão por adjunto. Tinha já Moisés muitos anos de governo do povo, muitas cãs e muita experiência; tornou a fazer outra proposta a Deus, e quero referir os termos do memorial, para que se veja quão apertados foram: Non possum solus sustine­re omnem hunc populum (Núm. 11, 14): Eu, Senhor, não posso só com o peso do governo deste povo. – Sin aliter tibi videtur, obsecro, ut interficias me, et inveniam gratiam in oculis tuis: E quando vossa divina majestade não for servido de me aliviar, peço e protesto a vossa divina majestade, me tire a vida, e receberei nisto muito grande mercê. – Não pediu o ofício para toda a vida, nem para muitas vidas, senão que lhe tirasse a vida só para não ter o ofício, e com muita razão, porque melhor é perder o ofício e a vida, que reter o oficio e perder a consciência. E que fez Deus neste caso? Mandou a Moisés que escolhesse setenta anciãos dos mais prudentes e autorizados do povo, e diz o texto que tirou Deus do espírito de Moisés, e repartiu dele por todos os setenta: Auferens de spiritu, qui erat in Moyse, et dans septuaginta viris (Núm. 11, 25). Eis aqui quem era aquele homem que se escusou do ofício. De maneira que um homem que vale por setenta homens, não se atreve a servir um só ofício? E vós, que vos fará Deus muita mercê que sejais um homem, atreveis-vos a servir setenta ofícios? Não louvo, nem condeno: admiro-me com as turbas: Et admiratae sunt turbae.


CAPÍTULO IV

Quid? O quê? O que faz? Que eleições? O escrúpulo das eleições. A predes­tinação e a parábola do profeta Isaías. A confissão de Arão e as conseqüências desastrosas do seu pecado.

Quid? Quê? Depois de o ministro examinar que ministro ou que ministros é, segue-se ver o que faz. Um dia do juízo inteiro era necessário para este exame. Quid? Que sentenças? Que despachos? Que votos? Que consultas? Que eleições? Mas paremos nesta última palavra, que é a de maiores escrúpulos e que envolve comumente todo o quid?

Não me atrevo a falar nesta matéria senão por uma parábola, e ainda esta não há de ser minha, senão do profeta Isaías. Foi um homem ao mato, diz Isaías, ou fosse escultor de ofício, ou imaginário de devoção. Levava o seu machado ou a sua acha às costas, e o seu intento era ir buscar um madeiro para fazer um ídolo. Olhou para os cedros, para as faias, para os pinhos, para os ciprestes, cortou donde lhe pareceu um tronco, e trouxe-o para casa. Partido o tronco em duas partes, ou em dois cepos, a um destes cepos meteu-lhe o machado e a cunha: fendeu-o em achas, fez fogo com elas, e aquentou-se, e cozinhou o que havia de comer, O outro cepo pôs-lhe a regra, lançou-lhe as linhas, desbastou-o, e tomando já o maço e o escopro, já a goiva e o buril, foi-o afeiçoando em forma humana. Alisou-lhe uma testa, rasgou-lhe uns olhos, afilou-lhe um nariz, abriu-lhe uma boca, ondeou-lhe uns cabelos ao rosto, foi-lhe seguindo os ombros, os braços, as mãos, o peito e o resto do corpo até os pés. E feito em tudo uma figura de homem, pô-lo sobre o altar e adorou-o. Pasma Isaías da cegueira deste escultor, e eu também me admiro dos que fazem o que ele fez. Um cepo, conhecido por cepo, feito homem e posto em lugar onde há de ser adorado! Medietatem ejus combussi igni, et de reliquo ejus idolum faciam. Duas metades do mesmo tronco, uma ao fogo, outra ao altar? Se são dois cepos, por que os não haveis de tratar ambos como cepos? Mas que um cepo haja de ter a fortuna de cepo, e vá em achas ao fogo, e que o outro cepo, tão madeiro, tão tronco, tão informe e tão cepo como o outro, o haveis de fazer à força homem, e lhe haveis de dar autoridade, respeito, adoração, divindade? Dir-me-eis que este segundo cepo, que está muito feito e que tem partes. Sim, tem, mas as que vós fizestes nele. Tem boca, porque vós lhe fizestes boca; tem olhos, porque vós lhe fizestes olhos; tem mãos e pés, porque vós lhe fizestes pés e mãos. E se não, dizei-lhe que ande com esses pés, ou que obre com essas mãos, ou que fale com essa boca, ou que veja com esses olhos. Pois se tão cepo é agora como era dantes, por que não vai também este para o fogo! Ou por que não vem também o outro para o altar? Há quem leve à confissão estas desigualda­des! Há quem se confesse dos que fez e dos que desfez? A um queimastes, a outro fizestes, e de ambos deveis restituição igualmente. Ao que queimastes, deveis resti­tuição do mal que lhe fizestes; ao que fizestes, deveis restituição dos males que ele fizer. Fizestes-lhe olhos, não sendo capaz de ver: restituireis os danos das suas ce­gueiras. Fizestes-lhe boca, não sendo capaz de falar; restituireis os danos das suas palavras. Fizestes-lhe mãos, não sendo capaz de obrar; restituireis os danos das suas omissões. Fizestes-lhe cabeça não sendo capaz de juízo; restituireis os danos de seus desgovernos. Eis aqui o encargo de ter feituras. Então prezai-vos de poder fazer e desfazer homens? Quanto melhor fora fazer consciência dos que fizestes e dos que desfizestes! Deus tem duas ações que reservou só para si: criar e predestinar. A ação de criar, já os poderosos a têm tomado a Deus, fazendo criatura; de nada; a de predestinar, também lha vejo tomada neste caso: um para o fogo e outro para o altar. Basta que também haveis de ter precitos e predestinados! Se fostes precitos, não sei de quê, fostes mofino: haveis de arder; se fostes seu predestinado, fostes ditoso: haveis de reinar.

E haverá algum destes onipotentes que se tenha acusado alguma hora deste pe­cado de predestinação? Acusado, não: escusado, sim. E por galante modo. Saiu fulano com tal despacho, saiu fulano com tal mercê. E o que fez a mercê, e o que fez o despa­cho, e o que fez fulano é o mesmo que isto diz, Se vós o fizestes, para que dizeis que saiu? O nosso Arão ao pé da letra. Que fez Arão, e que disse no caso do outro ídolo? O que Arão fez foi que fundiu e forjou, e formou o bezerro?Formavit, jecitque vitulum conflatilem (Êx. 32, 4). E o que o mesmo Arão disse foi que o bezerro saíra: Egressus­que est hic vitulus: Saiu. — Pois se vós o fizestes, e se vós o fundistes, e se vós o forjastes, e vós o limastes, se é certo que vós pedistes o ouro das arrecadas, ou arreca­dastes o ouro que não pedistes, por que dizeis que saiu: Egressus est? Porque assim dizem os que fazem bezerros. São tais as vossas feituras que vos afrontais de dizer que vós as fizestes, Mas já que as negais aos olhos dos homens, por que as não confessastes aos pés de Deus? Pois crede-me que o bezerro de ouro tem muito mais que confessar que ouro e bezerro. E que tem mais que confessar? Os danos particulares e públicos que dali se seguiram. Seguiu-se deste pecado quebrar Moisés as tábuas da lei escrita pela mão de Deus:Projecit de manu tabulas, et confregit eas Seguiu-se ficar o povo pobre e despojado das suas jóias, que eram o preço de quatrocentos anos de serviço seu e de seus antepassados no Egito: Spoliaverat enfim eum Aaron, et nudum constituerat. Seguiu-se morrerem naquele dia à espada a mãos de Moisés e dos levitas, vinte e três mil homens: Cecideruntque in die illa quasi virginti tria milha hominum. Seguiu-se deixar Deus o povo e não o querer acompanhar nem assistir com sua presença, como até ali fizera: Non ascendam tecum, quia populus durae cervicis es. Se­guiu-se querer Deus acabar para sempre o mesmo povo, como sem dúvida fizera se as orações de Moisés não aplacaram sua justa ira: Dimitte me, ut irascatur furor meus, et deleam eos. Seguiu-se finalmente e seguiram-se todos os outros castigos que Deus então lhes ameaçou e reservou para seu tempo, de que em muitas centenas de anos e de horrendas calamidades se não viram livres os hebreus: Ego autem in die ultionis visita bo et hoc peccatum eorum. Que vos parecem as conseqüências daquele pecado? Cui­dais que não há mais que fazer um bezerro? Cuidais que não há mais que entronizar um bruto, ou seja cepo de pau ou cepo de ouro? As mesmas conseqüências se seguem dos indignos que vós fazeis e pondes nos lugares supremos. E se não, olhai para elas. As leis divinas e humanas quebradas, os povos despojados e empobrecidos, as mortes de homens a milhares, uns na guerra por falta de governo, outros na paz por falta de justiça, outros nos hospitais por falta de cuidado, sobretudo a ira de Deus provocada, a assistência de sua proteção desmerecida, as províncias, o reino, e a mesma nação intei­ra arriscada a uma extrema ruína, que se não fora pelas orações de alguns justos, já estivera acabada; mas não estão ainda acabados os castigos. E sobre quem carrega o peso de todas estas conseqüências? Sobre aqueles que fazem e que sustentam os auto­res e causadores delas. Ego feci, ego feram. Vós o fizestes, vós o pagareis. E que com esta carga às costas andem tão leves como andam? Que lhes não pese este peso na consciência? Que os não morda este escrúpulo na alma? Que os não inquiete, que os não assombre, que os não traga fora de si esta conta que hão de dar a Deus? E que sejam cristãos? E que se confessem? Mas não condeno, nem louvo; admiro-me com as tur­bas: Et admiratae sunt turbae.


CAPÍTULO V

Ubi? Onde? Escrúpulo dos que assinalam o onde e dos que o aceitam. Onde põe Portugal seus ministros da fé e dos estados. Quanto mais longe, tanto hão de ser os sujeitos de maior confiança. A parábola dos talentos e a honestidade dos criados nas regiões longínquas. O profeta Habacuc e o escrúpulo dos escolhidos.

Ubi? Onde? Esta circunstância: onde, tem muito que reparar em toda a parte, mas no Reino de Portugal muito mais, porque ainda que os seus ubis, ou os seus ondes, dentro em si podem compreender-se facilmente, os que tem fora de si, são os mais diversos, os mais distantes e os mais dilatados de todas as monarquias do mundo. Tantos reinos, tantas nações, tantas províncias, tantas cidades, tantas fortalezas, tantas igrejas catedrais, tantas particulares na África, na Ásia, na América, onde põe Portugal vice-reis, onde põe gover­nadores, onde põe generais, onde põe capitães, onde põe justiças, onde põe bispos e arcebispos, onde põe todos os outros ministros da fé, da doutrina, das almas. E quanto juízo, quanta verdade, quanta inteireza, quanta consciência é necessária para distribuir bem estes ondes, e para ver onde se põe cada um. Se pondes o cobiçoso onde há ocasião de roubo, e o fraco onde há ocasião de defender, e o infiel onde há ocasião de renegar, e o pobre onde há ocasião de desempobrecer, que há de ser das conquistas e dos que com tanto e tão honrado sangue as ganharam? Oh! que os sujeitos que se põem nestes lugares são pessoas de grande qualidade e de grande autoridade, fidalgos, senhores, títulos! Por isso mais. Os mesmos ecos de uns nomes tão grandes em Portugal, parece que estão dizendo onde se hão de pôr. Um conde? Onde? Onde obre proezas dignas de seus antepas­sados, onde despenda liberalmente o seu com os soldados e beneméritos, onde peleje, onde defenda, onde vença, onde conquiste, onde faça justiça, onde adiante a fé e a cristan­dade, onde se honre a si, e à pátria, e ao príncipe que fez eleição de sua pessoa. E não onde se aproveite e nos arruíne, onde se enriqueça a si e deixe pobre o estado, onde perca as vitórias e venha carregado de despojos. Este há de ser o onde: Ubi?

 E quanto este onde for mais longe, tanto hão de ser os sujeitos de maior confiança e de maiores virtudes. Quem há de governar e mandar três e quatro mil léguas longe do rei, onde em três anos não pode haver recurso de seus procedimentos nem ainda notícias, que verdade, que justiça, que fé, que zelo deve ser o seu! Na parábola dos talentos, diz Cristo que os repartiu o rei: Unicuique secundum propriam virtutem (Mt. 25, 15): A cada um conforme a sua virtude, e que se partiu para outra região, dali muito longe, a tomar posse de um reino: Abiit in regionem longinquam accipere sibi regnum (Le.19,12). Se isto fora história, pudera ter sucedido assim, mas se não era história senão parábola, por que não introduz Cristo ao rei e aos criados dos talentos na mesma terra, senão ao rei em uma região muito longe, e aos criados dos talentos em outra? Porque os criados dos talentos ao longe do rei é que melhor se experimentam, e ao longe do rei é que são mais necessários. Nos Brasis, nas Angolas, nas Goas, nas Malacas, nos Macaus, onde o rei se conhece só por fama e se obedece só por nome, aí são necessários os criados de maior fé e os talentos de maiores virtudes. Se em Portugal, se em Lisboa, onde os olhos do rei se vêem e os brados do rei se ouvem, faltam a sua obrigação homens de grandes obrigações, que será in regionem longinquam? Que será naquelas regiões remotíssimas, onde o rei, onde as leis, onde a justiça, onde a verdade, onde a razão, e onde até o mesmo Deus parece que está longe?

Este é o escrúpulo dos que assinalam o onde; e qual será o dos que o aceitam? Que me mandem onde não convém, culpa será, ou desgraça, de quem me manda; mas que eu não repare aonde vou! Ou eu sei aonde vou, ou o não sei. Se o não sei, como vou onde não sei? E seo sei, como vou onde não posso fazer o que devo? Tudo temos em um profeta, não em profecia, senão em história. Ia o profeta Habacuc com uma cesta de pão no braço, em que levava de comer para os seus segadores, quando lhe sai ao caminho um anjo, e diz-lhe que leve aquele comer a Babilônia, e que o dê a Daniel, que estava no lago dos leões. Que vos parece que responderia o profeta neste caso? Domine, Babylonem non vid et lacem nescio (Dan. 14, 35): Senhor, se eu nunca vi Babilônia, nem sei onde está tal lago; – como hei de levar de comer a Daniel ao lago de Babilônia? Eu digo que o profeta respondeu prudente; vós direis que não respondeu bizarro, e segundo os vossos brios assim é. Se os segadores andaram aqui nas lezírias, e o recado se vos dera a vós, como havíeis de aceitar sem réplica? Como vos havíeis de arrojar ao lago, a Babilônia e aos leões? Avisam-vos para a armada, para capitão-de-mar-e-guerra, para almirante, para ge­neral, e sendo o lagozinho o mar oceano, na costa onde ele é mais soberbo e mais indômi­to, ver como vos arrojais ao lago! Acenam-vos com o governo do Brasil, de Angola, da Índia, com a embaixada de Roma, de Paris, de Inglaterra, de Holanda, e sendo estas as Babilônias das quatro partes do mundo, ver como vos arrojais a Babilônia! Há de se prover a gineta, a bengala, o bastão para as fronteiras mais empenhadas do reino, e sendo a guerra contra os leões de Espanha, tanto valor, tanta ciência, tanto exercício, ver como vos arremessais aos leões! Se vós não vistes o mar mais que no Tejo, se não vistes o mundo mais que no mapa, se não vistes a guerra mais que nos panos de Tunes, como vos arrojais ao governo da guerra, do mar, do mundo?

Mas não é ainda este o mais escandaloso reparo. Habacuc levava no braço a sua cesta de pão, mas ele não reparou no pão nem na cesta: reparou somente na Babilônia e no lago; vós às avessas, na Babilônia e no lago, nenhum reparo; no pão e na cesta, aí está toda a dúvida, toda a dificuldade, toda a demanda. Babilônia, Daniel, lago, leões, tudo isso é mui conforme ao meu espírito, ao meu talento, ao meu valor. Eu irei a Babilônia, eu libertarei a Daniel, eu desqueixarei os leões, se for necessário; não é essa a dificuldade, mas há de ser com as conveniências de minha casa. Não está a dúvida na Babilônia; está a dúvida e a Babilônia na cesta. O pão desta cesta é para os meus segadores; ir e vir a Babilônia, e sustentar a Daniel à custa do meu pão, não é possível nem justo. Os meus segadores estão no campo, a minha casa fica sem mim, Babilônia está daqui tantos centos de léguas, tudo isso se há de compor primeiro; hão-me de dar pão para os segadores, e pão para a minha casa, e pão para a ida, e pão para a volta, e para se acaso lá me comer um leão, que só neste caso se supõe o caso, e por se acaso eu morrer na jornada, esse pão há-me de ficar de juro, e quando menos em três ou quatro vidas. Não é isto assim? O ponto está em encher a cesta e segurar o pão. E o de mais? Suceda o que suceder, confunda-se Babilônia, pereça Daniel, fartem-se os leões, e leve o pecado tudo. Por isso leva tudo o pecado. E quantos pecados vos parece que vão envoltos nesta envolta, de que nem vós, nem outros fazem escrúpulo? Mas, dir-me-eis, se acaso vos quereis salvar: – Pois, padre, como me hei de haver neste caso? – Como se houve o profeta. Primeiro escusar, como se ele escusou, e se não valer a escusa, ir como ele foi. E como foi Habacuc? Tomou-o o anjo pelos cabelos, e pô-lo em Babilônia. Se vos não aproveitar uma e outra escusa, ide, mas com anjo, e pelos cabelos: com anjo que vos guie, que vos encaminhe, que vos alumie, que vos guarde, que vos ensine, que vos tenha mão, e ainda assim muito contra vossa vontade: pelos cabelos. Mas que seria se em vez de ir pelos cabelos fosseis por muito gosto, por muito desejo, e por muita negociação? E em vez de vos levar da mão um anjo, vos levas­sem da mão dois diabos, um da ambição, outro da cobiça? Se estes dois espíritos infernais são os que vos levam a toda a parte onde ides, como não quereis que vos levem ao inferno? E que nestes mesmos caminhos seja uma das alfaias deles o confessor! E que vos confesseis quando ides assim, e quando estais assim, e quando tomais assim! Não quero condenar, nem louvar, porque o prometi; mas não posso deixar de me admirar com as turbas: Et admiratae sont turbae.
 

CAPÍTULO VI


Quibus auxiliis? Com que meios? Três dedos e uma pena, o ofício mais arris­cado do governo humano. A escrita fatal do festim de Baltasar. Os ministros da pena e as parteiras do Egito. O texto obscuro de Davi. Importância dos escribas. Comparação do profeta Malaquias. Etimologia de calamidade. As penas dos qua­tro evangelistas. Os massoretas e a pontuação das Escrituras Sagradas. As arreca­das da Esposa do Cântico dos Cânticos.

Quibus auxiliis? E com que meios se fazem e se conseguem todas estas coisas que temos dito? Com um papel e com muitos papéis: com certidões, com informa­ções, com decretos, com consultas, com despachos, com portarias, com provisões. Não há coisa mais escrupulosa no mundo que papel e pena. Três dedos com uma pena na mão é o ofício mais arriscado que tem o governo humano. Aquela escritura fatal que apareceu a el-rei Baltasar na parede, diz o texto que a formaram uns dedos como de mão de homem: Apparuerunt digiti, quasi manus hominis (Dan. 5, 5). – E estes dedos, quem os movia? Dizem todos os intérpretes, com S. Jerônimo, que os movia um anjo. De maneira que quem escrevia era um anjo, e não tinha de homem mais que três dedos. Tão puro como isto há de ser quem escreve. Três dedos com uma pena podem ter muita mão, por isso não há de ser mais que dedos. Com estes dedos não há de haver mão, não há de haver braço, não há de haver ouvidos, não há de haver boca, não há de haver olhos, não há de haver coração, não há de haver homem: Quasi manus hominis. – Não há de haver mão para a dádiva, nem braço para o poder, nem ouvidos para a lisonja, nem olhos para o respeito, nem boca para a promessa, nem coração para o afeto, nem finalmente há de haver homem, porque não há de haver carne nem sangue. A razão disto é porque, se os dedos não forem muito seguros, com qualquer jeito da pena podem fazer grandes danos.

Quis Faraó destruir e acabar os filhos de Israel no Egito, e que meio tomou para isto? Mandou chamar as parteiras egipcianas, e encomendou-lhes que quando assistis­sem o parto das hebréias, se fosse homem o que nascesse, que lhe torcessem o pescoço e o matassem, sem que ninguém o entendesse. Eis aqui quão ocasionado ofício é o daqueles em cujas mãos nascem os negócios. O parto dos negócios são as resoluções, e aqueles em cujas mãos nascem estes partos, ou seja escrevendo ao tribunal, ou seja escrevendo ao príncipe, são os ministros da pena. E é tal o poder, a ocasião e a sutileza deste ofício, que com um jeito de mão e com um torcer de pena podem dar vida e tirar vida. Com um jeito podemos dar com que vivais, e com outro jeito podemos tirar o com que viveis. Vede se é necessário que tenham muito escrupulosas consciências estas egipcianas quando tanto depende delas a buena dicha dos homens, e não pelas riscas da vossa mão, senão pelos riscos das suas, Si dormiatis inter medios cleros (hoc est inter medias sortes) pennae columbae deargentatae (Sl. 67, 14): Se estais duvidoso da vossa sorte, penas prateadas, diz Davi. O sentido deste texto ainda se não sabe ao certo, mas tomado pelo que soa, terrível coisa é que a boa ou má sorte de uns dependa das penas de outros! E muito mais terrível ainda se essas penas, por algum reflexo, se puderem pratear ou dourar: Pennae columbae deargentate, et posteriora dorsi ejus in pallore auri. Estas penas são as que escrevem as sortes; estas as que as tiram e as que as dão, e talvez a boa aos maus e a má aos bons. Quantos delitos se enfeitam com uma penada! Quantos merecimentos se apagam com uma risca! Quantas famas se escure­cem com um borrão! Para que vejam os que escrevem de quantos danos podem ser causa se a mão não for muito certa, se a pena não for muito aparada, se a tinta não for muito fina, se a regra não for muito direita, se o papel não for muito limpo!

Eu não sei como não treme a mão a todos os ministros de pena, e muito mais àqueles que sobre um joelho, aos pés do rei, recebem os seus oráculos, e os interpretam e estendem. Eles são os que, com um advérbio, podem limitar ou ampliar as fortunas; eles os que, com uma cifra podem adiantar direitos e atrasar preferências; eles os que, com uma palavra, podem dar ou tirar peso à balança da justiça; eles os que, com uma cláusula equívoca ou menos clara, podem deixar duvidoso e em questão o que havia de ser certo e efetivo; eles os que, com meter ou não meter um papel, podem chegar e introduzir a quem quiserem, e desviar e excluir a quem não quiserem; eles, finalmente, os que dão a última forma às resoluções soberanas, de que depende o ser, ou não ser de tudo. Todas as penas, como as ervas, têm a sua virtude; mas as que estão mais chegadas à fonte do poder são as que prevalecem sempre a todas as outras. São por oficio ou artifício, como as penas da águia, das quais dizem os naturais, que postas entre as penas das outras aves, a todas comem e desfazem. Ouçam estas penas pelo que têm de reais, o que delas diz o Espírito Santo: In manu Dei potestas terrae, et utilem rectorem susci­tabit in tempus super illam. ln manu Dei prosperitas hominis, et super fatiem scribae ponet honorem suum.  Escriba, neste lugar, como notam os expositores, significa o ofício daqueles que junto à pessoa do rei escrevem e distribuem os seus decretos. Assim se chama na Escritura Saraias, escriba do rei Davi, e Sobna, escriba del el-rei Ezequias. Diz pois o Espírito Santo: O poder e império dos reis está na mão de Deus, porém a honra de Deus pô-la o mesmo Deus na mão dos que escrevem aos reis: Et super fatiem scribae imponet honorem suam. Pode haver ofício mais para gloriar por uma parte, e mais para tremer por outra? Grande crédito e grande confiança argúi, que nestas mãos e nestas penas ponham os reis a sua honra; mas muito maior crédito e muito maior confiança é que diga o mesmo Deus que põe nelas a sua. Quantas empre­sas de grande honra de Deus puderam estar muito adiantadas, se estas penas, sem as quais se não pode dar passo, as zelaram e assistiram como era justo! E quantas, pelo contrário, se perdem e se sepultam, ou porque falta o zelo e diligência, ou porque sobeja o esquecimento e o descuido, quando não seja talvez a oposição!

Do rei, que logo direi, falava o profeta Malaquias debaixo do nome de Sol de Justiça, quando disse que nas suas penas estava a saúde do mundo: Orietur vobis sol justitiae, et sanitas in pennis ejus Chama penas aos raios do sol, porque assim como o sol, por meio de seus raios alumia, aquenta e vivifica a todas as partes da terra, assim orei, que não pode sair do seu zodíaco, por meio das penas que tem junto a si, dá luz, dá calor, e dá vida a todas as partes da monarquia, ainda que ela se estenda fora de ambos os trópicos, como a do sol e a nossa: Et sanitas in pennis ejus. – Seas suas penas forem sãs e tão puras como os raios do sol, delas nascerá todo o bem e felicidade pública: mas se em vez de serem sãs forem corruptas, e não como raios do sol, senão como raios, elas serão a causa de todas as ruínas e de todas as calamidades. Se pergun­tardes aos gramáticos donde se deriva este nome calamidade: calamitas, responder-vos-ão que de calamo. E que quer dizer calamo? Quer dizer cana e pena, porque as penas antigamente faziam-se de certas canas delgadas. Por sinal que diz Plínio que as melhores do mundo eram as da nossa Lusitânia. Esta derivação ainda é mais certa na política que na gramática. Se as penas de que se serve o rei não forem sãs, destes cálamos se derivarão todas as calamidades públicas, e serão o veneno e enfermidade mortal da monarquia, em vez de serem a saúde dela: Sanitas in pennis ejus.
  
O rei de que fala neste lugar Malaquias é o Rei dos Reis, Cristo,e as penas com que ele deu saúde ao mundo, todos sabemos que são as dos quatro evangelistas, e essas assistidas do Espírito Santo. Para que advirtam os evangelistas dos príncipes a verdade, a pureza, a inteireza que devem imitar as suas penas, e como em tudo se hão de mover pelo impulso soberano, e em nada por afeto próprio. Se as suas escrituras as pomos sobre a cabeça como sagradas, seja cada uma delas um evangelho humano.

Porém se sucedesse alguma vez não ser assim, ou por desatenção das penas maio­res, ou por corrupção das inferiores, de que elas se ajudam, julguem as consciências, sobre que carregam estes escrúpulos, se têm muito que examinar, e muito que ccnfessar, e muito que restituir em negócios e matérias tantas e de tanto peso! Que possa isto suceder, e que tenha já sucedido, o profeta Jeremias o afirma: Vere mendacium operatus est stylus men-dax scribarum. Ou como lê o caldaico: Fecit calamum mendacii ad falsandas scripturas. E suposto que isto não só é possível, mas já foi praticado e visto naquele tempo, bem é que saiba o nosso, quanto bastará para falsificar uma escritura. Bastará mudar um nome? Bastará mudar uma palavra? Bastará mudar uma cifra? Digo que muito menos basta. Não é necessário para falsificar uma escritura mudar nomes, nem palavras, nem cifras, nem ainda letras: basta mudar um ponto ou uma vírgula.

Perguntam os controversistas se assim como nas Sagradas Escrituras são de fé as palavras, serão também de fé os pontos e vírgulas? E respondem que sim, porque os pontos e vírgulas determinam o sentido das palavras, e variados os pontos e vírgulas, também o sentido se varia. Por isso antigamente havia um conselho cha­mado dos massoretas, cujo ofício era conservar incorruptamente em sua pureza a pontuação da Escritura. Esta é a galantaria misteriosa daquele texto dos Cânticos:Murenulas aureas faciemus tibi vermiculatas argento (Cânt. 1, 10). Diz o Esposo divino que fará à sua esposa umas arrecadas de ouro, esmaltadas de prata; – e o esmalte, segundo se tira da raiz hebraica, era de pontos e vírgulas, porque, em lugar de vermiculatas, lêem outros: punctatas, virgulatas argento. Mas s as arrecadas eram de ouro, por que eram os esmaltes de prata, e formados de pontos e vírgulas? Porque as arrecadas são ornamento das orelhas, onde está o sentido da fé: Fides ex auditu  (Rom. 10, 17), e nas palavras de fé, ainda que os pontos e vírgulas pareçam de menos consideração, assim como a prata é de menos preço que o ouro, também pertencem à fé tanto como as mesmas palavras. As palavras, porque formam o sig­nificado; os pontos e vírgulas, porque distinguem e determinam o sentido. Exemplo: Surrexit, non est hic (Mc. 16, 6): Ressuscitou, não está aqui. – Com estas palavras diz o evangelista que Cristo ressuscitou, e com as mesmas palavras, se se mudar a pontuação, pode dizer um herege que Cristo não ressuscitou: Surrexit? Non. Est hic. Ressuscitou? Não. Está aqui. – De maneira que só com trocar pontos e vírgulas, com as mesmas palavras, se diz que Cristo ressuscitou, e é fé, e com as mesmas se diz que Cristo não ressuscitou, e é heresia. Vede quão arriscado ofício o de uma pena na mão. Ofício que, com mudar um ponto ou uma vírgula, da heresia pode fazer fé, e da fé pode fazer heresia. Oh! que escrupuloso ofício!

E se a mudança de um ponto e de uma vírgula pode fazer tantos erros e tantos danos, que seria se se mudassem palavras? Que seria se se diminuíssem palavras? Que seria se se acrescentassem palavras? Torno a dizer: se a mudança de um ponto e de uma vírgula pode ser causa de tantos danos, que seria se se calassem regras? Que seria se faltassem capítulos? Que seria se se sepultassem papéis e informações inteiras? E que seria se, em vez de se presentarem a quem havia de pôr o remédio, se entregassem a quem havia de executar a vingança? Tudo isto pode caber em uma pena, e eu não sei como pode caber em uma confissão. Pois é certo que se confes­sam, e muitas vezes, os que isso fazem, e que não falta quem absolva estas confis­sões, ou quem se queira condenar pelas absolver. Mas eu nem absolvo os confessa­dos, nem condeno os confessores, porque só me admiro com as turbas: Et admiratae sufi turbae.


CAPÍTULO VII

Cur? Por quê? Por dinheiro? O escrúpulo dos motivos. O respeito, pior que o dinheiro. Pilatos e o respeito a César. Os juízes de Samaria e a condenação de Nabot. Pilatos, Judas, e a condenação de Cristo.

Cur? Por quê?. Esta matéria dos porquês era bem larga, mas vai-nos faltando o tempo, ou vou eu sobejando a ele, e assim neste ponto e nos seguintes usarei mais cortesmente da paciência com que ouvis: mas não há confissão sem penitência. Cur? Por quê? De todas estas sem-razões que temos referido ou admirado, quais são as causas? Quais são os motivos? Quais são os porquês? Não há coisa no mundo por que um homem deva ir ao inferno, contudo ninguém vai ao inferno sem seu porquê. Que porquês são logo estes que tanto cegam, que tanto arrastam, que tanto precipi­tam aos maiores homens do mundo? Já vejo que a primeira coisa que acorre a todos é o dinheiro. Cur? Por quê? Por dinheiro que tudo pode, por dinheiro que tudo vence, por dinheiro que tudo acaba. Não nego ao dinheiro os seus poderes, nem quero tirar ao dinheiro os seus escrúpulos; mas o meu não é tão vulgar nem tão grosseiro como este. Não me temo tanto do que se furta, como do que se não furta. Muitos ministros há no mundo, e em Portugal mais que mui os, que por nenhum caso os peitareis com dinheiro. Mas estes mesmos deixam-se peitar da amizade, deixam-se peitar da recomendação, deixam-se peitar da independência, deixam-se peitar do respeito. E não sendo nada disto ouro nem prata, são os porquês de toda a injustiça do mundo. A maior sem justiça que se cometeu no mundo foi a que fez Pilatos a Cristo, condenando à morte a mesma inocência. E qual foi o porquê desta grande injustiça? Peitaram-no? Deram-lhe grandes somas de dinheiro os príncipes dos sacerdotes? Não. Um respeito, uma dependência foi a que condenou a Cristo. Si hunc dimittis, non es amicus Caesaris (Jo. 19, 12): Se não condenais a este, não sois amigo de César. – E por não arriscar a amizade e graça do César, perdeu a graça e amizade de Deus, não reparando em lhe tirar a vida. Isto fez per este respeito Pilatos, e no mesmo tempo: Aqua lavit manus suas (Mt. 27, 24): Pediu água, e lavou as mãos. – Que importa que as mãos de Pilatos estejam lavadas, se a consciência não está limpa? Que importa que o ministro seja limpo de mãos, se não é limpo de respeitos? A maior peita de todas é o respeito.

Se se puser em questão qual tem perdido mais consciências e condenado mais almas, se o respeito, se o dinheiro, eu sempre dissera que o respeito, por duas razões: Primeira, porque as tentações do respeito são mais e maiores que as do dinheiro. São mais, porque o dinheiro é pouco, e os respeitos muitos. São maiores, porque em ânimos generosos mais fácil é desprezar muito dinheiro que cortar por um pequeno respeito. Segunda e principal, porque o que se fez por respeito tem muito mais dificultosa restituição que o que se fez por dinheiro. Na injustiça que se fez ou se vendeu por dinheiro, como dinheiro é coisa que se vê e que se apalpa, o mesmo dinheiro chama pelo escrúpulo, o mesmo dinheiro intercede pela restituição. A luz do diamante dá-vos nos olhos, a cadeia tira por vós, o contador lembra-vos a conta, a lâmina e o quadro peregrino, ainda que sejam figuras mudas, dá brados à consciência; mas no que se fez por respeito, por amizade, por dependência, como estas apreensões são coisas que se não vêem, como são coisas que vos não armam a casa nem se penduram pelas paredes, não tem o escrúpulo tantos despertadores que façam lem­brança à alma. Sobretudo, se eu vendi a justiça por dinheiro, quando quero restituir, se quero, dou o que me deram, pago o que recebi, desembolso o que embolsei, que não é tão dificultoso. Mas se eu vendi a justiça ou a dei de graça pelo respeito, haver de restituir sem ter adquirido, haver de pagar sem ter recebido, haver de desembol­sar sem ter embolsado, oh! que dificuldade tão terrível! Quem restitui o dinheiro, paga com o alheio; quem restitui o respeito, há de pagar com o próprio, e para o tirar de minha casa, para o arrancar de meus filhos, para o sangrar de minhas veias, oh! quanto valor, oh! quanta resolução, oh! quanto poder da graça divina é necessário! Os juízes de Samaria, por respeito de Jesabel, condenaram inocentes a Nabot, e foi-lhe confiscada a vinha para Acab, que a desejava (3 Rs. 21, 1 I ), Assim Acab, como os juízes, deviam restituição da vinha, porque assim ele, como eles, a tinham rouba­da. E a quem era mais fácil esta restituição? A Acab era muito fácil, e aos juízes muito dificultosa, porque Acab restituía a vinha, tendo recebido a vinha, e os juízes haviam de restituir a vinha, não a tendo recebido. Acab restituía tanto por tanto, porque pagava a vinha pela vinha; os juízes restituíam tudo por nada, porque haviam de pagar a vinha por um respeito. Quase estou para vos dizer que, se houverdes de vender a alma, seja antes por dinheiro que por respeitos, porque ainda que o dinheiro se restitui poucas vezes, os respeitos nunca se restituem. Torne Pilatos.

Entregou Pilatos a Cristo, e Judas também o entregou. Pilatos: Tradidit eum voluntati eorum. Judas: Quid vuitis mihi dare, et ego eum vobis tradam? Conheceu Pilatos e confessou a inocência de Cristo, e Judas também a conheceu e confessou. Pilatos: Innocens ego sum a sanguine just hujusi; Judas: Peccavi tradens sanguinem justum. Fez mais alguma coisa Pilatos? Fez mais alguma coisa Judas? Judas sim, Pilatos não. Judas restituiu o dinheiro, lançando-o no Templo; Pilatos não fez restituição alguma. Pois, por que restitui Judas, e por que não restitui Pilatos? Porque Judas entregou a Cristo por dinheiro; Pilatos entregou-o por respeitos. As restituições do dinheiro alguma vez se fazem, as dos respeitos nenhuma. E se não dizei-o vós. Fazem-se nesta corte muitas coisas por respeitos? Não perguntei bem. Faz-se alguma coisa nesta corte que não seja por respeitos! Ou nenhuma, ou muito poucas. E há alguém na vida ou na morte, que faça restituição disto que fez por respeitos? Nem o vemos, nem o ouvimos. Pois como se confessam disto os que o fazem, ou como os absolvem os que os confessam? Se eu estivera no confessionário, eu vos prometo que eu os não houvera de absolver, senão condenar; mas como estou no púlpito, não absolvo nem condeno: admiro-me com as turbas: Et admiratae sunt turbae.


CAPÍTULO VIII

Quomodo? Por que modos? O labirinto mais intrincado da consciência. O morgado de Jacó, os direitos de Esaú e os sete enganos de Rebeca? Davi e a corte de Saul. Falta de escrúpulos de Jacó.

Quomodo? Por que modo ou por que modos? Somos entrados no labirinto mais intrincado das consciências, que são os modos, as traças, as artes, as invenções de negociar, de entremeter, de insinuar, de persuadir, de negar, de anular, de provar, de desviar, de encontrar, de preferir, de prevalecer, finalmente de conseguir para si ou alcançar para outrem, tudo quanto deixamos dito. Para eu me admirar, e nos assom­brarmos todos do artifício e sutileza do engenho ou do engano com que estes modos se fiam, com que estes teares se armam, com que estes enredos se tramam, com que estas negociações se tecem, não nos serão necessárias as teias de Penélope nem as fábulas de Ariadne, porque nas Histórias Sagradas temos uma tal tecedeira, que na casa de um pastor honrado nos mostrará quanto disto se tece na corte mais corte do mundo.

O maior morgado que houve no mundo foi o de Jacó, em que sucedeu Cristo: Regnabit in domo Jacob. Sobre este morgado pleitearam, desde o ventre da mãe, os dois irmãos, Jacó e Esaú. Esaú tinha por si todo o direito, tinha por si a natureza e a idade, tinha por si o talento e o merecimento, tinha por si o favor, o amor, a vontade e o decreto, e a promessa do pai que lhe havia de dar a bênção ou a investi­dura. De maneira que de irmão a irmão, de homem a homem e de favorecido a favorecido, tudo estava da parte de Esaú e contra Jacó. Tinha da sua parte Esaú a idade e a natureza, porque ainda que eram gêmeos e batalharam no ventre da mãe sobre o lugar, Esaú nasceu primeiro. Tinha mais da sua parte Esaú o talento e o valor, porque era forte, robusto, valente, animoso, inclinado ao campo e às armas, e que com a aljava pendente do ombro, e o arco e setas na mão, se fazia temer do leão no monte, do urso e javali no bosque. Pelo contrário, Jacó: Habitabat in tabernaculis nunca saía do estrado da mãe, mais para a almofada que para a lança, mais para as bainhas que para a espada. Finalmente Esaú tinha da sua parte o favor, o amor e o agrado, porque era as delícias da velhice de Isac, seu pai, a quem ele sabia muito bem merecer a vontade, porque quando vinha do campo ou da montaria, com a caça miúda lhe fazia o prato, e da maior enramada lhe dedicava os despojos. Este era Esaú, este era o competidor de Jacó, este era o seu direito, estes eram os seus servi­ços, este era o seu merecimento, estas eram as vantagens com que a natureza e a graça o tinham feito herdeiro sem controvérsia da casa de Isac. E contudo – quem tal cuidara? – Jacó foi o que venceu a demanda, Jacó o que levou a bênção, Jacó o que ficou com o morgado. Pois se o morgado por lei da natureza se deve ao primogênito, e Esaú nasceu primeiro; se o primeiro lugar, por lei da razão, se deve ao de melhor talento, e o talento e valor de Esaú era tão avantajado; se a vantagem e a maioria do prêmio, por lei de justiça, se deve ao maior merecimento, e os serviços de Esaú eram tão conhecidamente maiores e sem competência;  se finalmente a bênção e a inves­tidura do morgado dependia do pai, e o pai era tão afeiçoado a Esaú e lho tinha prometido, e com efeito lho queria dar, como foi possível que prevalecesse Jacó sem direito. Jacó sem talento, Jacó sem serviços, Jacó sem favor? Porque tudo isto pode a traça, a arte, a manha, o engano, o enredo, a negociação.

Naquele mesmo dia tinha determinado Isac dar a bênção a Esaú, e porque esta solenidade havia de ser sobremesa, quis o bom velho, para mais sazonar o gosto, que se lhe fizesse um guisado do que matasse na caça o mesmo filho. Parte ao campo alegre e alvoroçado Esaú, porém Rebeca, que queria o morgado para Jacó, a quem mais amava, aproveitando-se da ausência do irmão e da cegueira do pai,já sabeis oque traçou. Manda a Jacó ao rebanho, vêm cabritos em vez de lebres, da came faz o guisado, das peles guisa o engano, e vestido Jacó das roupas de Esaú, e calçado, que é mais, de mãos também de Esaú, aparece em presença do cego pai, e põe-lhe o prato diante. Perguntou Isac quem era? E respondeu mui bem ensaiado Jacó, que era seu primogênito, Esaú. Admirou-se de que tão depressa pudesse ter achado a caça, e respondeu com singeleza tanta, que fora vontade de Deus. E com estas duas respostas, depois de lhe tentar as mãos, lhe lançou Isac a bênção, e ficou o bendito Jacó com o morgado e casa de seu pai, e Esaú com o que tivesse no cinto. Há tal engano? Há tal fingimento? Há tal crueldade? Pois estes são os modos de negociar e vencer. Sete enganos fingiu Rebeca para tirar a casa a cuja era. Fingiu o nome a Jacó, porque disse que era Esaú. Fingiu-lhe a idade, porque disse que era o primogênito. Fingiu-lhe os vestidos, porque eram os do irmão. Fingiu-lhe as mãos, por­que a pele e o pêlo era das luvas. Fingiu-lhe o guisado, porque era do rebanho, e não do mato. Fingiu a diligência, porque Jacó não tinha ido à caça. E para que nem a suma verdade ficasse fora do fingimento, fingiu que fora vontade de Deus, sendo duas vontades de Rebeca: uma com que queria a Jacó, e outra com que desqueria a Esaú. E com nome fingido, com idade fingida, com vestidos fingidos, com mãos fingidas, com obras e servi­ços fingidos, e até com Deus fingido, se tirou o direito, a justiça, a fazenda, a honra, a sucessão a quem a tinha dado o nascimento uma vez, e o merecimento muitas.

Parece-vos grande sem-razão esta? Tendes muita razão. Mas esta tragédia que uma vez se ensaiou em Hebron, quantas vezes se representa na nossa corte? Quantas vezes com nomes supostos, com merecimentos fingidos, e com abonações falsifica­das, se roubam os prêmios ao benemérito, e triunfa com eles o indigno! Quantas vezes rende mais a Jacó a sua Rebeca, que a Esaú o seu arco? Quantas vezes alcança mais Jacó com as luvas calçadas, que Esaú com as armas nas mãos? Se no ócio da paz se medra mais que nos trabalhos da guerra, quem não há de trocar os sóis da campanha pela sombra destas paredes? Não o experimentou assim Davi, e mais, servia a um rei injusto e inimigo. Davi serviu em palácio e serviu na guerra: em palácio, com a harpa, na guerra, com a funda. E onde lhe foi melhor? Em palácio medrou tão pouco, que da harpa tornou ao cajado; na guerra montou tanto, que da funda subiu à coroa. Se se visse que Davi crescia mais à sombra das paredes de palácio que com o sol da campanha, se se visse que medrava mais lisonjeando as orelhas com a harpa que defendendo e honrando o rei com a funda, se se visse que merecia mais galanteando a Micol que servindo a Saul, não seria uma grande injus­tiça e um escândalo mais que grande? Pois isto é o que padecem os Esaús nas prefe­rências dos Jacós.

Mas eu não me queixo tanto de Jacó e de Rebeca, que fizeram o engano, quanto de Isac que o não desfez depois de conhecido. Que Esaú padeça, Jacó pos­sua, Rebeca triunfe, e que Isac dissimule! Que esteja tão poderosa a arte de furtar bênçãos, que tire Jacó a bênção da algibeira de Esaú, não só depois de prometida e decretada, senão depois de firmada e passada pelas chancelarias! E que haja tanta paciência em Isac, que lhe não troque a bênção em maldição? O mesmo Jacó o temeu assim. Quando a mãe o quis meter nestes enredos, disse ele que temia que seu pai descobrisse o engano, e que em lugar da bênção lhe deitaria alguma maldição: Timeo ne putet me sibi voluisse illudere, et inducam super me maledictionem pro benedictione. Mas Rebeca não fez caso deste reparo porque conhecia bem a Isac, e sabia que não tinha o velho cólera para tanto. Se Isac tivera outro valor, a bênção se restituíra a Esaú, e Rebeca sentira o fingimento, e Jacó amargara o engano. Mas nem Isac era pai para aquele Jacó, nem marido para aquela Rebeca. E que Esaú fique privado do seu morgado para sempre, e que nem Rebeca que lho tira, nem Jacó que lho possui, nem Isac que lho consente, façam escrúpulo deste caso! Doutores há que condenam tudo isto, e outros há que o escusam. Eu não escuso nem condeno; admi­ro-me com as turbas: Et admiratae sunt turbae.


CAPÍTULO IX

Quando? Quando fazem os ministros o que fazem, e quando fazem o que devem fazer? Antigamente estavam os tribunais às portas das cidades: agora estão as cidades às portas dos tribunais. Efeitos terríveis das dilações no atender os requerimentos. Cristo e seu requerimento ao Pai no Horto das Oliveiras. O desen­gano, grande alívio para os não despachados.

Quando? Esta é a última circunstância do nosso exame. E quando acabaria eu se houvera de seguir até o cabo este quando? Quando fazem os ministros o que fazem, e quando fazem o que devem fazer? Quando respondem? Quando deferem? Quando despacham? Quando ouvem? Que até para uma audiência são necessários muitos quan­dos. Se fazer-se hoje o que se pudera fazer ontem, se fazer-se amanhã o que se devera fazer hoje, é matéria em um reino de tantos escrúpulos e de danos muitas vezes irremediáveis, aqueles quandos tão dilatados, aqueles quandos tão desatendidos, aqueles quandos tão eternos, quanto devem inquietar a consciência de quem tiver consciência?

Antigamente, na República Hebréia, e em muitas outras, os tribunais e os ministros estavam às portas das cidades. Isso quer dizer nos Provérbios: Nobilis in portis vir ejus, quando sederi' cum senatoribus terrae.  Para qualificar a nobreza do marido da mulher forte, diz que tinha assento nas portas com os senadores e conselheiros da terra. A isto aludiu também Cristo quando disse da Igreja que fundava em S. Pedro: Portae inferi non praevalebunt adversus cana (Mt. 16, 18): Que as portas do inferno não prevaleceriam contra ela, – entendendo por portas do inferno os conselhos do inferno, porque os conse­lhos, os ministros, os tribunais, tudo costumava estar às portas das cidades, Mas que razão tiveram aqueles legisladores para situarem este lugar aos tribunais, e para porem às portas das cidades os seus ministros? Várias razões apontam os historiadores e políticos, mas a principal, em que todos convêm, era a brevidade do despacho. Vinha o lavrador, vinha o soldado, vinha o estrangeiro com a sua demanda, com a sua pretensão, com o seu reque­rimento, e sem entrar na cidade, voltava respondido no mesmo dia para sua casa. De sorte que estavam tão prontos aqueles ministros, que nem ainda dentro da cidade estavam, para que os requerentes não tivessem o trabalho, nem a despesa, nem a dilação de entrarem dentro. Não saibam os requerentes a diferença daquela era à nossa, para que se não lasti­mem mais. Antigamente estavam os ministros às portas das cidades; agora estão as cida­des às portas dos ministros. Tanto coche, tanta liteira, tanto cavalo, que os de a pé não fazem conto, nem deles se faz conta. As portas, os pátios, as ruas rebentando de gente, e o ministro encantado, sem se saber se está em casa, ou se o há no mundo, sendo necessária muita valia só para alcançar de um criado a revelação deste mistério. Uns batem, outros não se atrevem a bater, todos a esperar, e todos a desesperar. Sai finalmente o ministro quatro horas depois do sol, aparece e desaparece de corrida, olham os requerentes para o céu, e uns para os outros, aparta-se desconsolada a cidade que esperava junta. E quando haverá outro quando? E que vivam e obrem com esta inumanidade homens que se confessam, quando procediam com tanta razão homens sem fé nem sacramentos? Aqueles mi­nistros, ainda quando despachavam mal os seus requerentes, faziam-lhes três mercês: poupavam-lhes o tempo, poupavam-lhes o dinheiro, poupavam-lhes as passadas. Os nos­sos ministros, ainda quando vos despacham bem, fazem-vos os mesmos três danos: o do dinheiro, porque o gastais, o do tempo, porque o perdeis, o das passadas, porque as mul­tiplicais. E estas passadas, e este tempo, e este dinheiro, quem os há de restituir? Quem há de restituir o dinheiro a quem gasta o dinheiro que não tem? Quem há de restituir as passadas a quem dá as passadas que não pode? Quem há de restituir o tempo a quem perde o tempo que havia mister? Oh! tempo tão precioso e tão perdido! Dilata o julgador oito meses a demanda, que se pudera concluir em oito dias; dilata o ministro oito anos o requerimento, que se devera acabar em oito horas. E o sangue do soldado, as lágrimas do órfão, a pobreza da viúva, a aflição, a confusão; a desesperação de tantos miseráveis? Cristo disse que o que se faz a estes, se faz a ele. E em ninguém melhor que nele se podem ver os efeitos terríveis de uma dilação.

Três horas requereu Cristo no horto. Nestas três horas fez três petições sobre a mesma proposta: a nenhuma delas foi respondido. E como o sentiu, ou que lhe sucedeu? Foi tal a sua dor, a sua aflição, a sua agonia, que chegou a suar sangue por todas as veias: Factus est sudor ejes sicut guttae sanguins decurrentis in terram Toda a vida de Cristo em trinta e três anos foi um contínuo exercício de heróica paciência, mas nenhum trabalho lhe fez suar gotas de sangue, senão este de requerer uma, outra e três vezes, sem ser respondido. Se três horas de requerimento sem resposta fazem suar sangue a um Homem-Deus, tantos anos de requerimentos e de repulsas, que efeitos causarão em um homem-homem, e tanto mais quanto for mais homem? O requerimento de Cristo: Pater, si possibile est, suposto o decreto do Padre e a presciência do mesmo Cristo, era de matéria não possível. E se não ser respondido a um impossível custa tanto, não ser respondido no que talvez se faz a todos, quanto lastimará? O que mais se deve sentir nestas desatenções dos que têm ofício de responder, são os danos públicos que delas se seguem. Não estivera melhor a república, que o sangue que se sua no requerimento, se derramara na campanha? Pois isso mesmo sucedeu neste caso. Se Cristo não suara sangue no Horto, havia de derramar mais sangue no Calvário, porque havia de derramar o sangue que derramou, e mais o que tinha suado. Se no requerimento se esgotarem as veias, a quem há de ficar sangue para a batalha? Nem fica sangue, nem fica brio, nem fica gosto, nem fica vontade: tudo aqui se perde. Começou Cristo a orar ou a requerer no Horto, e começou juntamente a quê? A enfastiar-se, a temer, a entristecer-se: Coepit povere, et taedere, contristari, et maestusesse (Mc. 14, 33; Mt, 26, 37). O mesmo acontece na corte ao mais valoroso capitão, ao mais brioso soldado. Vai um soldado servir na guerra, e leva três coisas: leva vontade, leva ânimo, leva alegria. Toma da guerra a requerer, e todas estas três coisas se lhe trocam. A vontade troca-se em fastio: taedere; o ânimo troca-se em temor: pavere: a alegria troca-se em tristeza: et maestus esse. E quem tem a culpa de toda esta mudança, tão danosa ao bem público? As dilações, as suspensões, as irresoluções, o hoje, o amanhã, o outro dia, o nunca dos vossos quandos. E faz consciência destes danos algum dos causadores deles? Pois saibam, ainda que o não queiram saber, e desenganem-se, ainda que se queiram enganar, que a restituição que devem, não é só uma, senão dobrada. Uma restituição ao particular, e outra restituição à república. Ao particular porque serviu, à república porque não terá quem a sirva. Dir-me-eis que não há com que despachar e com que premiar a tantos. Por esta escusa esperava. Primeiramente eles dizem que há para quem quereis, e não há para quem não quereis. Eu não digo isso porque o não creio, mas se não há com que, por que lhe não dizeis que não há? Por que os trazeis suspensos? Por que os trazeis enganados? Por que os trazeis consumidos, e consumindo-se? Esta pergunta não tem resposta, porque ainda que pareça meio de não desconsolar os pretendentes, muito mais os desconsola a dilação e a suspensão, do que os havia de desconsolar o desengano. No mesmo passo o temos.

Estando Cristo na maior aflição do seu requerimento, desceu um anjo do céu a confortá-lo: Apparuit illi angelus de caelo confortons eum (Le. 22, 43). E em que consistiu o conforto, se a resposta foi que bebesse o cálix, contra o que Cristo pedia? Nisso mesmo esteve o conforto, porque ainda que lhe não respondesse com o despa­cho, responderam-lhe com o desengano. Vede quanto melhor é desenganar aos homens que dilatá-los e suspendê-los. A dilação e a suspensão para Cristo era agonia; o desen­gano foi alento. A dilação sem despacho são dois males; o desengano sem dilação é um mal temperado com um bem, porque se me não dais o que peço, ao menos livrais-me do que padeço. Livrais-me da suspensão, livrais-me do cuidado, livrais-me do engano, livrais-me da ausência de minha casa, livrais-me da corte e das despesas dela, livrais-me do nome e das indignidades de requerente, livrais-me do vosso tribunal, livrais-medas vossas escadas, livrais-me dos vossos criados, enfim, livrais-me de vós. E é pouco? Pois se com um desengano dado a tempo, os homens ficam menos queixosos, o gover­no mais reputado, o rei mais amado, e o reino mais bem servido, por que se há de entreter, por que se há de dilatar, por que se não há de desenganar o pobre pretendente, que tanto mais o empobreceis, quanto mais o dilatais? Se não há cabedal de fazenda para o despacho, não haverá um não de três letras para o desengano? Será melhor que ele se desengane depois de perdido, e que seja o vosso engano a causa de se perder? Quereis que se cuide que o sustentais na falsa esperança, porque são mais rendosos os que esperam que os desenganados? Se lhe não podeis dar o que lhe negais, quem lhe há de restituir o que lhe perdeis? Oh! restituições! Oh! consciências! Oh! almas! Oh! exames! Oh! confissões! Seja a última admiração esta, pois não louvo nem condeno, e só me admiro com as turbas: Et admiratae sunt turbae.


CAPÍTULO X

Confessar as confissões é dobrar o remédio sobre si mesmo. Como fazê-lo bem? Com tempo suficiente e confessor douto, timorato e de valor.

De todo este discurso se colhe, se eu me não engano, com evidência, que há muitos escrúpulos no mundo de que se faz pouco escrúpulo, que há confissões em que fala o mudo e não sai o demônio, e que, suposta a obrigação de se confessarem todos os pecados, se devem também confessar estas confissões. Grande mal é não sarar com os remédios; mas adoecer dos remédios ainda é mal maior. E quando se adoece dos remédios, que remédio? O remédio é curar-se um homem dos remédios, assim como se cura das enfermidades. Este é o caso em que estamos. O remédio do pecado é a confissão, mas se as minhas confissões, em lugar de me tirarem os peca­dos, por minha desgraça mos acrescentam mais, não há outro remédio senão dobrar o remédio sobre si mesmo e confessar as confissões, assim como se confessam os pecados. Daqueles que tornam a recair nos pecados passados, dizia Tertuliano, que faziam penitência da penitência e que se arrependiam do arrependimento. Se os maus se arrependem dos arrependimentos, os que devem e querem ser bons, por que se não confessarão das confissões? Uns o devem fazer pela certeza, outros o deverão fazer pela dúvida, e todos é bem que o façam pela maior segurança.

Para que esta confissão das confissões saia tal que não seja necessário tornar a ser confessada, devemos seguir em tudo o exemplo presente de Cristo na expulsão deste diabo mudo, Primeiramente: Erat ejiciens (Le. 11, 14). Todos os outros milagres fazia-os Cristo em um instante: este de lançar fora o demônio, não o fez em instante nem com essa pressa, senão devagar e em tempo. É necessário primeiro que tudo a quem houver de reconfessar as suas confissões, tomar tempo competente, livre e desembargado de todos os outros cuidados, para o ocupar só neste, pois é o maior de todos. Cum accepero tempus, ego justitias judicabo (Sl. 74, 3): Eu tomarei tempo, diz Deus, para julgar as justiças. – Se Deus, para examinar e julgar as consciências dos que governam, diz que há de tomar tempo, como poderão os mesmos que governam julgar as suas consciências e examinar os seus exames, se não tomarem tempo para isto? Dirá algum que é tão ocupado que não tem este tempo. E há tempo para o jogo? E há tempo para a quinta? E há tempo para a conver­sação? E há tempo, e tantos tempos, para outros divertimentos de tão pouca importância, e só para a confissão não há tempo? Se não houver outro tempo, tome-se o do ofício, tome-se o do tribunal, tome-se o do concelho. O tempo que se toma para fazer melhor o ofício não se tira do ofício. Mas para acurtar de razões, pergunto: Se agora vos dera a febre maligna, como pode dar, havíeis de cortar por tudo para acudir à vossa alma, para tratar de vossa consciência? Sim. Pois o que havia de fazer a febre, por que o não fará a razão? O que havia de fazer o medo e a falsa contrição na enfermidade, por que o não fará a verda­deira resolução na saúde?

Tomado o tempo, e tomado a qualquer força e qualquer preço, segue-se a eleição do confessor. Quem aqui obrou o milagre foi Cristo: Erat Jesus ejiciens daemonium (Le. 11, 14). O confessor está em lugar de Cristo, e quem há de estarem lugar de Deus-homem, é necessário que seja muito homem e que tenha muito de Deus. Non confundaris confiteri peccata, et ne subjicias te omni bomini pro pecca to. Não vos corrais de confessar os vossos pecados, diz o Espírito Santo, mas adverti que na confissão deles não vos sujeiteis a qualquer homem. – Se a saúde do corpo, que alfim é mortal e há de acabar, a não fiais de qualquer médico, a saúde da alma, de que depende a eternidade, por que a haveis de fiar de qualquer confessor? Indouto, claro está que não deve ser; mas não basta só que seja douto, senão douto e timorato. Confessor que saiba guiar a vossa alma e que tema perder a sua. Confes­sou Judas o seu pecado aos príncipes dos sacerdotes: Peccavi tradens sanguinem justum (Mt. 27, 4). E eles, que lhe responderam? Quid ad nos? Tu videris: E a nós que se nos dá disto? Lá te avém. – Vede que sacerdotes, que nem se lhes dava da sua consciência, nem da do penitente que se lhes ia confessar! Haveis de escolher con­fessor que se lhe dê tanto da vossa consciência como da sua. E basta que seja douto e timorato? Não basta. Há de ser douto e timorato, e de valor. É tal a fraqueza humana, que até no tribunal de Cristo se olha para os grandes como grandes, e se lhes guardam respeitos, quando se lhes não faça lisonja. Andando Filipe II à caça, foi-lhe necessário sangrar-se logo, e chamaram o sangrador de uma aldeia, porque não havia outro. Perguntou-lhe o rei se sabia a quem havia de sangrar. Respondeu: Sim: a um homem. – Estimou o grande rei este homem como merecia, e serviu-se dele dali em diante. Com semelhantes homens se hão de curar no corpo e na alma os grandes homens. Com homens que sangrem a um rei como a um homem.

Posto aos pés deste homem, e nele aos pés de Deus, fale o mudo com tal verdade, com tal inteireza e com tal distinção do que confessou ou não confessou, dos propósitos que teve ou não teve, da satisfação que fez ou deixou de fazer, quede uma vez, e por uma vez acabe de sair o demônio fora. E seja com tão viva detestação de todos os pecados passados, com tão firme resolução da emenda de todos eles e com tão verdadeira e íntima dor de haver ofendido a um Deus infinitamente amável e sobre todas as coisas amado, que não só saia o demônio para sempre, e para nunca mais tornar, mas que já esteja lançado da alma quando falar o mudo: Et cum ejecisset daemonium, locutus est mutus.


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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Terceira Dominga da Quaresma na Capela Real" (1655)

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