quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Oitava de Páscoa"

SERMÃO DA PRIMEIRA OITAVA DE PÁSCOA

Na Matriz da Cidade de Belém, no Grão-Pará: Ano de 1656.

Na ocasião em que chegou a nova de se ter desvanecido a esperança das minas, que com grandes  empenhos se tinham ido descobrir.

Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambulantes, et estis tristes? Nos autem sperabamus  quia ipse esset redempturus Israel.


CAPÍTULO I

A tragédia dos dois primeiros atos da famosa comédia de Páscoa. As lágrimas da Madalena, a tristeza  dos discípulos de Emaús e o malogro da expedição em busca das minas. Assuntos do sermão: Muito  melhor foi não se descobrirem as minas esperadas, que descobrirem-se; em lugar das minas incertas,  que se não descobriram, descobrirá Deus outras certas, e muito mais ricas. Em um dia tão alegre  como o de Páscoa, em que, pela gloriosa Ressurreição de Cristo, Redentor nosso, se revogou com a  mesma glória a antiga sentença de morte fulminada contra Adão e Eva, digna coisa de admirar é que  nem nas filhas de Eva, nem nos filhos de Adão, se achem efeitos de alegria. Amanheceu o sol neste formoso dia mais arraiado que nunca, acrescentando tantos raios a seus naturais resplendores, quantos  tinha eclipsado e escondido no dia da Paixão: e que é o que achou no mundo o mesmo sol, ou quando  nasceu no Oriente, ou quando se foi pôr no Ocaso? Quando nasceu achou a terra orvalhada das  lágrimas da Madalena, como se ela fora a aurora daquele dia: Mulier, quid ploras?

E quando se ia pôr, achou a tristeza dos dois discípulos de Emaús: Et estis tristes – como se neles  se multiplicara, coberta de sombras, a estrela da tarde, ou Vésper: Quoniam advesperascit. Tão  trágicos como isto foram os dois primeiros atos ou aparências desta famosa comédia!

Para eu vos declarar quão naturais fossem as causas de um e outro sentimento, não me é necessário ir  buscar o exemplo mais longe, pois a fortuna nestes mesmos dias vo-lo trouxe a casa. Não é grande  desconsolação buscar, e não achar? Pois essa era a desconsolação da Madalena e das outras Marias:  Non invento corpore ejus. Não é bastante motivo de tristeza esperar, e não suceder o que se  esperava? Pois essa era a causa por que os dois discípulos iam tristes: Non autem sperabamus.  Enquanto os cuidados e esperanças se põem na terra, não podem faltar desconsolações e tristezas à  terra. As Marias desconsoladas, porque não acharam o que buscavam debaixo da terra: Veniunt ad  monumentum – e os discípulos tristes, porque lhes não sucedeu o que esperavam para remédio da  sua terra: Quia ipse esset redempturus Israel.

Tais considero, senhores, nesta ocasião, ou tais são, ainda que se não considerem, as causas que  parece nos fizeram menos alegres estas páscoas, as quais eu desejo a todos, e para todos peço a Deus  tão liberais dos bens do céu, e também dos que não são do céu, quando o mesmo Senhor sabe que nos  convém. Foram-se buscar debaixo da terra as minas de ouro ou prata, e, não se tendo achado depois  de tanto trabalho, assim como as Marias se desconsolaram de verem malogradas as suas diligências,  as suas prevenções, e ainda as suas despesas: Emerunt aromata  – assim confesso vos pode  desconsolar o muito que nesta infeliz jornada se tem gasto de tempo, de cuidado e de fazenda. E  assim como os discípulos iam tristes por ver baldadas e perdidas as esperanças, com que desejavam  ver melhorada a sua pátria e restaurado o seu reino: Quia ipse esset redempturus  –  Israel,  assim vos  concedo que é para entristecer e sentir não se ter conseguido a opulência própria, e da monarquia, quedas mesmas minas desvanecidas, com tanto boato se esperavam. É, contudo, tão bom consolador  Cristo, e tão apressado, que na mesma manhã enxugou as lágrimas das Marias, e na mesma tarde  serenou a tristeza dos discípulos, como eu também determino aliviar a vossa hoje.

Resumindo-se, pois, à história do Evangelho, que, sendo sucedida ontem, reservou a Igreja para este  segundo dia, dois afetos ou duas paixões naturais do ânimo consolou ou curou Cristo, Senhor nosso,  nos dois discípulos de Emaús: a tristeza declarada e a esperança perdida: a tristeza declarada: Et estis  tristes; a esperança perdida: Nos autem sperabamus. E sendo estes os mesmos dois afetos com que os  corações da nossa cidade se acham menos quietos e satisfeitos, assim como o Senhor, mostrando-se  vivo aos discípulos, sepultou a sua tristeza e ressuscitou a sua esperança, assim eu, para consolar uma  e alentar outra, vos mostrarei vivamente duas verdades. A primeira, que muito melhor vos esteve não  se descobrirem as minas esperadas que descobrirem-se. A segunda que, em lugar das minas incertas,  que se não descobriram, vos descobrirá Deus outras certas, e muito mais ricas. Ambos estes assuntos  parecem temporais, como também eram por causas temporais a tristeza e desesperação dos dois  discípulos à ida; mas nem por serem temporais deixou de as consolar o divino Mestre, para as  converter a elas e a eles em espirituais, como tornaram à volta. O mesmo pretendo eu com a graça do  céu, que me ajudareis a alcançar: Ave Maria.


CAPÍTULO  II

Nos autem sperabamus: Esperávamos de ter minas, e estamos desenganados de que as não há. Muitas   vezes está a nossa perdição em sucederem as coisas como esperamos. Maldição de Jó à noite. O ouro  e a prata as mais das vezes são como os dois cabritinhos de Jacó, com que enganou ao pai cego para  levar a benção de Esaú.

Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambalantes, et estis tristes?

Que práticas são estas que ides conferindo entre vós, e de que estais tristes? Esta foi a pergunta que fez Cristo, Redentor nosso, aos dois discípulos que iam de Jerusalém para Emaús. E se eu fizesse a   mesma no nosso Belém, e perguntasse às vossas conversações por que estais tristes, é certo que me  havíeis de responder como eles responderam: Nos autem sperabamus: Esperávamos de ter minas, e  estamos desenganados de que as não há, ou esperávamos que se descobrissem, e não se descobriram.  E se eu instasse mais em querer saber o discurso ou conseqüência com que sobre este desengano  fundais a vossa tristeza, também é certo havíeis de dizer, como eles disseram, que no sucesso que se  desejava e supunha, estavam livradas as esperanças da redenção, não só desta vossa cidade, e de todo  o Estado, senão também do mesmo Reino: Nos autem sperabamus quia ipse esset redempturus Israel.  Ora, ouvi-me atentamente, e contra o que imagináveis, e porventura ainda imaginais  – vereis como  nesta, que vós tendes por desgraça, consistiu a vossa redenção, e de quantos trabalhos, infortúnios e  cativeiros vos reuniu e vos livrou Deus em não suceder o que esperáveis.

Primeiramente, havemos de supor que muitas vezes está a nossa perdição em sucederem as coisas  como esperamos, e, pelo contrário, está o nosso remédio e a nossa conservação em não terem o  sucesso que se pretendia. Em uma maldição muito encarecida de Jó, temos o mais claro e mais  notável espelho que se pode imaginar desta verdade: Pereat nox, in qua dictum est: Conceptus est  homo! Expectet lucem, et non videat, nec ortum surgentis aurorae (Jó 3, 3. 9): Maldita seja a noite em  que fui concebido – diz Jó; espere pela luz, e nunca amanheça; espere pela aurora, e nunca venha. Parecer-vos-á  – como pareceu a quem o disse que esta era a maior desgraça que podia suceder à  noite, e a maior praga que se lhe podia rogar, mas, bem considerando o caso, não era senão a maior   dita e a maior ventura. O maior inimigo que tem a noite é a aurora: enquanto não amanhece,  conserva-se e persevera a noite; tanto que amanheceu, ficou acabada e perdida. Logo, aquela que  parecia maldição não era maldição, antes era o maior bem, a maior felicidade que se podia desejar e  imprecar à noite, porque, se a noite esperasse pela manhã, em lhe suceder, como esperava, estava a sua perdição e o seu fim, e em lhe não suceder, como esperava, estava a sua conservação, o seu  aumento e o seu ser.

O mesmo digo, senhores, da esperança das vossas minas, a qual eu nunca tive por bem fundada, e,  perguntado, assim o disse. Lá se mostrou ouro e prata, mas estes dois metais as mais das vezes são  como os dois cabritinhos de Jacó, com que enganou ao pai cego para levar a bênção de Esaú.  Disse Jacó que o guisado que presentava ao pai era da caça, e ele não era do mato, senão do rebanho.  Assim é o ouro e prata que lá levam: dizem que foi cavado da beta, e ele é fundido da bolsa. Por isso  as minas não são minas para quem faz as despesas, e só são minas, como a bênção de Jacó, para os  mesmos que as fingiram, e vêm ricos de mercês e salários, e cheios de jurisdições e onipotência, com  que se fazem mais ricos. Mas, ou se não descobrissem as minas, porque as não há, ou porque,  havendo-as, não quis Deus que se descobrissem, vede de quantos perigos e trabalhos vos remiu e  livrou a misericórdia e providência divina em não suceder este descobrimento como esperáveis!


CAPÍTULO III

O que sucede ao campo que esconde tesouros. Em que param as amizades, as pazes e as  confederações em havendo descobrimento de tesouros. Conselho das nações de Gog e Magog contra os hebreus. Advertência de Jeremias. Os tesouros de Ezequias e a cobiça dos babilônios. As minas de  ouro e prata de Espanha e a conquista romana.

E para que comecemos pelos perigos que podem vir de fora e de mais longe, se este Estado, sem ter  minas, foi já tão requestado e perseguido de armas e invasões estrangeiras, que seria se tivesse esses  tesouros? Lá traz Cristo, Senhor nosso, a comparação de um campo, que era cultivado somente na  superfície da terra, fértil de flores e frutos, porém, sabendo um homem, acaso, que no mesmo campo  estava enterrado e escondido um tesouro: Thesauro abscondito in apro (Mt 13, 44) – o que fez com  todo o segredo e diligência foi ir logo comprar o campo a todo custo, e deste modo ficou senhor, não  do campo por amor do campo, senão do campo por amor do tesouro. De sorte que toda a desgraça do  campo em mudar de senhorio, e passar de um dono a outro dono, esteve em ter tesouro dentro em si, e  saber-se que o tinha. Contentemo-nos de que nos dêem os nossos campos pacificamente o que a  agricultura colhe da superfície da terra, e não lhes desejemos tesouros escondidos nas entranhas, que  espertem a cobiça alheia, principalmente quando os mesmos campos não estão cercados de tão fortes  muros que lhe possam facilmente defender entrada.

Conta a Sagrada Escritura, no capítulo trinta e oito de Ezequiel – ou seja história do passado, ou  profecia do futuro que, sabendo as nações de Gog e Magog que os hebreus viviam ricos e  descansados nas suas terras, fizeram conselho entre si de os irem conquistar, fundando esta  deliberação em dois motivos: o primeiro, que tinham ouro e prata; o segundo, que não tinham muros.  Um motivo os excitou à conquista, e outro lha facilitou. O que os excitou foi o ouro e a prata: Ecce ad  diripiendam praedam congregasti multitudinem tuam, ut tollas argentum et aurum  – e o que os  facilitou foi serem terras habitadas, sem muros nem fortificações: Ascendam ad terram absque muro;  vectes, et portae non sunt eis. E terras que têm ouro e prata, e não têm muros fortes que as  defendam, naturalmente estão expostas à cobiça e invasão dos inimigos, porque o ouro e a prata que  têm, excita a cobiça, e os muros e fortificações que não têm, facilitam a invasão.

É verdade que os hebreus naquele tempo estavam muito seguros com a paz das outras nações, e já  livres de suas armas: Ad terram, quae reversa est a gladio ad quiescentes, habitantesque secure.  Mas esta segurança é muito enganosa. Onde há nova ocasião de interesse, não há confederação que  dure. Ouvi um dito notável de Jeremias: Nunquid foederabitur ferram ferro ab aquilone, et aes (Jer 15,  12)? Cuidais que o ferro do norte – do norte diz nomeadamente: ab aquilone  – cuidais que o ferro do   norte se pode confederar com outro ferro, e o seu bronze com outro bronze? Enganais-vos  – diz o  profeta àqueles com quem falava  – e o mesmo vos certifico eu, sem ser profeta. Livrou-vos Deus da  prata, porque vos quis livrar do ferro. A arte, com a prata, liga os outros metais; e a cobiça, com a  prata, desfaz e rompe todas as ligas.

Confederados estavam os israelitas com os babilônios, e era tanta a amizade e boa correspondência  entre um e outro rei, que Baradac, rei de Babilônia, soberbíssimo e potentíssimo, sabendo que  Ezequias, rei de Israel, tinha convalescido daquela grave enfermidade em que esteve à morte, lhe  mandou embaixadores com grandes presentes a lhe dar o parabém da saúde. Quis-se mostrar  agradecido Ezequias, e, em sinal de benevolência e confiança, levou os mesmos embaixadores ao  mais secreto do seu palácio, e ali lhes descobriu e manifestou todos os seus tesouros. Ele e eles  ficaram mui satisfeitos; mas não eram passadas vinte e quatro horas, quando Deus mandou anunciar a  Ezequias as perigosas e tristes conseqüências daquele descobrimento: Ecce dies venient, et auferentur  omnia, quae in domo tua sunt, et quae thesaurizaverunt patres tui usque ad diem hanc, in Babylonem;  non relinquetur quidquam, dicit Dominus. Et de filiis qui exibunt de te, quos genueris, tollent, et erunt  eunuchi in palatio regis Babylonis (Is 39, s): E vós, Ezequias, fostes tão inconsiderado, que  manifestastes os vossos tesouros aos embaixadores de Babilônia? Pois sabei, diz Deus, que os  babilônios os virão buscar, e não só se farão senhores dos mesmos tesouros, sem deles deixar coisa  alguma, senão que até a vossos próprios filhos cativarão e levarão presos a Babilônia, para lá se  servirem deles.-Eis aqui em que param as amizades, as pazes e as confederações, em havendo   descobrimento de tesouros. Dai graças a Deus de se frustrarem as vossas esperanças, e não lhe sejais  ingratos com vos entristecer, pois assim vos quis livrar de tamanhos perigos.

Se em Espanha não houvera minas de ouro e prata das quais, diz Estrabo, que eram as mais ricas do  mundo – nunca os romanos iriam a lhe fazer guerra de tão longe, nem com tanto empenho e  pertinácia. Assim o dá a entender a mesma Escritura Sagrada no primeiro livro dos Macabeus,  referindo as conquistas dos romanos e a fama das suas vitórias: Et quanta fecerunt in regione  Hispaniae, et quod in potestatem redegerunt metalla argenti et auri, quae illic sunt. Não diz que  conquistaram os homens, senão as minas, porque as minas foram o motivo da guerra e da conquista.  Como a gente de Espanha era tanta, tão remota e tão forte, gastou a potência romana na pertinência  desta conquista duzentos e trinta e cinco anos – vede se serão cá necessários tantos! – até que  finalmente a terra, as minas e os moradores, ficaram todos sujeitos ao jugo e domínio estranho,  presidiados de suas legiões, tributários à sua cobiça, governados e oprimidos da sua tirania, e o  mesmo ouro e prata – que, como diz o Espírito Santo, muitas vezes é redenção do homem – para eles  foi a causa da servidão, e o reclamo que chamou de tão longe e lhes meteu em casa o cativeiro.  


CAPÍTULO  IV

Um dos maiores castigos que Deus podia dar ao Maranhão era descobrirem-se nele minas. Quais são  os escondidos de Deus, de que fala Davi? As minas e seus descobrimentos são castigos escondidos  debaixo de aparências contrárias. As minas do Cabo de S. Vicente, o promontório sagrado, sepulcro  de Tubal e de Hércules.

Mas, dado que as minas tão esperadas e apetecidas não tivessem, por conseqüência de sua fama, estes  perigos de fora, bastava a consideração dos trabalhos e misérias domésticas, que com elas se vos  haviam de levantar de debaixo dos pés, para que o vosso juízo, se o tivésseis, tratasse antes de  sepultar as mesmas minas depois de achadas, que procurar de as desenterrar e descobrir, ainda que  foram muito certas. Um dos maiores castigos que Deus podia dar a esta cidade, e a este Estado, era  descobrirem-se nele minas. E não sou eu o que o digo, senão a prudência e verdade de quem se não  podia enganar.

No Salmo dezesseis pede Davi a Deus lhe faça justiça, e dê a seus inimigos o castigo que merecem,  pela desumanidade de feras com que perseguiam sua inocência. E, depois de dizer que Deus tinha  ouvido sua petição, profetiza o castigo que o justo Juiz havia de dar aos mesmos inimigos; e como se  já lhos tivera dado, refere-o assim em poucas palavras: De absconditis tuis adimpletus est venter  eorum (Sl 16, 14): Fartastes, Senhor, a sua fome, com os encher dos vossos escondidos. Entram  agora os intérpretes a examinar quais são os escondidos de Deus. E o sentido mais próprio e mais  literal, com Símaco e outros, é que os escondidos de Deus são as minas de ouro e prata. O ouro e a  prata tem-nos Deus escondidos lá no profundo da terra, onde os criou, e quando o mesmo Senhor é  servido que se descubram as minas, então aparecem e se manifestam estes escondidos de Deus: De  absconditis tuis. Mas se Davi tinha pedido a Deus que lhe fizesse justiça, e castigasse a seus   inimigos, e o mesmo Deus lhe tinha prometido de o fazer assim e de os castigar, como diz que lhes há  de descobrir o ouro e a prata que tem escondidos nas minas, e os há de fartar delas: De absconditis tuis adimpletus est venter eorum? Mais apertadamente ainda. Neste salmo, que todo é profético,  assim como na pessoa de Davi é figurado Cristo, assim nas perseguições de Davi são significadas a  crueldade e ingratidão com que Cristo foi tratado em vida por seus inimigos, e as maldades e pecados  com que ainda hoje é desacatado e ofendido. Pois, em prêmio dessas ofensas, dessas maldades e  desses pecados descobre Deus os seus tesouros que tem escondidos debaixo da terra, e enche e farta  de ouro e prata aos que estão famintos de minas? Sim, porque essas minas que tanto se desejam e  estimam, ordinariamente não as descobre, nem as dá Deus por merecimentos, senão em castigo de  grandes pecados. Ouvi o comento de todos os padres gregos sobre o mesmo texto, divididos em duas  opiniões, mas ambas concordes no que tenho dito: Illud autem de absconditis, alii quidem  intellexerunt de suppliciis, alii vero de fussilibus metallis: Aqueles que o profeta chama os  escondidos de Deus, uns dos santos padres entenderam que significam castigos, e outros que  significam minas – e uns e outros não discrepam, mas concordam admiravelmente na mesma  diferença de um e outro sentido. Por quê? Porque as minas, quando Deus as descobre, são castigos; e  um dos maiores castigos que Deus dá por pecados é o descobrimento de minas: De metallis fussilibus,  de supliciis.

E notai a misteriosa propriedade com que este gênero de castigos se chamam também os escondidos  de Deus: De absconditis tuis  – porque Deus umas vezes castiga com castigos manifestos, e outras  vezes com castigos escondidos. Os castigos manifestos são os que todos temem e reconhecem por  castigos, como são as fomes, as pestes, as guerras, e outras calamidades temporais; os castigos escondidos e ocultos são aqueles que não se reputam nem temem como tais, antes se estimam e desejam como felicidades e boas fortunas: e deste gênero são as minas e seus descobrimentos. São  castigos escondidos debaixo de aparências contrárias, porque se apetecem, estimam e festejam  enganosa e enganadamente, sendo certo que debaixo do preço e esplendor do ouro e prata se ocultam e escondem grandes trabalhos, aflições e misérias, com que a justiça divina, por pecados, quer  castigar e açoitar as mesmas terras onde as veias destes metais se descobrem. Deus tanto pode açoitar  com varas de ferro, como com varas de ouro e de prata; antes estes açoites são muito mais pesados,  quanto a prata e ouro pesam mais que o ferro.

Aquela ponta de terra montuosa, que hoje chamamos Cabo de S. Vicente, antigamente se chamava  Promontório Sagrado, por estar ali o sepulcro de Tubal, primeiro pai da nossa nação, e também o de  Hércules, um dos mais famosos e amados reis da Lusitânia. Havia minas neste promontório, as quais,  por causa da mesma veneração, também era vedado cavarem-se; e dizem as histórias daquele tempo  que só em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do ouro e da prata das ditas minas.  Mas qual era este caso? Coisa verdadeiramente admirável, e muito digna de se notar. O caso era  quando caía do céu algum raio que penetrasse a terra, e descobrisse os preciosos metais que nela  estavam escondidos. De sorte que naquela terra, também nossa, o abrirem-se minas e o caírem raios  do céu, tudo vinha junto, como se o céu nos pregara que o descobrimento de minas na terra não são  felicidades e boas fortunas, como se imagina, senão execuções da ira de Deus, e castigos do céu.


CAPÍTULO V

Os martírios e horrores das minas de Potosi. Os anacoretas das minas de ouro e prata. Quais haviam  de ser enterrados vivos naquelas furnas caso se descobrissem as minas? A pior de todas as ameaças:  os ministros reais e quantos oficiais de justiça, de fazenda e de guerra que viriam, mandados ao Maranhão, para extração, segurança e remessa do ouro e da prata.

E para que vos não pareça que são isto encarecimentos lenitivos, inventados para divertir a tristeza, e   ar espécie à consolação, troquemos este ouro e prata em miúdos, e vejamos os proveitos e interesses que do descobrimento de minas haviam de resultar à vossa terra, no caso em que se tivessem achado.  Eu nunca fui ao Potosi, nem vi minas, porém nos livros que descrevem o que nelas passa, não só  causa espanto, mas horror, ler a fábrica e as máquinas, os artifícios e a força, o trabalho e os perigos  com que as montanhas se cavam, e as betas se seguem, e, perdidas, se tornam a buscar; os encontros  de pedernais impenetráveis, ou de águas subterrâneas, que rebentam das penhas, as quais ou se hão de  esgotar com bombas, ou abrir-lhes novo caminho, furando por outra parte os mesmos montes; o  estrondo dos maços, das cunhas, das alavancas, e dos outros instrumentos de ferro, alguns dos quais  têm cento e cinqüenta libras de peso, com que se batem, cortam e arrancam as pedras, ou se  precipitam com maior perigo do alto: e tudo isto naquelas profundíssimas concavidades, ou infernos,  onde nunca entrou o raio do sol, alumiados malignamente aqueles infelizes ciclopes só com a luz  escassa e contrafeita de alguns fogos artificiais, cujo hálito, fumo e vapor ardente lhes toma a  respiração, e muitas vezes os afoga.

Faz aqui padecer a cobiça muito mais do que profetiza Isaías que fará em algum tempo a penitência:  Introibunt in speluncas petrarum, et in voragines terrae; projiciet homo idola argenti sui, et simulacra auri sui, quae fecerat sibi ut adoraret, talpas et vespertiliones (Is 2, 19 s): Meter-se-ão os homens pelas  covas e pelas concavidades mais profundas da terra, não para buscar ouro ou prata, mas, abominando  e lançando de si os ídolos, que do ouro e da prata tinham feito, toupeiras e morcegos. Vede agora  estas mesmas figuras como as ajunta e introduz toda a cobiça neste escuro e horrendo teatro da  paciência sem virtude. Ali os penitentes arrependidos entram pelas grutas e concavidades da terra;  aqui os cobiçosos e enganados também se metem, não pelas covas que a terra tem aberto, senão pelas  que eles cavam e rompem à viva força, muito mais penetrantes e profundas. Ali desprezam-se os  ídolos de ouro e prata, conhecida sua mentira e vaidade; aqui, estima-se e adora-se tanto a mesma vaidade que, por novos e ocultos caminhos de tantos estádios, se vai buscar e desenterrar o ouro e  prata, para se fundirem e lavrarem ídolos. Ali as figuras dos ídolos são toupeiras e morcegos: talpas et  vespertiliones  – e aqui os homens, desfigurados como toupeiras, vivem debaixo da terra, sem ter olhos  para ver a luz, e como morcegos fogem do sol e do dia, e se vão mais sepultar que viver naquela  escura e perpétua noite. Ainda tem outra propriedade, porque uns, como toupeiras, com os pés e mãos  na terra andam cavando, revolvendo e mudando continuamente, e outros, como morcegos suspensos  no ar, estão picando as pedras e sangrando as suas veias com o corpo e com a vida pendente de uma  corda. Houve jamais algum anacoreta, dos que habitavam as covas, que fizesse tal penitência? Pois  ainda não ouvistes o mais temeroso dela.

Solapadas por baixo aquelas grandes montanhas, todo o peso imenso delas se sustenta sobre pilares da  mesma matéria, que vão deixando a espaços, os quais, se enfraquecem ou quebram, como acontece  muitas vezes, qual é o efeito? Toda a montanha, ou grande parte dela, cai de repente, e a multidão que  andava desenterrando a prata, fica sepultada com ela, em um momento, sem outra notícia de tamanho  e tão miserável estrago, que a que deu aos de muito longe o estrondo da ruína, e o tremor de toda a  terra. Isto é o que se escreve, e se escreve muito menos do que verdadeiramente é. Baste, por prova,  que a sevícia e crueldade dos Neros e Dioclecianos comutavam a morte e os tormentos dos cristãos  em os mandar servir e trabalhar nas minas, e a Igreja, que com tanta dificuldade e consideração  examina e avalia os merecimentos dos santos, canonizava e venerava por mártires aos que nelas acabavam a vida.

Agora vos pergunto eu: e estes martírios das minas, se as vossas se descobrissem, quem os havia de  padecer? Dos degradados não falo, porque os que hoje se degradam para o Maranhão, então se  haviam de degradar todos, e muitos mais para as minas. Os cavadores não seríeis os mais nobres e  ricos da terra, mas quem haviam de ser senão os seus escravos? Quem havia de induzir todos aqueles  instrumentos e máquinas por esses sertões dentro? Quem havia de contribuir o sustento, e levá-lo aos  trabalhadores? Quem havia de cortar e acarretar àquelas serras estéreis como são todas as lenhas  para as fornalhas e fundições? E aqueles lumes perpétuos e subterrâneos, com que óleos se haviam de  sustentar, senão com os dos frutos agrestes que aqui se estilassem, e não com os dos olivais que de lá  viessem? Sobretudo, se tantos milhares de índios se têm acabado e consumido em tão poucos anos, e  com tão leve trabalho, como o das vossas lavouras, onde se haviam de ir buscar outros, que suprissem  e suportassem quanto tenho dito? E quais haviam de ser os que, vendo-se enterrados vivos naquelas  furnas, não fugissem para onde nunca mais aparecessem, levando o mesmo medo com eles aos  demais? Tudo isto não o haviam de fazer nem padecer os que passeiam em Lisboa, porque também  estas minas são como as da pólvora, que sempre arruínam, derrubam e põem por terra o que lhes fica  mais perto. E isto é o que vós desejáveis para a vossa, e vos entristece, porque não sucedeu como  esperáveis?

Ainda falta por dizer o que mais vos havia de destruir e assolar. Quantos ministros reais, e quantos  oficiais de justiça, de fazenda, de guerra, vos parece que haviam de ser mandados cá, para a extração,  segurança e remessa deste ouro ou prata? Se um só destes poderosos tendes experimentado tantas  vezes que bastou para assolar o Estado, que fariam tantos? Não sabeis o nome do serviço real – contra  a tenção dos mesmos reis – quanto se estende cá ao longe, quão violento é, e insuportável? Quantos  administradores, quantos provedores, quantos tesoureiros, quantos almoxarifes, quantos escrivães,  quantos contadores, quantos guardas no mar e na terra, e quantos outros ofícios de nomes e jurisdições novas se haviam de criar ou fundir com estas minas, para vos confundir e sepultar nelas?  Que tendes, que possuís, que lavrais, que trabalhais, que não houvesse de ser necessário para serviço  de el-rei, ou dos que se fazem mais que reis com este especioso pretexto? No mesmo dia havíeis de  começar a ser feitores, e não senhores de toda a vossa fazenda. Nem havia de ser vosso o vosso  escravo, nem vossa a vossa canoa, nem vosso o vosso carro e o vosso boi, senão para o manter e  servir com ele. A roça haviam-vo-la de embargar para os mantimentos das minas; a casa haviam-vo-la  de tomar de aposentadoria para os oficiais das minas; o canavial havia de ficar em mato, porque os  que o cultivassem haviam de ir para as minas; e vós mesmo não havíeis de ser vosso, porque vos  haviam de apenar para o que tivésseis ou não tivésseis préstimo, e só os vossos engenhos haviam de  ter muito que moer, porque vós e vossos filhos havíeis de ser os moídos.


CAPÍTULO  VI

A proposição de Horácio: o ouro é melhor não se achar nem se descobrir que achar-se. As coisas  naturais, enquanto estão no seu próprio lugar, em que as situou a natureza, nenhum dano fazem.  Enquanto no mundo não houve ouro, então foi a Idade de Ouro: depois que apareceu o ouro no  mundo, então começou a Idade de Ferro. Que quer dizer o Gênesis quando diz que no princípio do  mundo a terra estava vazia e vazia? Se na doação universal dos bens do Paraíso, Deus entrega como  por lista a Adão todas as outras coisas, as minas de ouro e prata por que deixa de fora? O ouro e a  prata, pedra de toque dos homens. Plínio e a felicíssima idade em que as coisas se contavam umas por  outras: Os discípulos de Cristo e o perigo do dinheiro.

Parece-me que vos vejo dar assenso a tudo o que digo – que por isso desci a coisas tão particulares e  domésticas  – e também creio que já vossa esperança terá mudado de conceito à vista deste  descobrimento de minerais, tão diversos do que ela desejava e supunha, os quais é certo que haviam  de ser maiores e mais duros na experiência, do que os pode representar o meu discurso. Fique, logo,  por conclusão que muito maior mercê vos fez Deus, e muito mais bem afortunados fostes em não se  acharem as minas, que se o ouro e prata, que se supunha e esperava delas, se descobrisse. Ouvi a  sentença de um gentio, fundado só na razão natural e experiência, sem nenhum princípio de fé, que a  nós nos devia levantar mais da terra: Auram irrepertum, et sic melius situm cum terra celat: O ouro diz  Horácio – é melhor não se achar nem se descobrir, que achar-se: auram irrepertum. E por que?  Porque, enquanto a terra o esconde e encobre: cum terra celat  – está ele no sítio e lugar que lhe deu a  natureza, que é o melhor: et melius situm.  Excelente razão. As coisas naturais, enquanto estão no seu  próprio lugar em que as sitiou a natureza, nenhum dano fazem; tiradas dele, são muito danosas. A  água no seu centro não pesa; o fogo na sua esfera não queima; a terra, se sobe ao ar, faz raios; o ar, se  se mete debaixo da terra, faz terremotos, derruba casas e cidades; assim também o ouro e prata das  minas. Enquanto estão escondidos lá no centro da terra, onde as pôs a natureza, conservam-se  inocentes, e não fazem mal a ninguém; mas se se cavam e se tiram fora, então são muito perniciosas,  e fazem grandes estragos. Olhai para o passado, se vos não quereis enganar com o presente.

Aquela idade dourada, tão célebre nos primeiros tempos, quem a fez? Parece que a havia de fazer o  ouro, e não a fez o ouro que havia, senão o ouro que não havia, porque ainda se não tinha descoberto.  Enquanto no mundo não houve ouro, então foi a Idade de Ouro: depois que apareceu o ouro no  mundo, então começou a Idade de Ferro: Jamque nocens ferrum, ferroque nocentius aurum prodierat. O que era necessário e útil para a vida e conservação dos homens, notou Sêneca, Demócrito, e  ainda o mesmo Epicuro, que o pôs a natureza muito perto de nós, e muito descoberto e patente, como  são as plantas, os frutos, os animais, pelo contrário, o que não só era inútil, mas pernicioso, pô-lo  muito longe de nós, oculto e escondido, onde o não víssemos: e este é o ouro e a prata. Houve-se em  tudo a natureza como mãe. A mãe dá a maçã ao filhinho, e esconde-lhe a faca. Por que? Porque quer  que coma, mas não quer que se fira, e se o menino chora pelo que o há de ferir, não é justo que os  homens de razão e de juízo tenham sentimento de meninos.

Esta mesma doutrina, como tão necessária – porque não cuideis que é só de filósofos – foi a primeira  que nos ensinou a Sagrada Escritura logo no princípio do mundo: In principio creavit Deus caelum et  terram. Terra autem erat inanis et vacua (Gên 1, 1 s): No princípio criou Deus o céu e a terra; porém  a terra estava vazia e vazia. – E que quer dizer que a terra estava vazia e vazia: inanis et vacua? Quer  dizer que estava vazia por dentro e vazia por fora: vazia por dentro: inanis – porque ainda não tinha  Deus criado no interior da terra os minerais; e vazia por fora: et vacua – porque também não tinha  criado na superfície da mesma terra as plantas, as árvores e os animais. Criou, pois, Deus todas estas  coisas naqueles primeiros seis dias, e, fazendo a Escritura muito particular e miúda relação das  plantas, das árvores e dos animais, das minas e dos metais não faz menção alguma. Pois, se a  Escritura tinha dito que a terra, em sua primeira criação, nascera vazia por dentro e por fora, e relata  com tanta distinção e engrandece com tanto aparato como Deus a encheu e povoou por fora, por que  cala totalmente, e não diz como a encheu e enriqueceu por dentro? Mais. Depois que Deus teve criado  todas as coisas, e o homem, que foi a última, mostrou-lhe as ervas, as plantas, as árvores e seus frutos,  e disse-lhe: Eis aqui toda esta variedade, a qual criei, e vos dou para vosso sustento e regalo. – E  fazendo vir diante do mesmo Adão todos os animais, disse-lhe da mesma maneira: Também de  todos estes vos dou o domínio, os quais criei para que vos ajudem e sirvam. – Agora cuidava eu que  havia que acrescentar o Senhor: E não só tenho provido e aparelhado, para vosso sustento, serviço e  conservação, todas estas coisas que vedes na superfície da terra, mas também lá no centro e entranhas  dela, criei muitas minas de metais preciosos, para maior riqueza, grandeza e utilidade vossa, e de  vossos descendentes. Mas nada disso disse Deus: tudo passou em silêncio, sem fazer das minas a  menor insinuação. Pois, se Deus nesta doação universal entrega, como por lista, a Adão todas as  outras coisas que tinha criado para ele, as minas de ouro e prata, que parecia – como hoje parece –  que era a melhor e mais rica partida de todas, por que as deixa de fora? Porque todas as outras coisas  que estão à face da terra, e o domínio e uso delas, era útil e necessário ao homem para sua  conservação e sustento, e ainda para seu regalo; porém as minas, o ouro e a prata, não só não eram  necessários nem úteis, mas supérfluos e perniciosos, e ocasião que lhe podia e havia de ser de  gravíssimos danos. Por isso, assim como as tinha sepultado e escondido debaixo da terra, assim lhe  escondeu e encobriu também a notícia delas, passando totalmente em silêncio, e não fazendo menção  de tal coisa.

Mas vejo que me perguntam os curiosos, e me argúem os críticos: se as minas eram tão danosas e  perniciosas ao homem, e por isso lhas escondeu e encobriu Deus, por que as criou, ou para que? Para  responder a esta pergunta, faço-vos primeiro outra. E a Arvore da Ciência que foi a ocasião e origem  de todos os males do mundo, por que a criou Deus no paraíso? Ou aquela árvore era boa ou má como  argumenta Santo Agostinho. Se era má, para que a plantou Deus? Se era boa, para que a  proibiu? Ameaça ao homem com a morte se comer daquele fruto, e pinta o mesmo fruto com tais  cores, que levava após si os olhos – Pulchrum oculis, aspectaque delectabile? Sim. Porque aquele  fruto tão formoso não foi criado para que Adão comesse ou provasse dele, senão para que Deus  tentasse a Adão, e o provasse com ele. E esta é também a razão por que Deus criou o ouro e a prata, e  lhes deu tanta formosura de cores. Quílon, um dos sete sábios da Grécia, dizia que, assim como a  pedra de toque prova o ouro e a prata, assim o ouro e a prata são a pedra de toque dos homens. Quereis provar quem são os homens? Tentai-os com ouro e com prata. Do ouro disse o Eclesiástico: Qui post aurum non abiit, probatus est in illo; e da prata disse Davi: Ut excludant eos, qui probati sunt argento.

E notai que o que nesta sentença ficou aprovado foi um só: Qui probatus est in illo  – e os que ficaram reprovados e excluídos foram muitos: Ut excludant eos, qui probati sunt argento. Ora já que todos os dias pedimos a Deus que nos livre das tentações, ou que nos não meta nelas: Ne nos inducas intentationem – demos-lhe muitas graças, pois nos livrou desta, em que nós nos tínhamos metido.

E porque vos não fique a última desconsolação de não terdes com que bater moeda na vossa terra, saibam os que tanto a desejam e procuram que, posto que seja com boa tenção e bom zelo, é esta a maior traição que podem fazer à sua pátria. É possível que vos dê Deus uma terra tão abundante e tão fértil, que só com a comutação dos frutos e drogas dela vos sustentais e conservais há tantos anos, tão abastada e tão nobremente, sem haver nem correr nela dinheiro, e que desejeis e suspireis por dinheiro, sem o qual, e por isso mesmo, vos fez a vossa fortuna singulares no mundo? Plínio, que foi o homem que maior conhecimento teve de todo ele, entre outras muitas sentenças com que condena o uso do dinheiro, e louva o da comutação dos frutos naturais, diz estas notáveis palavras: Quam innocens, quam beata, imo vero et delicata esset vita, si nihil aliud quam supra terras concupisceret? Utinamque posset e vita totum abdicari aurum, ad perniciem vitae repertum, quantum feliciore aevo, cum res ipsae permatabuntur, inter se? Quer dizer: que inocente, que bem-aventurada, e que deliciosa seria a vida dos homens, se eles se contentaram com o que nasce sobre a terra! Oxalá se pudera desterrar de todo o mundo o ouro descoberto para destruição da vida, e se trocaram os tempos e uso presente por aquela idade felicíssima, em que as coisas se comutavam uma por outras. – Até aqui o parecer daquele grande juízo, que ajuntou em si a ciência e compreensão de todos os séculos. E que, tendo-vos Deus feito mercê de que gozeis esta inestimável riqueza e felicidade natural, queirais abrir as portas a um inimigo tão universal e pernicioso como o dinheiro, que, no dia em que entrar na terra, vos há de empobrecer a todos de repente? Ouvi um caso admirável de Cristo, Senhor nosso, com seus discípulos.

Mandou-os o Senhor pregar pelo mundo, e proibiu-lhes nomeadamente que não tivessem ouro nem prata, nem levassem bolsa nem dinheiro consigo: Nolite possidere aurum, neque argentum, neque pecuniam in zonis vestris (Mt 10, 9). Vieram os discípulos da jornada, e fez-lhes o Divino Mestre esta pergunta: Quando misi vos sine sacculo, et pera, numquid aliquid defuit vobis (Lc 22, 35)? Quando vos mandei sem bolsa nem alforje, faltou-vos alguma coisa? – Responderam todos que nenhuma coisa lhe faltara: At illi dixerunt: nihil (Lc 22, 36). – Pois agora vos digo, replicou o Senhor, que quem tiver bolsa e dinheiro o leve consigo, e se tiver alforje, também: Sed nunc, qui habet sacculum, tollat similiter et peram (Lc 22, 36). – Com razão chamei a este caso admirável. Se Cristo tinha mandado aos discípulos sem bolsa nem dinheiro, e eles experimentaram e confessaram que nenhuma coisa lhes faltara, como depois desta experiência e desta confissão, lhes manda agora o contrário, e que levem dinheiro? Se eles tiveram dito que, por não levarem dinheiro, lhes tinham faltado muitas coisas necessárias à vida, então se seguia bem que o Senhor lho concedesse. Mas, tendo-lhes proibido o dinheiro, quando foram a primeira vez, e não lhes tendo faltado nada, agora lhes diz que o levem? Responde, depois de grandes admirações, S. João Crisóstomo. Cristo, Senhor nosso, queria exercitar seus discípulos na paciência, e que padecessem pobreza e falta do que lhes fosse necessário; e como quando foram sem dinheiro, nenhuma destas coisas lhes faltou, mandou-lhes que levassem dinheiro, para que tudo lhes faltasse. Ac si eis dixerit: hactenus cuncta vobis uberrine affluebant, nunc autem volo vos et inopiam experiri: Como se dissera o Senhor – diz Crisóstomo: Até agora, sem dinheiro, tudo vos sobeja; pois agora quero que tenhais dinheiro, para que tudo vos falte, e sejais pobres. – Isto é o que querem, sem entender o que querem, os que desejam que entre e corra dinheiro nesta vossa terra. Se sem dinheiro, e só com uma comutação dos frutos naturais da terra, tendes abundantemente tudo o que é necessário para a vida, e muitos de vós o supérfluo, para que quereis dinheiro, senão para que tudo custe dinheiro, e, custando tudo dinheiro, todos sejais pobres? Benzei-vos desta tentação como da outra: lograi o que Deus vos deu tão abundantemente sobre a terra, e debaixo dela nem queirais minas, nem o que delas se bate.


CAPÍTULO VII

As minas, causa de opressão e ruína do Reino. Que utilidades se têm seguido à Espanha do seu famoso Potosi? Que faziam os rios de ouro do reinado de Salomão, provenientes das minas do Peru e do Brasil? Os magnetes atraem o ferro e os magnates o ouro.

Mas, antes que acabemos este ponto  – com promessa de que o segundo será muito breve – não quero que me acuseis de pouco zeloso da opulência do Reino. E assim como vos tenho mostrado que as minas, no caso em que se descobrissem, seriam de grande dano, em particular para este Estado, assim acrescento agora que também para o mesmo Reino em geral antes haviam de ser de maior opressão e ruína, que de utilidade e aumento. E para que comecemos pelos exemplos mais vizinhos, que utilidades se têm seguido à Espanha do seu famoso Potosi, e das outras minas desta mesma América? A mesma Espanha confessa e chora que lhe não tem servido mais que de a despovoar e empobrecer. Eles cavam e navegam a prata, e os estrangeiros a logram. Para os outros é a substância dos preciosos metais, e para eles a escória. Lá disse Isaías, falando do Reino de Israel: Argentum tuum versum est in scoriam: e o mesmo se poderá dizer sem metáfora da prata de Espanha. Ainda, com mais doméstica propriedade, se lhe pode aplicar o dito do seu mesmo patrão, Santiago: Argentum vestrum aeruginavit  – pois a prata se lhe tem convertido em cobre, e a fama e opulência de tanto milhão em belhão.

E para que se não engane alguém com me dizer ou cuidar que a evidência deste mesmo exemplo nos servirá de doutrina e emenda, passemos a outro reino, ou a outro reinado mais sábio, qual foi, sem injúria dos presentes nem futuros, o de Salomão. Salomão, com a sua universal sabedoria, descobriu riquíssimas minas, e não outras, segundo opinião de graves autores, senão as mesmas deste Novo Mundo. As do Peru, que os espanhóis descobriram sem as buscar, e as do Brasil, que nós buscamos, e não descobrimos. Funda-se esta sentença no capítulo terceiro do segundo Livro dos Paralipômenos, onde, falando do ouro que daquelas partes vinha a Salomão, diz o texto hebreu: Aurum erat Paruaim. A qual palavra Paruaim é um nome do plural, cujo singular é Peru, com que vem a dizer o mesmo texto que aquele ouro se trazia de ambos os Perus, ou de um e outro Peru. Assim os declara Genebrardo, peritíssimo na língua hebraica: Aurum Paruaim in hebraeo appellatur quasi allatum ex utroque Peru. E daqui infere, como coisa evidente, que era tirado das minas deste novo Mundo: Quis non cernit novum hunc orbem nominari? E para que se veja que um destes Perus era o que hoje conserva o mesmo nome, e o outro este nosso, que chamamos Brasil  – onde só podiam vir aportar asfrotas de Salomão  – diz o mesmo texto sagrado que uma das coisas novas, e nunca vistas na Ásia, que levavam as mesmas frotas, eram certos paus chamados ligna thyina, os quais, dizem os hebreus, citados por Tirino, que eram lignum Brasilium: pau do Brasil . O Caldeu traslada coralium: coral, donde parece-lhe deram este nome pela semelhança da cor vermelha. Mas as obras, que o texto aponta se faziam deste pau, não podiam ser do que vulgarmente se chama Brasil, senão de outra madeira preciosa, das muitas que nele nascem.

Isto suposto  – e não suposto também  – ou fossem desta terra as minas de Salomão, ou de qualquer outra, vamos ao que rendiam, e em que se empregava, que é o que faz ao meu caso. O que traziam as suas frotas a Salomão, só em ouro, eram seiscentos e sessenta e seis talentos, que montam oito milhões, menos oito mil cruzados. Assim o conta pontualmente a Escritura: Pondus auri, quod afferebatur Salomoni per annos singulos, sexcentorum sexaginta sex talentorum auri. E não só traziam as frotas ouro, senão também muita prata, cuja quantidade era tão imensa na corte de Jerusalém, que, afirma a mesma Escritura, igualava às pedras da rua: Fecitque ut tanta esset abundantia argenti in Jerusalém, quanta et lapidum. Esta é a imensidade de ouro e prata que rendiam aquelas minas. Mas antes que vejamos em que todo este ouro e toda esta prata se gastava, deixai-me fazer um reparo, digno não só de admiração, mas de assombro e de pasmo.

Morto Salomão, sucedeu-lhe na coroa Roboão, seu filho, e a primeira proposta que lhe fizeram os povos juntos em cortes foi que tivesse piedade deles, e os aliviasse dos tributos com que estavam oprimidos em tempo de seu pai, porque eram insuportáveis. E chegou esta instância a termos tão apertados, e do cabo, que, não querendo Roboão condescender no que tão justamente pediam, das doze Tribos de que constava todo o reino, as dez lhe negaram a obediência e se rebelaram, e fizeram outro rei e outro reino, que nunca mais se sujeitou nem restituiu aos herdeiros de Salomão. Agora entra o meu reparo. Se o peso de ouro e a quantidade da prata que contribuíam as minas era tão excessiva – além dos direitos ordinários do reino, de que também faz menção a Escritura  – com toda esta imensidade de tesouros, com todos estes rios de prata e ouro, que estavam sempre a correr: Per singulos annos  – como não se aliviava a opressão dos vassalos, como se não levantavam ou diminuíam os tributos dos povos, antes cresciam e se multiplicavam ao mesmo passo, com tal excesso que os obrigavam a uma tal desesperação, e reduziram o reino a extrema ruína? Aqui vereis qual é o fruto das minas, e o que fazem esses rios de ouro e prata, trazidos de tão longe. Com as suas enchentes inundam a terra, oprimem os povos, arruínam as casas, destroem os reinos.

As causas naturais destes efeitos tão lamentáveis não são ordinariamente outras, senão as mesmas que precederam no reinado de Salomão. E quais foram estas? O luxo, a vaidade, a ostentação, a delícia, os palácios, as casas de prazer, as fábricas e máquinas esquisitas, e outras coisas tão notáveis como supérfluas, que chamavam à corte de Jerusalém os olhos do mundo, e vistas, desmaiavam a admiração, como aconteceu à rainha Sabá. As baixelas todas eram de ouro  – porque da prata não se fazia caso – as mesas, e todas as outras alfaias, também de ouro, e, o que se não pudera crer, se o não referira a História Sagrada, até as lanças e escudos, em grande número, de ouro. Nestes monstros da vaidade – que sempre é maior que o poder  – se consumiam aqueles imensos tesouros, e onde não chegavam os milhões das frotas, supriam os tributos dos vassalos. Quando as frotas haviam de partir, uns concorriam com o préstimo de suas artes para os aprestos, outros com as contribuições das suas herdades para os bastimentos, outros com o dinheiro amoedado para os soldos, outros com as próprias pessoas, embarcando-se forçados a uma tão dilatada, tão nova e tão perigosa navegação. E quando as mesmas frotas voltavam carregadas de ouro e prata, nada disto era para alívio ou remédio dos povos, senão para mais se encherem e incharem os que tinham mando sobre eles, e para se excogitarem novas artes de esperdiçar, e novas invenções de destruir. E se isto sucedia no reinado e governo de Salomão, vede se se pode esperar ou temes outro tanto, quando não forem Salomões os que tenham o governo!

Dos futuros condicionais e contingentes, ninguém é sabedor, senão Deus e os seus profetas. E assim não quero que me creiais a mim, senão a Isaías: Repleta est terra argento et auro, et non est finis  thesaurorum ejus (Is 2, 7): Vejo a terra – diz Isaías  – toda cheia de ouro e prata, e são tantos e tão grandes os seus tesouros que não têm fim. – Oh! ditosa e bem afortunada terra, em que não haverá já pobreza nem miséria, pois, estando toda cheia, a todos abrangerá a riqueza, e não haverá quem não tenha com que remediar a sua necessidade! Assim parece verdadeiramente. Mas vejamos se vê mais alguma coisa o profeta, e se é isto mesmo que nós inferimos. Vai por diante Isaías, e às palavras que tinha dito acrescenta as seguintes: Et repleta est terra ejus equis, et innumerabiles quadrigae ejus, et repleta est terra ejus idolis: opus manuum suarum adoraverunt (Is 2, 8): Depois de ver a terra cheia de ouro e prata, o que mais vi  – diz o profeta – foi que a mesma terra estava cheia de cavalos, e que as suas carroças eram inumeráveis, e que os homens adoravam as obras de suas mãos, e faziam delas ídolos. Eis aqui os aumentos que havia de ter o reino com os haveres que lhe prometiam as vossas minas. Encher-se-ia a terra de ouro e prata mas esse ouro e prata, posto que naturalmente desce para baixo, havia de subir para cima. Não havia de chegar aos pequenos e pobres, mas todo se havia de abarcar e consumir nas mãos dos grandes e poderosos, porque, como bem disse o outro, os magnetos atraem o ferro, e os magnates o ouro; e as obras pias em que esses tesouros se haviam de despender, eram, mais cavalos, e mais carroças, e mais galas, e mais palácios, e obras magníficas e ostentosas; e também haviam de ter parte nele os ídolos batizados, que lá se adoram, e que tantas vidas e fazendas têm destruído. E se estes eram os proveitos com que se havia de adiantar o reino no descobrimento das vossas minas , à custa da vossa fazenda, do vosso trabalho, da vossa opressão e do vosso  cativeiro, vede se foi grande favor e providência do céu, que se não descobrissem, e se, tanto no  particular como no geral, ia desencaminhada e errada a vossa esperança: Nos autem sperabamus.


CAPÍTULO VIII

Em lugar das minas incertas, que se não descobriram, descobrirá Deus outras certas e mais ricas. O  milagre prometido por Cristo aos escribas e fariseus. Que foi buscar Cristo ressuscitado nas  concavidades escuras e subterrâneas do interno? O que disseram os autores gentios dos mineiros do  ouro e da prata, e o que Cristo fez penetrando o mais escondido e interior da terra. As almas dos patriarcas, tesouros inestimáveis que o Redentor do mundo tirou das suas minas. A profecia de Isaías e o descobrimento das minas secretas e dos tesouros ocultos. O preço por que foram compradas nossas almas. El-rei D. João, o Segundo, e as minas da Costa de África.
  
Desenganado assim e desvanecido o falso descobrimento das vossas minas, segue-se o verdadeiro das  minhas, que vos prometi descobrir. E porque é certo e infalível, não necessita de tão largo discurso.  Prometendo Cristo, Redentor nosso, aos escribas e fariseus, em lugar de um milagre do céu, que lhe  pediam, outro milagre maior na terra, disse que, assim como Jonas estivera três dias e três noites no  ventre da baleia, assim ele havia de estar no coração da terra outros tantos dias e noites, que foram os  que se contaram desde a tarde de sua sagrada morte, até à manhã da sua gloriosa ressurreição. Alguns  dizem que se cumpriu esta promessa e profecia na sepultura do Senhor. Mas esta interpretação é  insuficiente e imprópria, porque, ainda que Cristo na sepultura esteve debaixo da terra, não esteve no  coração da terra: In corde terrae (Mt 12, 40). O coração da terra não é junto à superfície, onde estava o  sepulcro, senão o meio e centro dela, e o lugar mais interior e inferior, onde o Senhor desceu e se  deteve aqueles três dias, e isso é o que cremos e significamos, quando dizemos não só que foi  sepultado, senão que desceu ao inferno. Mas a que fim desceu Cristo ao inferno, estando já em estado  glorioso, a que naturalmente é devido o céu? Que foi buscar àquelas concavidades escuras e  subterrâneas, onde nunca entrou o sol? Foi buscar e descobrir umas minas mais ricas que toda a prata  e todo o ouro, cujo preço e lugar só ele conhecia, e nenhum homem, nem anjo, senão ele as podia  descobrir.
  
Quando os autores, ainda gentios, querem encarecer o extremo da cobiça furiosa e cega, com que os  homens não duvidam de se meter e penetrar o mais profundo da terra, e ter sobre si as montanhas para  chegar ao escondido das minas, dizem que até ao inferno vão buscar e desenterrar o ouro e a prata:

Itum est ad viscera terrae.
Quasque recondiderat, Stygiisque advexerat undis,
Effodiuntur opes irritamenta malorum.

disse com elegantes versos Ovídio. E não com menos elegante prosa, nem com menor ressentimento e  juízo, Plínio: Imus in viscera ejus, et in sede manium opes quaerimus. Illa nos premunt, illa nos ad inferos agunt, quae occultavit, atque demersit. Isto, pois, que aqueles homens, que não tiveram conhecimento de Cristo, disseram por exageração e encarecimento dos mineiros do ouro e prata, isto mesmo, e em próprios termos, é o que realmente e em pessoa fez Cristo, penetrando o mais escondido e inferior da terra, e descendo verdadeiramente ao inferno, para descobrir, romper e abrir as suas minas, não de ouro ou prata, que acrescentam os males da terra, senão de outros muito mais preciosos metais, com que se acrescenta, ilustra e enriquece o céu.

A montanha onde começaram a romper-se estas minas foi o Monte Calvário, os instrumentos a cruz e  os cravos; o sítio subterrâneo, onde elas estavam escondidas, o seio de Abraão; e as riquezas que delas  tirou Cristo depois de tantos trabalhos, as almas. Tirou a alma do mesmo Abraão, que deu nome ao  lugar. Tirou a alma de Abel, que foi a primeira que ali entrou. Tirou as almas de Adão e Eva, que, por  um apetite, foram a causa de que eles, e seus filhos, do paraíso da terra não fossem tresladados ao céu.  Tirou as almas dos antigos Patriarcas, Set, Noé, Isaac, Jacó, José e Moisés, cuja lei, posto que foi   disposição, não teve virtude para levar os homens à glória, privilégio só da lei da graça. Tirou a alma  de Jó, que no mesmo tempo se salvou na lei da natureza, e também  – segundo parece  – as dos outros  amigos que tinham a mesma fé do verdadeiro Deus. Tirou as almas dos reis que foram justos e santos  – muito menos porém em número do que foram as coroas – a alma de Josias, a alma de Ezequias, a de  Josafá, a de Manassés, a de Davi. E se também não foi com ele a de Salomão, vede que desgraça?  Tirou as almas dos profetas Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel e os demais, e com cada um deles em  triunfo, as almas que com suas pregações tinham livrado do inferno. E por que não fiquem de fora as mulheres – cujas almas não faltou quem dissesse que não foram criadas à imagem e semelhança de Deus  – tirou as almas de Sara, de Rebeca, de Raquel, a de Maria, irmã de Moisés, a de Ester, a de Rute, a da casta Susana, a da valente Judite. E com estas de mais conhecido nome, todas as outras que naquele escuro depósito estavam esperando longamente a vinda do Messias.

Das que lá entraram depois de Deus feito homem  – se a história do rico avarento não foi mais antiga tirou o Senhor singularmente a alma do pobre Lázaro, de que só se faz menção no Evangelho, a qual levaram ao mesmo seio de Abraão os anjos, ficando para sempre no inferno, ardendo em fogo e em inveja, a alma do mesmo rico, cuja fortuna neste mundo fora tão invejada. Também foi notável entre as almas deste tempo a de Simiano, aquele velho venturoso que teve a Cristo em seus braços, e, despedindo-se da vida, foi o que lá levou as primeiras novas, de que já ficava no mundo o Redentor dele. Os antigos tiveram para si que havia almas grandes e almas pequenas; e se isto assim fora, muito acrescentaram o número das almas pequenas às dos inocentes de Belém, os quais o Senhor não livrou da espada de Herodes, para agora as levar gloriosas consigo. Finalmente, sobre todo aquele numerosíssimo esquadrão, avultaram com excesso entre todas as almas grandes, quatro maiores  – a de S. João Batista, a de S. Joaquim, a de Santa Ana, e a do que mereceu ser chamado pai do mesmo Cristo, o incomparável S. José.

Estes foram os tesouros inestimáveis que o Redentor do mundo tirou daquelas suas minas, que em espaço de quatro mil anos, desde o princípio do mesmo mundo, se foram multiplicando e crescendo sempre. Então se cumpriu a promessa que delas lhe tinha feito Deus por boca de Isaías, dizendo que lhe daria os tesouros escondidos e mais secretos e encobertos de toda a terra, e quebraria para isso portas de bronze e fechaduras de ferro: Portas aereas conteram, et vectes ferreos confringam; et dabo tibi thesauros absconditos, et arcana seeretorum. Bem sei que estas palavras foram dirigidas exteriormente a el-rei Ciro, mas é certo que o interior da profecia falava expressamente com Cristo. Assim como o que tem diante de si a imagem de um santo parece que fala com a imagem, e fala com o santo, assim Isaías, falando no exterior com Ciro, que era figura e imagem de Cristo, com o mesmo Cristo é que falava propriamente, e de Cristo profetizava, e não de Ciro. O mesmo profeta se explicou logo, e se comentou a si mesmo e com tal individuação de palavras, que de nenhum modo se podem entender de Ciro, nem de outro algum homem, senão daquele que era homem e Deus juntamente: Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel, salvator. Este, de quem falo debaixo do nome de Ciro, é verdadeiramente Deus escondido, Deus escondido e Salvador, Deus escondido, porque em Cristo estava a divindade escondida debaixo da humanidade; e Deus assim escondido Salvador, porque para Deus nos salvar se fez homem. E para tirar toda a dúvida, e que este Salvador não era homem como os outros homens da terra, senão Deus descido do céu, continua o mesmo profeta pedindo e instando ao mesmo céu que acabasse já de chover lá de cima o Justo, para que nascesse na terra o Salvador: Rorate, caeli, desuper, et nubes pluant justum; aperiatur terra, et germinet Salvatorem  – Assim que aquele príncipe, a quem Deus prometeu o descobrimento das minas secretas, e as riquezas dos tesouros mais ocultos e escondidos, não era Ciro, nem outro rei da terra, senão Cristo, verdadeiro Deus, também escondido, que desceu do céu, e que desceu, não para outro fim, senão para ser Salvador.

Mas, se Cristo, quando desceu do céu e veio à terra, nasceu na pobreza de um presépio; se como Filho escolheu Mãe pobre, e como Mestre discípulos pobres; se a primeira coisa que ensinou e pregou foi a  pobreza; se viveu de esmolas como pobre, se morreu sem casa nem cama, é despido como  extremamente pobre, se o que sempre condenou foram as riquezas, e, prometendo o céu aos pobres,  só o dificultou e quase impossibilitou aos ricos: que tesouros são estes que Deus lhes prometeu, e que  minas secretas e escondidas as que havia de descobrir? Não foram sem dúvida, nem são outras, senão  aquelas almas tão preciosas como prezadas, que no seio de Abraão, como em tesouro, se iam  depositando por todos os séculos, não só escondidas e encerradas, mas verdadeiramente cativas, para  cujo descobrimento, liberdade e redenção desceu Cristo, como diz S. Paulo, às partes mais inferiores  da terra: Ascendens in altum captivam duxit captivitatem. Quod autem ascendit, quid est, nisi quia et  descendit primum in inferiores partes terrae? E porque as mesmas almas não podiam sair daquele  lugar subterrâneo, onde estavam presas e aferrolhadas, como em um cárcere de bronze, por isso  juntamente com a promessa destes tesouros e destas minas, assegurou Deus ao mesmo Cristo,  descobridor e conquistador delas, que primeiro quebraria as portas de bronze, e romperia as  fechaduras de ferro: Portas aereas conteram, et vectes ferreos confringam, et dabo tibi thesauros  absconditos, et arcana secretorum.

Assim comentam este lugar literalmente S. Jerônimo e Santo Agostinho. Mas quem poderá declarar  dignamente o preço destes tesouros e o valor destas minas? Só por comparação do ouro e prata, que o  mundo tanto preza e estima nas outras, se pode de algum modo rastear, e assim o fez S. Pedro,  falando daquelas almas, e das nossas. Exorta-nos S. Pedro a que conservemos puras as nossas almas,  com a obediência dos preceitos divinos, que todos se encerram na caridade: Animas vestras  castificantes in obedientia charitatis – e o motivo principal que para isso nos propõe é o preço e  valor das mesmas almas : Scientes quod non corruptibilibus auro vel argento redempti estis, sed  pretioso sanguine quasi agni immaculati Christi (1 Pdr 1 , 18): Advertindo e considerando  – diz o  Príncipe dos apóstolos – que essas almas não foram compradas com ouro ou prata, senão com o  precioso sangue do mesmo Filho de Deus. Não sei se reparais que não só diz S. Pedro o preço com  que foram compradas as almas, senão também o preço com que não foram compradas. Não foram  compradas, diz, com ouro nem com prata, senão com o sangue de Cristo. E não bastava dizer que  foram compradas com o sangue de Cristo unido à divindade, e por isso de preço infinito? Bastava e  sobejava. Mas como falava com a baixeza e vileza dos homens, que, como feitos de terra, não sabem  levantar os pensamentos da terra, e tanto prezam e estimam o ouro e a prata, por isso ajuntou e  ponderou que não foram compradas as almas com ouro nem com prata, senão com o preço infinito do  sangue de Cristo, para que acabem de entender e de crer todos os que têm fé que são infinitamente  mais preciosas as almas, e infinitamente mais ricas as minas, donde Cristo as foi buscar debaixo da  terra, que todo o ouro e toda a prata que se tira ou pode tirar das outras.

Que bem o entendeu assim el-rei D. João, o Segundo, quando se descobriram as minas da Costa deÁfrica, que deram nome à mesma terra! Edificou-se ali o famoso castelo de S. Jorge; mas porque as  despesas eram muitas, e a terra doentia, pôs-se em conselho de Estado, se se largaria. E como muitos  dos conselheiros votassem que sim, que responderia el-rei? Respondeu que de nenhum modo se  largasse. Porque eu  – diz – não mandei edificar aquele castelo tanto para a defesa e conservação das  minas, quanto para a conversão das almas dos gentios, e basta-me a esperança da salvação de uma só  daquelas almas, para ter por bem empregadas todas essas despesas.


CAPÍTULO  IX

O Rio das Almazonas e o Rio das Almazinhas. O desamparo e desprezo com que se estão perdendo as  almas do Estado do Maranhão. O inferno superior e o inferno interior. Há casos em que a felicidade  consiste, não em se achar o que se busca e deseja, senão em se não achar. O exemplo de Pedro,  correndo ao sepulcro, e de Adão, enquanto se não achava entre todas as criaturas quem lhe fosse  semelhante. Os tesouros do céu e os tesouros da terra. Peroração.

Estas são, senhores meus, as minas de que Cristo hoje subiu tão rico do centro da terra, estas as que eu  vos prometi descobrir, e estas, e não outras, as minas do vosso Maranhão. Se Deus vos não deu as de  ouro e prata, como esperáveis, ou vos fez mercê de que não se descobrissem, para vos livrar de tantas  desgraças, como ouvistes, contentai-vos de vos ter dotado e enriquecido daquelas que na sua  estimação – que só é a certa e verdadeira – foram dignas de ser compradas com seu próprio sangue.  Este grande rio, rei de todos os do mundo, que deu o nome à vossa cidade, e a todo o estado, que   ribeira tem na sua principal e maior corrente, ou nas de seus tão dilatados braços, que, em lugar das  areias de ouro, de que outros fabulosamente se jactam, não esteja rico destas pérolas, que assim  chamou Cristo às almas? Outros lhe chamam Rio das Almazonas, mas eu lhe chamo Rio das  Almazinhas, não por serem menores, nem de menos preço – pois todas custaram o mesmo – mas pelo  desamparo e desprezo com que se estão perdendo, quando o ouro e a prata se deseja com tanta ânsia,  se procura com tanto cuidado e se busca com tanto empenho? Oh! almas remidas com o sangue do  Filho de Deus, que pouco conhecido é o vosso preço, e que pouco sentida a vossa perda, digna só de  se chorar com lágrimas de sangue! Mas os que tão pouco caso fazem da alma própria, como o farão  das alheias?

Ora, já que o Senhor do mundo nos descobriu estas minas, e nos encareceu tanto o preço delas, e as  pôs tanto à flor da terra, nesta terra de que vos fez senhores para este mesmo fim, não as desprezeis.  Vede que injúria seria da fé e da caridade, e do mesmo sangue de Cristo, se, descendo ele ao centro da  terra a buscar almas, nós as deixássemos perder e ir ao inferno, quando as podemos salvar para si,  para nós e para o mesmo Cristo, sem cavar nem romper montanhas. E para que se anime o nosso zelo  neste pequeno trabalho, e de tanto lucro, só quero que advirtamos todos que, fazendo-o assim,  faremos em certo modo mais, sem sair da superfície da terra, do que fez o mesmo Cristo descendo ao  centro dela. E de fé que Cristo desceu aos infernos: Descendit ad inferos. Também é de fé que há dois  infernos, um inferior, e muito mais baixo, onde estava o rico avarento, e outro superior, e mais acima,  onde estava Abraão e Lázaro. Deste inferno superior tirou Cristo todas as almas que lá estavam, mas  do inferno inferior – ou Cristo descesse lá presencialmente, ou não – não tirou alma alguma. Contudo,  Davi diz de si que o Senhor tirou a sua alma do inferno inferior: Eruisti animam meam ex inferno  inferiori. Pois, se a alma de Davi, como a dos outros patriarcas, foi tirada do seio de Abraão, que  é o inferno superior, como diz que a tirou Deus do inferno inferior, que é o inferno dos condenados, e  que propriamente se chama inferno? Porque a alma de Davi livrou-a Deus duas vezes, e dois infernos:  uma vez em vida, e outra vez depois da morte. Depois da morte, livrou-a do inferno superior, quando,  com as outras almas santas, a tirou do seio de Abraão; e na vida livrou-a do inferno inferior, ao qual  estava condenada a alma de Davi pelo pecado do adultério e homicídio, e onde havia de penar  eternamente, se Deus, por sua grande misericórdia, a não livrara, como ele mesmo diz: Quia  misericordia tua magna est super me, et eruisti animam meam ex inferno inferiore.  Eis aqui o estado em que estão toda essa infinidade de almas, cujo remédio e salvação fiou Deus do  nosso zelo e da nossa cristandade. Os inocentes pelo pecado original irão ao Limbo, que também é  inferno, pois não hão de ver a Deus para sempre. Porém, os adultos, assim pelos pecados atuais, como  pela falta de fé e batismo, todos vão e estão indo continuamente ao inferno inferior. E deste inferno,  donde Cristo hoje não tirou alma alguma, podemos nós tirar, sem sair da terra onde Deus nos pôs,  tantos milhares de almas, e fazer delas um tesouro inestimável, tanto mais rico e precioso, quanto vale  mais uma só alma que todo o ouro e prata, e todos os haveres do mundo. Ou cremos esta verdade,  cristãos, ou não cremos? Se a não cremos, onde está a nossa fé, a nossa esperança e o nosso  entendimento? Diga-se do nosso entendimento e da nossa fé o que hoje disse Cristo aos discípulos  desesperados: O sulti, et tardi corde ad credentum! Mas, se temos fé e juízo, como não há de  prevalecer a alegria, o gosto e a felicidade de Deus nos ter descoberto estas minas do céu, à falsa e  mal entendida tristeza, de não termos achado as da terra que nela buscávamos?

Notou Santo Agostinho uma coisa digna do seu entendimento, que hoje sucedeu a S. Pedro: quando a  Madalena esta manhã não achou o corpo do Senhor, que buscava na sepultura, veio toda a diligência  dar conta a S. Pedro, o qual, não andando, senão correndo, foi logo a certificar-se e ver por seus olhos  se era assim o que ouvia. E qual vos parece que seria o desejo que S. Pedro levava no coração? Santo  Agostinho o diz: Ad sepulchrum celeri cursu festinat, laetior rediturus, si non inveniret quem  quaerebat: Corria S. Pedro ao sepulcro, não com desejo de achar, senão de não achar, e para  tornar da jornada muito mais alegre, se não achasse o que buscava. – Assim se alegra quem olha para  as coisas com são juízo, e quem entende – como S. Pedro entendia – que há casos em que a felicidade  consiste, não em se achar o que se busca e deseja, senão em se não achar. Enquanto se não achava  entre todas as criaturas quem fosse semelhante a Adão: Adae vero non inveniebatur adjutor similis  ejus  – foi Adão feliz; e tanto que se achou o que se não achava, daí lhe procederam todos os seus  desgostos, todas as suas perdas, e todas as suas e nossas infelicidades. Alegrem-se, pois, com S. Pedro  os que estavam tristes, por se não achar o que se buscou, e alegrem-se também, e muito mais com os  dois discípulos de Emaús, de acharem, e de se descobrir tanto mais do que esperavam. Eles  esperavam um bem particular e temporal, que era a redenção do reino de Israel: Nos autem  sperabamus, quod ipse esset redempturus Israel  – e o que acharam, sem o buscarem, foi a redenção  espiritual e eterna do mundo, em que consistia a salvação das suas almas, e a de todas.

Todas devemos desejar que se salvem, e por todas havemos de oferecer nossos sacrifícios e orações a  Deus. Mas, pois, não podemos cooperar à salvação de todas, ao menos não faltemos a estas tão  desamparadas, às quais, por mais vizinhas, é mais devedora a nossa caridade. Sobretudo trate cada  um, com verdadeiro zelo cristão, da doutrina e salvação, ao menos daquelas almas que têm em sua  casa, e muito particularmente da sua, de que muitos vivem tão esquecidos. Acabemos de entender, e  de nos desenganar, que só estes são os verdadeiros tesouros, e que não há outros, posto que a nossa  cegueira lhes dê este nome. Concedo-vos que se descobrissem as minas que desejáveis, e que esta  vossa cidade estivesse lajeada de barras de prata, e coberta de telhas de ouro: que importava tudo isto  à alma? Havia de levar alguma coisa destas consigo? Havia-lhe de importar alguma coisa para a  conta? Pois, se tudo cá há de ficar, por que não tomamos o conselho de Cristo, que tantas vezes nos  disse que fizéssemos o nosso tesouro no céu: Thesaurizate vobis thesauros in caelo? E notai que  diz: Thesaurizate vobis: Entesourai para vós – porque todos os outros tesouros são para os que cá  ficam. Costumavam os antigos mandar enterrar os tesouros debaixo das suas sepulturas, e por isso diz  Jó que os que cavam tesouros se alegram quando acham algum sepulcro: Effodientes thesaurum  gaudent vehementer cum invenerint sepulchrum (Jó 3, 21 s) (40) . E não é melhor que a alma ache os  seus tesouros no céu, e se alegre com eles, do que alegrarem-se outros com a vossa sepultura e com à  vossa morte, para se lograrem do que vós não podeis levar convosco? Ora, tenhamos, tenhamos fé, e  entristeçam-nos somente nossos pecados, e alegre-nos somente a esperança bem fundada de nossa  salvação. E para que até das minas que não achastes tireis algum fruto, seja o primeiro a confusão de  fazermos tantas diligências pelos tesouros da terra, quando tão pouca fazemos pelos do céu, que hão  de durar para sempre; e o segundo, o exemplo e resolução de fazer ao menos outro tanto pela salvação  da alma e graça de Deus, a qual nos promete o mesmo Deus que acharemos sem dúvida, se assim a  buscarmos: Si quaesieris eam quasi pecuniam, et sicut thesauros effoderis illam: tunc intelliges  timorem Domini, et scientiam Dei invenies.


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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão da Primeira Oitava de Páscoa"

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