O LOBISOMEM
A primeira bodega que se abria,
na feira do Jacaré, era a de seu Bento.
Logo muito cedo, mal o dia começava a raiar, ele saía de casa,
embrulhado num cobertor de lã, por causa
do frio cortante, escancarava as duas portas da frente, ia à ancoreta de cachaça pousada em cima do
balcão, tomava um tronco, para esquentar
o corpo e ficava, por algum tempo, passeando dentro do quarto, à espera dos primeiros fregueses. Estes não demoravam
a chegar. Eram, de ordinário, os mesmos:
seu Valdevino, marchante, dono do açougue vizinho, conversador inesgotável e cacete, depois da terceira
golada; o capitão Mosqueiro, espírito alegre
e vivo, grande contador de anedotas picantes, que, apesar de muito
repetidas, arrancavam formidáveis
gargalhadas; seu Doca, o mais moço de todos, prosador e poeta, que assombrava a terra com os seus
violentos artigos políticos nos jornais da
capital e já era uma celebridade consagrada pelo Almanaque de Lembranças... Tivera estudos. Toda a gente o considerava um
moço preparado. Fazia graça de um
grosseiro materialismo e, de vez em quando, atracava-se em polêmica com
o vigário da freguesia, um santo homem,
que tomava a peito converter o herege... Só mais tarde chegavam o Baé, o
Januário, o Zé Preto, o velho Macedo, o Caboquim, e outros negociantes das imediações, que
formavam uma grande roda, aplicada, toda
a manhã, até à hora do almoço, a beber copinhos de cachaça e a falar da
vida alheia...
Quando seu Bento abria a porta,
vinha de dentro do quarto um bafo morno,
nauseante complexo, em que se misturava o cheiro de mil coisas
heterogêneas: sardinhas secas, jacas,
rapaduras, fumo de corda, álcool, drogas, plantas medicinais, queijos, alhos e cebolas brancas,
bananas, atas, avoantes... Além de
negociante de gêneros alimentícios, seu Bento era também muito entendido
em assuntos de medicina caseira. Como na
terra não havia médico nem boticário, ele
desempenhava o papel de curioso: com o auxilio do seu bojudo
Chernoviz, aconselhava remédios a
quantos recorriam à sua experiência, e dizia-se que estava só para tratar das doenças do mundo... Jalapa
para estes, batata para aqueles outros,
eram os seus remédios prediletos. Se não fizessem bem, não podiam fazer mal. Custavam pouco, mas esse pouco lhe
bastava para ir vivendo folgadamente, em
meio à sua vasta clientela.
Seu Bento era um belo tipo de
homem, muito branco, de nariz aquilino, com
uma barba cerrada e longa, cujas pontas tinha o hábito de retorcer, com
arrogância. Andava pelos setenta anos,
mas estava forte, esperando viver, pelo menos, o dobro... Extremamente desasseado, sempre de
corrimboque em punho, a fungar pitadas
de tabaco, com um enorme lenço de ganga sobre um dos ombros, era uma figura pitoresca pelo seu modo de vestir.
Quer de verão, quer de inverno, calçava
tamancos e o seu traje compunha-se de uma calça de riscado e de uma
camisa de madapolão com as fraldas
soltas que lhe alcançavam os joelhos. Nada neste mundo o obrigaria a passar os panos ou a enfiar um
paletó. Ia assim a toda parte, à igreja
como ao mercado, e, mesmo quando se faziam eleições, era em fralda de
camisa que dava o seu voto ao governo.
Certa manhã, ainda com escuro,
estava a rodinha formada, uns sentados no
balcão, outros em caixas vazias de gás. Era em junho. Fazia um frio de
bater o queixo. A cachaça corria com
mais abundância e a palestra aumentava de animação, à medida que os copinhos se
repetiam. A neve, como lá se chama a
cerração, era tão espessa que não deixava ver nada a vinte metros de
distância. Por isso, ninguém reparou na
chegada do Zé Vicente, um lavrador de Pavuna, senão quando ele, depois de ter amarrado o cavalo à
gameleira da porta, entrou na bodega,
muito maneiroso, dando os bons dias e apertando a mão de cada um.
Seu Bento quis saber logo que
novidade era aquela, porque aparecia ele
assim de madrugada. Haveria doença em casa?
— Foi a mulher que quebrou o
resguardo — explicou o Zé Vicente. Teve
criança há três dias e estava passando muito bem, quando, ontem de
noite, aconteceu uma desgraça...
— Que foi? Que foi? — perguntaram
todos ao mesmo tempo.
— Acho que foi um lobisomem. Pela
meia-noite, ouvimos um bicho rosnar e
arranhar a porta do quintal com muita força. A cachorrinha, parida de
novo, deu logo sinal do lado de dentro e
o bicho largou um grunhido que nos encheu de pavor. Talvez seja um guaxinim, disse eu à mulher.
Quis-me levantar, sair fora, para ver
que marmota era aquela, mas a Maria não deixou. Depois, mais nada. A Baleia calou-se. Pegamos no sono e, hoje de manhã,
ao despertar, verificamos que à porta
dos fundos estava aberta e o bicho havia comido a ninhada de
cachorrinhos que estava na cozinha. A
Maria jura que foi um lobisomem. Eu também acho que sim. O certo é que a pobrezinha tomou um susto
medonho, quebrou o resguardo e, agora,
está para morrer.
Seu Bento consolou o pobre homem
sobre cujo lar desabava uma tamanha
calamidade:
— Isso não é nada, Zé Vicente.
Dá-se um jeito. Tenha coragem e fé em
Deus.
Consultou demoradamente o
Chernoviz:
— O remédio é um purgante de
Leroy ou então Água Inglesa. Leve o laruá
(era assim que ele pronunciava) leve o laruá e venha me dizer, amanhã,
se a mulher melhorou.
Ninguém se atrevia a interromper
seu Bento, quando ele tratava de
medicina. Quem o fizesse, imprudentemente, podia ter a certeza de que o
velho curioso esmagá-lo-ia com um olhar
colérico e com esta simples apóstrofe — Filho!... Filho, apenas. Não dizia de quem mas todos
sabiam o verdadeiro sentido daquele
palavrão...
Zé Vicente guardou o remédio,
pagou-o, despediu-se dos circunstantes e
partiu a galope. Tomou-se mais uma rodada e os comentários, então,
esfuziaram.
— Santa simplicidade! — observou
seu Doca. — Quanta gente estúpida existe
ainda por este mundo! Crer em lobisomem e almas penadas, em pleno século XX, no Século da Eletricidade, só mesmo nesta
infeliz terra! Mas, não pode ser de
outro modo, porque o governo e a nossa Santa Madre Igreja Católica
Apostólica Romana, em vez de instruírem
o povo, tratam de embrutecê-lo, cada vez mais, para que ele permaneça eternamente, a mesma besta,
fácil de governar com um freio — quer
esse freio seja o terror do inferno, quer o terror da lei!
Calou-se, desolado, com aquele
desabafo, certo de que ninguém
compreendia a beleza do seu pensamento. Bebeu mais um copinho. Zangou-se
por se julgar um incompreendido, no meio
daqueles matutos broncos e passivos. E, de
zangado, engoliu, logo em seguida, outro copinho. Irra!
— Esta mocidade de hoje — disse o
velho Macedo. — Esta mocidade de hoje
não crê mais em nada. Por isso é que o mundo está perdido e acontece tanta desgraça feia... Se até os meninos como você,
Doca, já são ateus, maçons, dizem que
Deus não existe... Pois fique sabendo, moço, que Deus está lá em cima e
que há muita coisa, muita coisa... Almas
do outro mundo, lobisomem, tudo isso é
verdade. Eu nunca vi alma, mas lobisomem já topei um...
Explodiu uma gargalhada na roda.
Seu Macedo, um velhinho pequenino,
melgaço, de olhos azuis, cabeça enorme, era conhecido como o maior
mentiroso das redondezas. Não abria a
boca que não fosse para contar histórias de onça, cada qual mais estapafúrdia, e ficava furioso, quando
punham em dúvida a sua palavra. Como, de
resto, as suas mentiras não faziam mal a ninguém, não passando de arrojadas fantasias, todos gostavam de
ouvi-lo e muitos o estimulavam a contar
casos maravilhosos.
— Pois conte, lá seu Macedo,
conte lá a história do lobisomem. Vamos.
— Foi em Santa Quitéria, meninos.
Vocês sabem que eu sou daquele sertão,
de onde vim para aqui na seca dos três sete. Eu era rapaz moço, dos meus dezoito anos, e nesse tempo não tinha medo de
nada. Corria atrás de boi no mato
fechado, matava onça de faca, pegava cascavel pelo pescoço e quando ela
abria a boca para morder, cuspia-lhe
dentro mel de fumo. Depois soltava a cobra. Ela
estrebuchava, estrebuchava, e morria. Eu era doido varrido... E se havia
coisa que eu tivesse vontade de ver de
perto era um lobisomem. Se fosse possível, até pagava para me encontrar, frente a frente, com um
bicho desses. Queria tirar-lhe o encanto.
Como vocês sabem, o lobisomem é perigoso, mas basta que a gente o fira,
mesmo de leve, com uma faca, de ponta,
para ele desencantar. Pois bem. Parece que foi
mesmo um castigo. Uma noite, escura como breu, eu vagueava sozinho,
pelas ruas da vila, levando como única
arma uma faquinha de cortar fumo, um quicé à toa... Fui andando, fui andando, perfeitamente
calmo, sem encontrar nada no caminho, a
não ser uma ou outra rês deitada na rua e que se levantava à minha passagem. Cheguei assim até perto do patamar
da matriz, quando um bicho medonho,
quase do tamanho de um jumento, com os olhos de fogo e dentes enormes, se botou a mim, como se me quisesse
devorar. Tomei um susto pavoroso. Pulei
para trás como um gato. Só tive tempo de gritar pelo nome de Nossa Senhora e arrancar o quicé. O bicho estava em cima de
mim, danado. Mandei-lhe o ferro de rijo.
As primeiras facadas perderam-se e o maldito, de um tapa, arrancou-me o peito da camisa. Fugi o corpo de banda e toquei-lhe
a faca mesmo com vontade. Nisto ouvi um
grito horroroso, que me fez arrepiar os cabelos.
— Não me mate, seu Targino! Não
me mate que eu sou a Joana do padre
Francisco.
Era a Joana mesmo, minha gente. Estava
diante de mim nua em pêlo, suja de
terra, com o sangue a escorrer de uma facada do lado esquerdo. Eu
tinha desencantado a bicha...
— E depois?
— Depois a Joana confessou-me
tudo. Era castigada, por ser amiga do
vigário, há muitos anos. Todas as sextas-feiras, houvesse o que
houvesse, tinha de cumprir aquela
penitência: saía de casa, à meia-noite, e quando chegava a uma encruzilhada, tirava a roupa e espojava-se no
chão como uma besta. Imediatamente,
virava um bicho feroz e partia a galope para correr as cinco partes do
mundo, até o dia clarear. Só de
manhãzinha voltava a ser gente. Mas, agora, ficara livre de tudo, porque eu havia quebrado o encanto...
— Isso não foi sonho, seu Macedo?
- perguntou um gracioso.
— Sonho? Eu também pensei que
fosse sonho quando acordei no dia
seguinte. Mas, logo me convenci de que tudo era a pura realidade. Fui à
casa da Joana e encontrei-a muito
doente, estirada numa rede. Dizia ela às mulheres que lá estavam que lhe tinha dado uma dor, de
repente, numa costela, do lado esquerdo.
Mas, a mim, quando ficamos sós, pediu-me pelo amor de Deus, por alma de
minha mãe, que não dissesse nada a
ninguém. Jurei. E só agora, depois que ela e o padre já estão com os ossos brancos, é que eu me
atrevo a contar a história.
Acabou, triunfante. Tomou o seu
copinho de cachaça e saiu trôpego, apoiando-se à bengala.
— Cabra velho mentiroso! —
disseram os outros em coro, mal o viram pelas
costas.
— Mentiroso, sim, lá isso é —
sentenciou seu Bento gravemente. — Mas,
ninguém me tira da cabeça que, desta vez, o Macedo se esqueceu de
mentir. — . Se essa história não é
verdadeira, já vi coisa parecida.
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Nota:
Raimundo Magalhães - Contos (1923)
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Nota:
Raimundo Magalhães - Contos (1923)
Legal, só faltou um final!!
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