domingo, 29 de setembro de 2013

Padre Antônio Vieira: "Sermão IX - Maria Rosa Mística"

SERMÃO IX - MARIA ROSA MÍSTICA


Maria, de qua natus est Jesus..

Edameris, São Paulo, 1965.
Ascendens Jesus in naviculam, transfretavit, et venit in civitatem suam.

CAPÍTULO I

Harmonia e consonância dos Evangelhos do dia. Maria Senhora do mar, Jesus, porto de salvação. Embarcou-se Cristo na barca de Pedro, não porque tivesse necessidade do navio, mas porque o navio tinha necessidade dele. As duas viagens de Cristo no Mar de Tiberíades.

Com grande harmonia e natural consonância concorrem estes dois Evangelhos, ambos de S. Mateus, neste dia, neste lugar e em tal tempo. Digo neste lugar, porque dentro de quatro tábuas nos achamos todos no meio do vastíssimo oceano. E digo em tal tempo, porque temos entrado nos primeiros dias de outubro, mês tão formidável a todos os mareantes por suas tempestades, como memorável por seus naufrágios. Os mesmos nomes dos santos, a quem nos costumamos socorrer nos trabalhos, não só parece que nos estão avisando, mas ameaçando com eles. No princípio do mês as grandes tempestades, que chamamos de S. Francisco, no fim do mês as maiores, de S. Simão, e no meio dele as das onze mil virgens, que em tão pequena travessa, como de Inglaterra a Bretanha, arrebatadas da fúria dos ventos por aquele tão estreito como temeroso canal, foram cair nas mãos dos hunos. No meio, porém, destes temores, de que não há no mar hora nem momento seguro, nos animam igualmente as palavras de um e outro Evangelho. O primeiro, com o nome de Maria, da qual nasceu Jesus: Maria, de qua natus est Jesus — o segundo, com a viagem que fez o mesmo Jesus embarcado, navegando e chegando felizmente à sua pátria: Ascendens Jesus in naviculam transfretavit, et venit in civitatem suam.

O nome de Maria — que, como tão grande e tão misterioso, não tem só uma significação — segundo Santo Ambrósio significa Domina maris, Senhora do mar; segundo Santo Isidoro significa Stella maris, Estrela do mar. E que navegante haverá, guiado de tal estrela, que tema o mar dominado de tal Senhora? O mesmo Jesus, que dela nasceu — De qua natus est Jesus — quer dizer salvador, e em frase dos mesmos mareantes promete a todos o chegar a salvamento e a porto de salvação, que é o que todos os dias, com estas mesmas palavras, lhe pedem. É tão antiga esta frase entre os homens do mar que já os discípulos na barquinha, apertados da tempestade, disseram ao mesmo Jesus em seu tempo: Salva nos, perimus  — e deles a tomou a Igreja no perigo do seu piloto: Qui salvasti Petrum in mari miserere nobis. — Assim que, na Virgem Maria como estrela e como Senhora do mar, e como Mãe de seu Filho, tem a âncora da nossa esperança uma amarra de três cabos fortíssimos, com que deste pego sem fundo nos levará a dar fundo no porto desejado.

A viagem com que Cristo, Senhor nosso se embarcou, navegou e chegou prosperamente hoje a sua pátria nos promete a mesma segurança e nos assegura a mesma felicidade: Transfretavit, et venit in civitatem suam. — Para passar o mar como Criador e Senhor de todos os elementos, não tinha necessidade Cristo de embarcação. Assim o mostrou quando, indo socorrer os discípulos, caminhou sobre as ondas, como por terra sólida e firme. Embarcou-se porém hoje — diz S. Pedro Crisólogo — não porque ele tivesse necessidade do navio, mas porque o navio tinha necessidade dele: Non Christus indiget navi, sed navis indiget Christo. — Quanta necessidade tenham de Cristo todos os mareantes, os nossos portugueses o confessam cada dia, cantando ao romper da alva, e repetindo uma e outra vez: — Não há tal andar, como buscar a Cristo. Não há tal andar como a Cristo buscar. — E eu acrescento a esta boa doutrina, pelo que toca ao perigo em que estamos, que não basta só buscar a Cristo, se não se busca também a Mãe do mesmo Cristo. Esta cidade, que o evangelista chama civitatem suam, diz o maior intérprete das Escrituras, S. Jerônimo, que era a cidade de Nazaré, porque ainda que Nazaré estava distante do porto, ia Cristo visitar sua Santíssima Mãe, que morava em Nazaré. E como a nau em que navegava o Senhor do mar levava a proa na Estrela do mar, não podia a viagem deixar de ser felicíssima.

Bem claramente provou este sucesso na diferença de outro. Duas vezes nos referem os evangelistas que se embarcou Cristo neste mesmo navio, que era o de S. Pedro, e neste mesmo mar, que era o de Tiberíades. Em uma viagem, porém, que foi esta de hoje, passou e chegou o navio com grande bonança, e na outra padeceu tão forte tempestade, que quase o soçobravam e metiam a pique as ondas: Ita ut navicula operiretur fluctibus. — Pois, se o navio era o mesmo, e o mar o mesmo, e em uma e outra passagem ia o mesmo Cristo, Senhor do mar e dos ventos, como foi tão diferente o sucesso? Porque, ainda que em ambas as viagens ia Cristo na popa do navio, em uma levava a proa na Estrela do mar, e na outra não. Tais são os privilégios que o mesmo Cristo quis que tivesse sobre o mar — ainda quando ele navega — a Mãe de quem nasceu: Maria, de qua natus est Jesus. — Cristo era Senhor do mar, Maria também é Senhora do mar; e para ter e não correr fortuna no mar, antes, navegar e chegar com prosperidade, parece que quis entendêssemos o Senhor do mesmo mar, que não basta só o domínio dele, senão o domínio e mais a Estrela. Isto é o que só no nome de Maria se acha junto:  Maria Domina maris, Maria Stella maris.


CAPÍTULO II

A Virgem Maria, em Nazaré, é a Senhora do Rosário, porque Nazaré quer dizer florida, e porque em Nazaré teve seu princípio o Rosário quanto aos mistérios e quanto às orações. Propriedade da palavra transfretavit. Os quatro nomes do mar. Assunto do sermão: quão grandes são os poderes do Rosário nos conflitos do mar, e quão certos e infalíveis seus efeitos contra o mar, contra os ventos e contra as tempestades. Ainda não está dito tudo. Cristo, na viagem de hoje, não só levava a proa e a vista em sua Mãe, mas em sua Mãe na cidade de Nazaré: In civitatem suam. — Pois, a Virgem Maria em Nazaré e fora de Nazaré não é a mesma? Sim e não. Em Nazaré e fora de Nazaré é a mesma, porque é a mesma Mãe de Cristo; mas em Nazaré e fora de Nazaré não é a mesma, porque em Nazaré é a Senhora do Rosário, fora de Nazaré, não. Nazaré quer dizer florida, Florida; e quando a Senhora está cercada de flores e rosas, então é Senhora do Rosário. O mesmo Rosário o diga quanto ao nome, quanto aos mistérios e quanto às orações de que é composto. O Rosário, quanto aos mistérios, começou no mistério da Encarnação; o mesmo Rosário, quanto às orações, começou na saudação do Anjo S. Gabriel: Ave gratia plena. — E onde teve princípio uma e outra coisa? Ambas em Nazaré: Missus est angelus Gabriel in civitatem Galilaeae, cui nomen Nazareth. — Em Nazaré teve seu princípio o Rosário quanto aos mistérios, e em Nazaré quanto às orações, e por isso também em Nazaré quanto ao nome, porque as flores, e a rainha das flores, lhe deram em Nazaré o nome de rosário. Que muito, logo, que quando Cristo hoje levava a proa em Nazaré, atravessasse aquele golfo, e chegasse a tomar porto com maré de rosas: Transfretavit, et venit in civitatem suam? O mesmo evangelista S. Lucas, que descreveu o lugar de Galiléia onde teve seus princípios o Rosário, dizendo:  Missus est angelus Gabriel in civitatem Galilaeae, cui nomen Nazareth — escrevendo também o lugar em que sucedeu aquela grande tempestade, notou que fora na parte oposta e contrária à mesma Galiléia: Navigaverunt ad regionem Gerasenorum, quae est contra Galilaeam. — De sorte que ainda historicamente, e sem alegoria, quando os navegantes, no mesmo navio e no mesmo mar, se encaminharam ao lugar onde teve princípio o Rosário, navegaram prosperamente, e chegaram sem perigo; e quando puseram a proa na parte contrária, e se apartaram e deixaram aquela derrota, então padeceram a tempestade, de que só por milagre escaparam. Para que entendam todos os que andam sobre as águas do mar, e vejam, na diferença de um e outro sucesso, que é e foi, desde seus princípios, virtude própria do Rosário livrar aos que navegam das tempestades e perigos, e levá-los seguros e com bonança ao porto de seu desejo.

Também não ponderamos ainda a propriedade daquela palavra transfretavit. Transfretavit deriva-se de fretum, que é um dos quatro nomes do mar. O mar chama- se mare, chama-se pontus, chama-se aequor, chama-se fretum. E por quê? Os gramáticos, a quem pertencem estas etimologias, o dizem e distinguem com grande propriedade. Cum fremit esse fretum, dices; mare cum sit ama-rum; Pontus ponte caret; sed ab aequo dicitur aequor.

Chama-se o mar mare, porque é amargoso; chama-se pontus, porque é incapaz de ponte; chama-se aequor, quando está igual e sereno; chama-se fretum, quando está bravo e furioso, e, como leão, dá bramidos. Não é isto o que tememos e o que ameaçam os tempos? Sim. Ora, vejamos como este mesmo mar, ou este mesmo monstro, por virtude do Rosário, por mais que esteja bravo, se amansa, por mais que esteja furioso, se enfreia, e por mais que dê bramidos, se cala; e aquela mesma boca voraz, com que quer comer os navios inteiros, e tem comido tantos, a cerra e emudece. Tudo isto quer dizer: Transfretavit, et venit in civitatem suam — e tudo isto é ser Maria Domina maris:           Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.

E, posto que o concurso de um e outro Evangelho nos tem dado bastante fundamento para que assim o esperemos, por mais que o tempo e o lugar prometam ou ameacem o contrário, contudo, porque o temor é incrédulo e desconfiado, e a matéria tão importante, e de sua natureza duvidosa, para que o temor se anime, a incredulidade se persuada e a desconfiança se assegure, passemos do mar de Tiberíades a este nosso, e das flores de Nazaré às do Rosário; e na fé das Escrituras e experiência dos exemplos, não só quero que ouçamos, senão que vejamos com os olhos quão grandes são os poderes do mesmo Rosário nestes conflitos, e quão certos e infalíveis seus efeitos contra o mar, contra os ventos, e sobre todas as tempestades.


CAPÍTULO III

Significação misteriosa do fabuloso carro da visão de Ezequiel.

Aquele famoso carro de Ezequiel, cujo pavimento era um céu de cristal, fundado sobre quatro rodas, cada uma de quatro faces, e tiradas de quatro animais ou monstros, cada um de quatro rostos, o que principalmente representava é esta vastíssima campanha em que ao presente nos achamos, onde os mais furiosos elementos se dão as batalhas, o mar. Não é consideração ou interpretação minha, senão do mesmo texto. Falando das rodas, diz expressamente que eram semelhantes ao mar: Aspectus rotarum et opus earum quasi visio maris. — Eram rodas, porque o mar não tem quietação nem consistência; eram azuis, parte claro, parte escuro, porque esta é a cor do mar, ou pacífico, ou turbado; eram de quatro faces iguais, porque igual-mente se move o mar para as quatro partes do mundo, para onde as leva o vento. Se o vento é sul, corre o mar para o setentrião; se norte, para o meio-dia; se leste, para o levante; se oeste, para o poente; e isto mesmo diz o texto:    Quocumque ibat spiritus, illuc, eunte spiritu, et rotae pariter elevabantur.

Os quatro animais, ou monstros de quatro rostos, também eram ou representavam o mar. Por isso diz o mesmo texto que, quando batiam as asas, como se batessem as praias, o som que se ouvia era de muitas águas: Quasi sonum aquarum multarum. — Os quatro rostos eram de homem, de touro, de leão, de águia, porque é o mar, como lhe chamou Tertuliano, traidor de muitas caras; já de homem, quando manso; já de touro, quando bravo; já de leão, quando dá bramidos; já de águia, quando se levanta às nuvens. E a causa de todas estas mudanças é a maior ou menor força com que se move ou açoita o cocheiro desta grande carroça, o vento. O mesmo texto outra vez: Ubi erat impetus spiritus, illuc grandiebantur.

Sobre estas quatro rodas e sobre estes quatro monstros estava fundado o pavimento em forma de um céu, porque no meio do mar, como agora estamos, se olharmos em roda para todos os horizontes, parece que o céu por toda a parte se levanta do mar, e que sobre ele estriba e se sustenta. E nota Ezequiel — coisa muito digna de admiração e reparo — que, sendo o céu de cristal, olhando para ele metia medo: Et similitudo super capita animalium firmamenti, quasi aspectus crystalli horribilis. — Um céu de cristal claro, diáfano e transparente, parece que visto não podia causar horror. Mas diz, contudo, o profeta que era horrível, e que visto metia medo, porque era céu sobre mar, sem se ver outra coisa. E este é o primeiro horror que experimentamos nele os navegantes. Quando nos apartamos da vista da terra, e até as torres e os montes mais altos se nos escondem, esta mesma solidão imensa, em que se não vê mais que mar e céu, ainda que o céu esteja limpo e sem nuvem, e tão claro como um cristal, naturalmente causa aquele horror que por si mesmo se insinua nos corações humanos. Assim o ponderaram, sem mais expressão que a da mesma natureza, os mais entendidos poetas, Virgílio: Maria undique, et undique caelum. Ovídio: Caelum undique, et undique pontus. E o nosso, com maior experiência que todos neste mesmo mar: Não vimos, enfim, mais que mar e céu.

Pois, se o céu claro, resplandecente e formoso, neste lugar em que nos achamos causa horror, que será escuro, feio e coberto por toda a parte, ou envolto em nuvens espessas e negras, sem que de dia se veja o sol, nem de noite estrela? Se o mar quieto e pacífico, ou encrespado somente de uma viração branda e galerna, é temeroso, que será assoprado furiosamente do maior peso e ímpeto dos ventos, levantando montes que sobem às estrelas, e abrindo vales que descobrem as areias, e jogando a péla com uma nau da Índia, quanto mais com um lenho tão pequeno, como este nosso? E se em junho e julho, quando parece que os ventos dormem e os mares descansam, não há hora nem momento seguro sobre um elemento e debaixo de outro, ambos tão inconstantes, que se pode temer na entrada do inverno, quando todos os vapores recolhidos no verão se desatam em fúrias e tempestades? Bem o viu e experimentou o mesmo profeta, na primeira entrada com que se lhe mostrou à vista esta nova e prodigiosa máquina do seu carro, porque o que trazia diante de si era o medo, o terror, o assombro, em uma tormenta e tempestade desfeita de nuvens, de ventos, de fogo, de relâmpagos, de trovões, de raios: Et vidi, et ecce ventus turbinis veniebat ab aquilone, et nubes magna, et ignis involvens, et splendor in circuitu ejus.

Este é, amigos e companheiros, o lugar, o tempo e o perigo iminente em que estamos todos, com muito duvidoso e fraco socorro na arte e nas forças humanas. Tê-lo-emos, porém, muito poderoso, muito certo e muito seguro, como dizia, nas divinas, as quais viu o mesmo Ezequiel na parte superior e triunfante da mesma carroça. Sobre o pavimento dela viu um trono de safiras: Super firmamentum, quase aspectus lapidis sapphiri similitudo throni. — Sobre o trono viu um homem formado de ouro e prata, por outro nome, de eletro: Et super similitudinem throni quasi aspectus hominis desuper. Et vidi quasi speciem electri. — E em roda do trono e da majestade que nele assistia, viu um íris ou arco celeste: Velut   aspectum arcus, cum fuerit, in nube in die pluviae. Hic erat aspectus splendoris per gyrum. — Este trono, pois, de safiras, este homem de ouro e prata, e esta íris ou arco celeste, superior tudo, e dominante sobre o mar e sobre todos os ventos, que significava? O trono de safiras significava a Virgem Maria; o homem de ouro e prata significava o Filho de Deus e seu; o arco celeste significava o seu Rosário; e tudo junto significava o poder e domínio soberano que tem a Mãe de Deus, por   meio do seu Rosário, sobre o mar, sobre os ventos e sobre as tempestades e perigos dos que neles navegam. Provemos tudo por partes, e descubramos em cada uma delas as propriedades misteriosas que em si encerram.


CAPÍTULO IV

O trono de safiras, o homem de ouro e prata que  se via sobre esse trono, e a íris ou arco celeste. Os efeitos do Rosário figurados no arco celeste prelúdio da serenidade.

O trono de safiras é a Virgem Maria, Senhora nossa. Assim o dizem Santo Agostinho, S. João Damasceno, S. Bernardo, e particularmente S. Boaventura, sobre este mesmo lugar de Ezequiel: Ipsa est thronus ille sapphirinus, qui sicut in Ezechiele legitur, super firmamentum exaltatus est. E chama-se propriamente trono de safiras, porque as safiras são da cor do mar, em que se representa não só o nome de Maria, mas a significação dele: Domina maris. O homem que se via sobre este trono é o Filho de Deus feito homem. Assim o diz e prova, além dos outros padres, S. Pedro Damião: Fecit thronum, uterum videlicet intemeratae Virginis, in quo sedit illa majestas. Hanc sessionem Filii et cognovit et probavit Pater, ipso dicente: Tu cognovisti sessionem meam, et thronus tuus Deus in saeculum. — E era este homem formado de eletro, o qual, como dizem os autores da história natural, e com eles S. Gregório, se compõe de ouro e prata, para que na diferença e união destes dois metais, um mais precioso que outro, se significasse a divindade e humanidade do composto inefável de Cristo. Finalmente, a íris, ou arco celeste, representa o Rosário, não só por uma ou algumas propriedades, senão por todas.

A matéria e própria substância do arco celeste, como concordemente ensinam todos os filósofos, não é verdadeiramente outra mais que os raios do sol reverberados nas nuvens. E tal é toda a matéria do Rosário, o qual se compõe dos mistérios e ações do verdadeiro sol, Cristo, reverberadas na nuvem de sua humanidade, como feita de vapores da terra, elevados à união e alteza da divindade. A forma do mesmo arco são as cores que resultam dos raios do sol e seus reflexos, tantas e tão várias, como bem as pintou quem disse: Mille trahit varios adverso sole colores — sendo mais ainda em número e variedade as ações prodigiosas de Cristo, as quais, por testemunho de S. João, não caberiam escritas em todo o mundo, como não cabe nele o mesmo arco. Mas, assim como as cores deste se reduzem particularmente a três — verde, vermelha, e azul — assim aqueles mistérios se dividem no Rosário com outras tantas diferenças, que principalmente os distinguem. Os da infância de Cristo, que são os gozosos, e pertencem à cor verde; os de sua morte e paixão, que são os dolorosos, e pertencem à cor vermelha; e os de sua Ressurreição e subida ao céu, que são os gloriosos, e pertencem à cor azul.

Esta é a matéria e a forma do Rosário. E os efeitos, quais são? Os mesmos que havemos mister, e com razão nos têm em tanto cuidado, que são, assegurar- nos o mesmo Rosário com propriedade de verdadeiro arco celeste, do furor dos ventos e tempestades e do temor de seus perigos. Com o mesmo arco celeste assegurou Deus aos homens de não haver jamais outro dilúvio, que foi a maior tempestade que houve no mundo: Arcum meum ponam in nubibus, et recordabor foederis mei. — E não só por instituição divina, como naquele caso, mas também por razão natural — como bem notou Santo Tomás — nos assegura o mesmo arco de que nem as nuvens, nem o ar, nem o fogo — que são as três partes elementais com que se variam as suas cores — se poderão resolver em tempestade grande. E por quê? Porque as grandes tempestades não se fazem senão com nuvens crassas e grossas, e a íris não aparece senão em nuvens raras e leves, e as grandes tempestades cobrem e escurecem o sol, e sem sol e suas reflexões não pode haver íris. Por isso o antiquíssimo Pitágoras lhe chamou serenitatis praeludium: prelúdio e prenúncio da serenidade. Assim que na íris, ou arco celeste, não só se representa o Rosário e seus mistérios, senão juntamente o maravilhoso efeito de serenar as tempestades e nos assegurar de seus perigos.

Só a figura do mesmo arco parece que é imprópria desta significação, porque o arco celeste, como vemos, e como o descreve Plínio, forma somente um meio círculo: Nec unquam nisi dimidia circuli forma — e a figura do Rosário é um círculo perfeito. Mas a esta objeção acudiu maravilhosamente o mesmo Ezequiel, dizendo que a íris que cercava o trono triunfal da sua carroça, não era formada somente de meio círculo, senão de círculo inteiro: Velut aspectum arcus, cum fuerit in die pluviae. Hic erat aspectus splendoris per gyrum . — Notai a palavra per gyrum: à roda — e em roda do trono e do Senhor, que nele estava assentado, porque não era só meio círculo, como o que vemos no arco celeste, senão círculo perfeito, como o que forma o Rosário. De sorte que, assim como os pintores para pintarem a Virgem, Senhora nossa do Rosário, pintam a mesma Senhora com seu bendito Filho nos braços e um Rosário em roda, assim o profeta Ezequiel sobre o seu carro, em que se representava o mar movido e alterado dos ventos, pintou o trono de safiras, que é a Senhora, e, sobre o trono, o Homem-Deus, que é seu Filho; em roda de ambos uma íris, ou arco celeste, de círculo perfeito, que é o Rosário. Nem isto é contra a natureza do mesmo arco, antes muito conforme a ela, porque assim como o círculo do Rosário se aperfeiçoou e cerrou quando Cristo e sua Mãe subiram ao céu, assim quando o sol está no zênite, o mesmo arco se estende circularmente por toda a redondeza dos horizontes, como diz o Eclesiástico: Gyravit caelum in circuitu gloriae suae.

Sendo, pois, virtude própria do Rosário da Virgem Maria, segundo a propriedade do seu mesmo nome — Domina maris   — dominar os mares, moderar os ventos e serenar as tempestades, posto que o tempo e conjunção em que nos achamos as prometam e ameacem grandes, se por meio do mesmo Rosário invocamos o soberano patrocínio da Senhora do mar, ele nos defenderá tão poderosa como seguramente de todos seus perigos. E para que a consideração das causas naturais e seus poderes, nos não desanimem como costumam, saibamos que a mesma natureza, que na matéria, na forma, nos efeitos e na mesma figura do arco celeste, com tão esquisitas propriedades ou pintou ou ideou o Rosário, também se não esqueceu desta circunstância do tempo, como a mais temerosa e formidável, e de cujo eficaz remédio mais necessitamos.

Tudo quanto temos dito até agora do arco celeste é segundo a filosofia de Plínio, que ele chama manifesta: Manifestum est radium solis immissum cavae nubi repulsa acie in solem refringi, colorumque varietate, mixtura nubium, aeris, igniumque fieri. Certe nisi sole adverso non fiunt, nec unquam nisi dimidia circuli forma. — E diz mais este grande intérprete da natureza? Sim, e tão claramente como se hoje e nesta mesma circunstância falara conosco: Fiunt autem hyeme, maxime ab aequinoctio autumnali die decrescente. — Quer dizer que no princípio do inverno, depois do equinócio outonal, quando os dias começam a ser menores, então aparece mais freqüentemente o arco celeste. — Tal é pontualmente a circunstância e conjunção do tempo em que nos achamos. Pouco há que passou o equinócio outonal, já entrou o inverno, já começaram a minguar os dias e crescer as noites, e com elas a ser o tempo e o mar mais temeroso; mas nestas mesmas circunstâncias ordenou o céu que se instituísse a festa e memória do Rosário, para que ele, como arco celeste agora mais freqüente, nos serene as tempestades, ou nelas nos assegure dos seus perigos.

Dê-nos o primeiro exemplo aquele mesmo príncipe, cuja vitória no mar deu este dia ao Rosário, como o Rosário lhe tinha dado a vitória neste mesmo dia.


CAPÍTULO V

O milagre da salvação da armada do Príncipe Dom João de Áustria no Mar de Lepanto. Por que S. João, no Apocalipse, faz diferença entre as criaturas que estão no mar e as que estão nele. A salvação de Jonas e de João da Áustria descritas no Salmo CIII, em que Davi faz o panegírico do mar. Paralelo entre a baleia que comeu a Jonas e o peixe que salvou o galeão real.

A ocasião por que este dia se dedicou à solenidade do Rosário foi, como todos sabem, a vitória que o mesmo Rosário alcançou contra todo o poder otomano na famosa batalha naval do Mar de Lepanto, em que o príncipe Dom João de Áustria foi o Josué, que pelejou com a espada, o Papa Pio V o Moisés, que venceu com as orações, e a Senhora do Rosário a vara de Arão florescente, que na mesma hora da batalha, levada em procissão por todas as cidades da Cristandade, ao passo  que dava vitória, ia ostentando o triunfo. Mas assim como Davi, tantas vezes vitorioso nas tempestades de sangue, se temia mais das tempestades de água: Non me demergat tempestas aquae — assim lhe sucedeu ao mesmo príncipe austríaco não longe do mesmo lugar, no mesmo Mar Mediterrâneo.

Passando de Nápoles para Túnis com grossa armada, foi tal naquela travessa a fúria de tormenta, que os pilotos, desconfiados de todo o remédio e indústria humana, se deram por perdidos. Recorrendo, porém, todos aos socorros do céu, e invocando o católico e piedoso príncipe a sua singular patrona, e suplicando-a que, assim como lhe tinha dado vitória contra os inimigos, lha concedesse também contra os elementos, que sucedeu? Caso verdadeiramente raro, e com perigo sobre perigo e milagre sobre milagre, duas vezes maravilhoso. No mesmo ponto cessou a tempestade, mas não cessou o perigo. Cessou a tempestade, porque subitamente ficou o vento calmo e o mar leite; mas não cessou o perigo, porque o galeão que levava a pessoa real, sendo o mais forte e poderoso vaso de toda a armada, visivelmente se ia a pique. Tanta era a força da água que nele tinha entrado, e sucessivamente ia crescendo e dominando já as primeiras cobertas. As bombas, os baldes, os gamotes, e até os capacetes dos soldados, com que todos trabalhavam, nada bastava para vencer, nem ainda igualado golpe da corrente, que sem se saber por onde, os ia alagando. Já se vê quais seriam neste último aperto as vozes e clamores de toda aquela multidão militar e marítima, não havendo quem não chorasse mais a perda de tamanha e tão importante vida que a desgraça e naufrágio das próprias. Mas a soberana Rainha e Senhora do mar não sabe fazer mercês imperfeitas. Assim como tinha cessado a tempestade do vento, assim cessou a da água, que já rebentava pelas escotilhas. Achicaram de repente as bombas, o galeão no mesmo momento ficou estanque, e de alagado e quase sepultado, surgiu ou ressurgiu boiando sobre as ondas. De que modo, porém? Aqui foi a segunda e maior maravilha, então não conhecida, nem imaginada a causa, mas depois que chegaram ao porto, vista de todos com admiração e assombro.

Com a força da tempestade tinha-se aberto um rombo junto à quilha da nau, por onde a borbotões entrava o mar, quando um peixe do mesmo tamanho, por instinto da poderosa mão que o governava, se meteu pela mesma abertura, de tal sorte ajustado ou entalhado nela, que, sem poder tornar atrás nem passar adiante, cerrou totalmente aquela porta — que com razão se podia chamar da morte — e tanto que não entrou mais água, foi fácil lançar ao mar a que estava já dentro. Assim se vê hoje pintado em Nápoles, e pendente ante os altares da Virgem Santíssima, o retrato de todo o sucesso: a tempestade, o galeão naufragante, e o peixe que o salvou atravessado, em perpétuo troféu e monumento do soberano poder e nome de Maria, como Senhora, não só do mar, mas de quanto sobre ele navega ou dentro nele vive.

No capítulo quinto do seu Apocalipse ouviu S. João que todas as criaturas do mundo, as do céu, as da terra e as do mar, não divididas em três, mas unidas em um coro, louvavam o poder e glória do Cordeiro assentado no trono, e lhe davam graças: Et omnem creaturam, quae in caelo est, et super terram, et sub terra, et quae sunt in mari, et quae in eo, omnes audivi dicentes: Sedenti in throno, et Agno: benedictio, et honor, et gloria, et potestas in saecula saeculorum. —  O trono, em que está assentado o Cordeiro, já se sabe que são os braços da Virgem, Senhora nossa, e na mesma figura em que a veneramos debaixo do título do seu Rosário. Mas entre as outras criaturas que lhe tributam louvores, são notáveis os termos com que o texto fala nas do mar: Et quae sunt in mare, et quae in eo: e as que estão no mar, e as que estão nele. — Estar no mar e estar nele não é a mesma coisa? Parece que sim. Pois, por que faz esta diferença o Evangelista, distinguindo as criaturas que estão no mar das que estão nele: Quae sunt in mare, et quae in eo?

— Porque no mesmo mar uns estão dentro nele, e outros fora e sobre ele: uns estão dentro, e como moradores, que são os peixes; outros estão fora, e como passageiros, que são os navegantes. E porque uns e outros estão sujeitos ao trono de Deus e ao domínio da Senhora que o tem nos braços, por isso todos os que vivem, ou sobre as águas do mar, ou debaixo delas, louvam e devem louvar a Senhora do mar, como no nosso caso. Os navegantes, porque os livrou do perigo, e os peixes, porque se serviu de um deles para os livrar; os navegantes, porque os salvou da morte, e o peixe, porque por meio da sua morte lhes salvou a vida. Parece que quis competir a Senhora neste milagre com o de seu Filho no de Jonas, mas ouçamos a Davi, que ajuntou e cantou um e outro admiravelmente.

Hoc mare magnum, et spatiosum manibus: illic reptilia quorum non es numerus, animalia pusilla cum magnis. Illic naves pertransibunt. — Celebra Davi nestas palavras a grandeza do mar Oceano, não em toda sua largueza, senão no comprimento e extensão de seus braços: Hoc mare magnum, et spatiosum manibus. — E diz que ali — isto é, nos mesmos braços — há grande multidão de peixes, uns grandes, outros pequenos: Illic reptilia, quorum non est numerus, animalia pusilla cum magnis e que ali navegariam, e por ali passariam e atravessariam nas naus: Illic naves pertransibunt. — Mas, se bem se considera este panegírico do mar, parece que deixou Davi o mais pelo menos, e as maiores grandezas e maravilhas que nele se vêem pelas menores. Deixa a vastidão do corpo imenso do Oceano, e fala só no comprimento de seus braços, e com particular ponderação de serem mui estendidos.            Hoc mare magnum, et spatiosum manibus? — Sim. Porque entre os maiores braços do Oceano, o maior e mais estendido de todos é o Mediterrâneo e no Mediterrâneo sucedeu o caso de Jonas e da baleia, que neste panegírico se celebra. Assim o declarou logo o mesmo profeta, dizendo que Deus formara aquele monstro tão grande para o enganar e zombar dele: Draco iste quem formasti ad illudendum ei. — Assim foi, porque permitindo Deus à baleia que comesse e engolisse a Jonas, o engano, a zombaria e o jogo esteve em que não foi para o digerir e se sustentar com ele, senão para o salvar do naufrágio.

Até aqui é o que têm excogitado os expositores. Mas o profeta ainda viu e quis dizer mais que eles, porque não falou da salvação de um Jonas, senão de dois. João e Jonas é o mesmo nome, de que temos não menor intérprete que o mesmo Cristo, o qual uma vez chamou a S. Pedro filho de Jonas, e outra filho de João: Simon Joannis; Simon filius Jona. — E porque o caso do Jonas da Palestina, e do Jonas ou do João de Áustria, ambos sucederam no mesmo braço do Oceano, e no mesmo Mediterrâneo, esta foi a semelhança por que a harpa de Davi os acordou no mesmo salmo e os cantou juntamente. Por isso não fez menção de um só navio, senão de navios: Illic naves pertransibunt. — E por isso nomeadamente não falou só de peixes grandes, qual é a baleia, senão também, e em primeiro lugar, dos pequenos: Animalia pusilla cum magnis. — Mas, por que dos peixes pequenos em primeiro lugar? Sem dúvida porque, comparado um e outro caso, mais maravilhosa foi a salvação do segundo Jonas, por meio de um peixe pequeno, que a do primeiro, e tão celebrada, por meio do maior de todos. Comer a baleia a Jonas, essa é a sepultura que o mar costuma dar aos homens; mas que estando tantos homens sentenciados a ser comidos dos peixes, um peixe lhes acudisse e os livrasse, quem pode duvidar que foi maior maravilha? A baleia salvou um homem, o peixe pequeno quinhentos; a baleia ficando viva, o peixe perdendo a vida própria para conservar as alheias; a baleia não afogou a Jonas, o peixe afogou-se a si, para que tantos naufragantes se não afogassem; a baleia suspendeu a esperança três dias, o peixe acudiu à desesperação na mesma hora. E se a baleia foi figura da sepultura de Cristo, o peixe imitou a morte do mesmo Cristo, morrendo pela salvação dos homens. Nem a baleia nem o peixe, de tanto menor vulto, obraram por instinto próprio, senão a baleia governada por Deus, e o peixe por sua Mãe. Porém, se a traça ou jogo, como lhe chamou o profeta, com que Deus zombou da voracidade da baleia, conservando a Jonas vivo depois de comido, foi muito própria do seu poder e da sua sabedoria, mais engenhosa e mais sutil foi a invenção com que a Senhora cerrou a porta a todo o mar com um pequeno peixe vivo, e a conservou  cerrada com ele morto. Finalmente, o Rosário foi a maior invenção da Senhora, e esta a invenção mais galharda do seu Rosário.

Mas passemos do Mar Mediterrâneo a outro mar, também meio entre duas terras.


CAPÍTULO VI

A dupla misericórdia e o dobrado milagre concedido a uma nau espanhola no Canal de Inglaterra. Elegante descrição de uma tempestade marítima nos salmos de Davi.

Navegava para Flandres uma nau espanhola, e depois de ter embocado o canal de Inglaterra, mais arrimada pela contrariedade dos ventos à costa de França — onde ainda sem tormenta é maior o perigo — foi tal a força da tempestade que, não a podendo resistir, nem tendo para onde correr, deixado totalmente o governo ao arbítrio dos mares, e à fúria da travessia, nenhum duvidou que, ou sorvidos das ondas, ou despedaçados em algum penhasco todos pereciam. Ia na mesma nau um grande devoto da Virgem, Senhora nossa, chamado Pedro de Olava, o qual, no meio desta última desesperação, vendo que o piloto e marinheiros desmaiados nenhuma coisa faziam nem sabiam o que fizessem, já que as nossas mãos, disse, estão ociosas, tomemos todos nelas os rosários, invoquemos o socorro da Virgem Maria, e tenhamos confiança em seu poder e misericórdia, que a terá de nós. Assim o fizeram todos, e era espetáculo por uma parte lastimoso, por outra muito próprio da fé e devoção católica, ver a nau com as árvores secas, os mastaréus calados, as vêrgas abatidas e prolongadas, já subindo às nuvens, já descendo aos abismos, e os mareantes e passageiros todos com os rosários nas mãos, sem haver quem as pusesse em leme, em vela ou em corda, nem se ouvindo outras vozes mais que Ave-Maria, nem outros clamores mais que misericórdia. Bem creio que se abalariam os anjos do céu a lograr de mais perto uma tão formosa vista. Mas não foram eles sós. Porque a mesma Rainha dos Anjos cercada de luzes, aparecendo sobre a gávea maior se mostrou visível aos tristes naufragantes. E assim como seu Filho em semelhante perigo, desde a popa da barca de Pedro imperavit ventis, et mari, et facta est tranquillitas magna  — assim a Senhora, invocada das vozes e devoção de outro Pedro, e dos mais que o seguiram, com o império e majestade de sua presença serenou em um momento o mar, e cessou de repente a tempestade. Oh! que mudança tão súbita e tão alegre! Passam todos os rosários das mãos aos peitos, içam as velas, mareiam as escotas e as antenas; já o piloto manda, e o leme governa, e a nau ressuscitada, favorecida em popa de uma viração branda e galerna, caminha segura e triunfante ao porto. Não pararam, porém, as vozes dos devotos e venturosos navegantes, porque os cla-mores, com que pediam misericórdia à Senhora do Rosário, se trocaram em aclamações, em vivas, em louvores, e em repetida ação de graças a suas misericórdias.

Digo misericórdias, porque, se bem se considera o caso, não foi uma só a misericórdia, senão duas, assim como não era um só o naufrágio, senão dois. E que dois naufrágios eram? Um em que temiam perder-se, que era o da nau, e outro em que já estavam perdidos, que era o da arte. Assim o ponderou admiravelmente Davi, ou em outro caso semelhante, ou neste, que estava vendo como profeta. Tinha dito, como já dissemos, que as ondas naquela tempestade subiam ao céu e desciam aos abismos; Stetit spiritus procellae, et exaltati sunt fluctus ejus. Ascendunt usque ad caelos, et descendunt usque ad abyssos  — e passando a descrever os efeitos que a evidência de tão extremo perigo causou nos pilotos e marinheiros, diz assim: Anima eorum in mallis tabescebat. Turbati sunt et moti sunt sicut ebrius; et omnis sapientia eorum devorata est. — Todos desanimados, areados, pasmados e vivos, já com a cor e semelhança de defuntos: Anima eorum in mallis tabescebat — todos titubeando, e não se podendo ter em pé, arremessados com o balanço da nau de um bordo para outro bordo: Turbati sunt, et moti sunt sicut ebrius — todos fora de si, sem juízo, sem advertência, sem tino, porque toda a sua arte e ciência náutica se tinha já perdido: Omnis sapientia eorum devorata est. — Notai a palavra devorata est, em que a elegância e poesia de Davi excedeu à de quantos descreveram tempestades. Quando o navio se vai ao fundo, dizemos que o comeu o mar; e neste caso, posto que o navio ainda se sustentava em cima da água, a arte e a ciência náutica já o mar a tinha comido: Omnis sapientia eorum devorata est: — primeiro tragou a arte, para depois tragar o navio. Perdem-se os navios no mar como as repúblicas na terra. Nenhuma república se perdeu subitamente, e de uma vez. O primeiro naufrágio é o do governo, o segundo e último o da república. Tal era o estado dos tristes naufragantes, já perdidos no primeiro perigo, e esperando por momentos a perdição do segundo. E este foi dobrado milagre, não de uma só misericórdia, senão de duas misericórdias, com que a Senhora do Rosário os livrou. Uma, e grande, com que os preservou do naufrágio em que estavam para se perder; outra, e maior, com que os ressuscitou do naufrágio em que já estavam perdidos: Omnis sapientia eorum devorata est. — Tudo disse tão pontualmente o mesmo Davi. E para que nenhuma circunstância lhe faltasse, conclui relatando as orações a que recorreram, o remédio com que foram socorridos, e não só uma misericórdia, senão as misericórdias que alcançaram. As orações a que recorreram: Clamaverunt ad Dominum cum tribularentur; o remédio com que foram socorridos: Et statuit procellam in auram, et siluerunt fluctus ejus; e não só uma misericórdia, senão as misericórdias que alcançaram:  Confiteantur Domino misericordiae ejus, et mirabilia ejus filiis hominum.


CAPÍTULO VII

A salvação da galé-patrona saída do porto de Cartagena. As ondas decumanas. A admirável composição e contraposição do Rosário com o mar. Com muita razão equiparou o profeta neste caso as maravilhas com as misericórdias: Misericordiae ejus, et mirabilia ejus — porque, se as misericórdias foram dobradas, também foram dobradas as maravilhas. Em outra maravilha, porém, e em outra misericórdia da mesma Senhora do Rosário, com que quero acabar, veremos que os sucessos foram também dois, mas tão encontrados, e com circunstâncias tão notáveis, que nenhum cristão haverá dos que trazem a vida como nós, exposta ao mar e aos ventos, o qual não assente consigo uma de duas resoluções muito diferentes. E quais? Se no navio em que se acha se reza o Rosário, que navegue com grande consolação e confiança; e, pelo contrário, se nele se não reza, que vá em tal navio com grande desconsolação e temor. Vai o caso digno de toda a atenção.

Saíram do porto de Cartagena das Índias  duas galés em demanda de certos corsários, e era capelão da patrona Frei Bernardo de Ocampo, religioso de S. Domingos, o qual pregou e persuadiu nela a devoção do Rosário, com tal eficácia e sucesso, que os capitães, os soldados, os marinheiros, e a chusma dos forçados, todos, sem faltar nenhum, ainda quando remavam ao som ou compasso da voga, cantavam o Rosário da Senhora. Em todos os vasos da navegação são perigosas as tempestades, mas muito mais nas galés. E foi tão furiosa a que sobreveio a estas duas, zarpando entre umas ilhas, que as ondas pareciam montes. Passou uma, passou outra, passaram nove, e quando veio a décima, ou decumana, era uma serra de água tão alta e medonha que, dando-se todos por sepultados debaixo dela, levantaram a voz em grito: — Virgem do Rosário, valei-nos! — Nunca se viu no mar mais apertado transe! Mas a esta voz respondeu logo outra, repetindo também a brados: — Orça! orça! — Não era o piloto o que isto mandava, mas um menino formosíssimo, que com um rosário na mão direita apareceu a todos na tolda da proa, e não foi mais visto. Orçou o timoneiro, pondo a mesma proa à onda, a qual salvando em claro a galé, descarregou todo o peso sobre a segunda, que vinha na sua esteira, e de um golpe a meteu no fundo, sem escapar pessoa viva, nem aparecer sinal ou relíquia de tão horrendo naufrágio. Oh! Maria, Senhora do mar, quem haverá dos que andam sobre ele, tão cego, tão ingrato, tão inimigo de si mesmo, que todos os dias vos não saúde e invoque com o vosso santíssimo Rosário? E para que a vista de um caso tão lastimoso não causasse novo temor aos que tinham escapado, o mesmo mar no mesmo ponto os segurou de todo o perigo, ficando de repente tão quieto, sossegado e sereno, como se toda a sua fúria ou cólera a vomitara naquela onda.

Chamei-lhe decumana, ou onda décima, porque este é o nome com que os autores naturais declaram ou exageram a grandeza desmedida das que perfazem este número. Tem ensinado a experiência que, ainda na maior confusão das tempestades, guarda o mar tal ordem e tal medida nas ondas com que se vai enrolando que, repartidas de dez em dez, a decima é a que se levanta sobre todas com maior inchação, e cai com maior peso, e quebra com maior ruína. Assim o notou e lamentou o poeta nas suas tempestades do ponto ou mar Euxino: Qui venit hic fluctus, fluctus supereminet omnes, Posterior nono est undecimoque prior.

Daqui se segue que, não só por virtude milagrosa, senão ainda por certa antipatia como natural, tem o Rosário domínio sobre as ondas, e que esta foi uma das leis com que Deus desde o princípio sujeitou este elemento indômito, e o subordinou ao império de sua Mãe, como Senhora do mar. No capítulo oitavo dos Provérbios diz a mesma Senhora: Quando circumdabat mari terminum suum, et legem ponebat aquis, ne transirent fines suos, cum e o eram cuncta componens. — Quer dizer que, quando Deus nas idéias de sua eternidade andava pondo limites e dando as leis ao mar, a Senhora juntamente com o mesmo Deus andava compondo tudo. Deus punha, e a Senhora compunha; Deus punha as leis ao mar, a Senhora compunha as do seu Rosário, na forma em que as havia de dominar. Esta é a proporção admirável por que foi tal a composição e contraposição do Rosário com o mar que, porque Deus no mar dividiu de dez em dez o curso das ondas, também a Senhora do Rosário repartiu de dez em dez as fileiras das contas. Deus fez o mar, como todas as outras coisas: In mensura, et numero, et pondere: com conta, peso e medida; e a Mãe de Deus, que todas essas coisas compunha com ele: Cum eo eram cuncta componens — também compôs o seu Rosário com conta, peso e medida: a medida na igualdade dos terços, o peso na ponderação dos mistérios, a conta no número das contas. E como Maria, Senhora do mar e do Rosário, contrapôs nele décadas contra décadas, décadas de Ave-Marias, contra décadas de ondas, por isso o seu Rosário é o mais natural, o mais forte, o mais eficaz, e o mais próprio instrumento com que a Senhora do mar o domina e se mostra Senhora dele: Maria Domina maris.


CAPÍTULO VIII

Razões da misteriosa visão do Menino sem Mãe. Semelhanças entre a tempestade e o dia do Juízo. A ausência de Maria no dia do Juízo e a ausência da Esposa na parábola das Virgens. O maior encarecimento das obras de misericórdias é que só por elas serão sentenciados os da mão direita e os da esquerda. Por que, de duas galés, uma se salvou e outra se perdeu? O rio da cidade de Deus, cujo ímpeto converte todo o temor em alegria. A virtude das influências de Nazaré contra
as tempestades.

Daqui fica bem entendida a razão por que o soberano menino que ensinou a vencer a soberba, e parar o precipício da onda decumana, lhe opôs e mostrou o Rosário, para que o reverenciasse e temesse. Quem sabe que a corrente do Jordão, crescendo mais e mais para cima, e feito já o rio um monte de água altíssima, à vista só e reverência da Arca do Testamento o suspendeu e teve mão, para que se não precipitasse, não se admirará de que o mar tão soberbamente levantado naquela onda guardasse o mesmo respeito ao Rosário da Virgem Maria, de quem a Arca do Testamento só era figura e sombra.

Mas o que excede toda a admiração, e é digno de profundo reparo neste caso, são as outras circunstâncias dele. Se o menino que apareceu na galé era o Filho de Deus e seu, que a Senhora do Rosário tem nos braços, por que não apareceu ali a mesma Senhora, como pouco há vimos em semelhante perigo? E se aquela galé se salvou tão milagrosamente, a outra, que vinha na mesma esteira, também de espanhóis e católicos, por que pereceu no mesmo tempo, e não soçobrada de outra onda, senão da mesma? E, finalmente, se o instrumento desta maravilha foi o Rosário, por que o mostrou o menino nomeadamente na mão direita, e não em ambas, ou na esquerda, como notaram e juraram autenticamente todos   os que o viram? Ora, entendamos o que Deus e sua Santíssima Mãe quis que entendêssemos na visão e evidência de todas estas circunstâncias tão particulares.

Se há dia neste mundo semelhante ao dia do Juízo é o de uma grande tempestade no meio deste mar. Não é comparação minha, senão do mesmo profeta, que nos interpretou os outros milagres, falando literalmente do dia em que Deus virá manifestamente a julgar o mundo: Deus manifeste veniet; Deus noster, et non silebit. lgnis in conspectu ejus exardescet, et in circuitu ejus tempestas valida. — No dia do Juízo escurecer-se-á o sol, a lua e as estrelas, e isto é o que vemos ou não vemos em uma tempestade. Nem se vê sol, nem lua, nem estrelas, porque as nuvens espessas e negras escondem todas as luzes do céu, e tudo no mar, para maior horror, é uma escuridade medonha. Mas, para que chamo eu às tempestades semelhantes ao dia do Juízo, se os maiores horrores daquele dia serão a tempestade dele:            Et in terris pressura gentium prae confusione sonitus maris, et fluctuum, arescentibus hominibus prae timore? Andarão os homens — diz Cristo — atônitos, pálidos e mirrados de medo, pelo horror e confusão que lhes causará o sonido espantoso do mar e das ondas. Onde é muito para notar, que esta confusão e temor nunca visto semelhante nos homens, não o atribui o Senhor à portentosa mudança dos planetas, que verão todos escurecidos, senão à tempestade e roncos do mar, que ouvirão furioso e irado:     Et in terris pressura gentium prae confusione sonitus maris, et fluctum. — E se tanto horror causará aos que estarão em terra o sonido só ao longe do bater e quebrar dos mares nas praias, qual será no meio do mar, e dentro de quatro tábuas, ver bater a fúria das ondas, não só nos costados, mas quebrar com todo o peso dentro no mesmo navio? A cada golpe do mar se está ali tragando a morte. E não morte menos feia, menos miserável, nem menos nova, que a mesma com que acabarão os homens no dia do Juízo. Agora morrem os homens uns depois dos outros, ou de doença, ou de velhice, mas no dia do juízo, estando sãos, e robustos, e bem dispostos, todos na mesma hora acabarão sem remédio a vida: isto é o que sucede na perdição de uma tempestade. Os moços, os velhos, os meninos, todos ali enchem a sua idade e acabam juntamente os seus dias. Oh! que lastimoso modo de morrer, quando a idade prometia larga vida, e a saúde e as forças parece que a seguravam, não falando no horror e miséria da sepultura, sem sete pés de terra em que se enterrar, tragados das ondas, comidos dos peixes.

E se qualquer tempestade — para que conheçamos o nosso perigo — é semelhante a um dia do Juízo, a do caso que imos ponderando ainda teve outra circunstância particular muito própria daquele temeroso dia, e a maior e mais principal dele. A maior e mais tremenda circunstância do dia do Juízo é que naquele juízo se dá a sentença final, ou de salvação para uns, ou de perdição para outros; e isto é o que se viu no nosso caso. Todos os que iam em uma galé se salvaram,  todos os que iam na outra se perderam. E como houve misericórdia para uns e justiça para outros, esta é a diferença e a razão por que não veio a Mãe de misericórdia dar a sentença, senão seu Filho. No dia do Juízo, diz o texto Sagrado que aparecerá visivelmente a todos o Filho da Virgem: Tunc videbunt Filium hominis venientem. — E a Virgem virá também, e aparecerá juntamente com seu Filho?  Não. Virá o Filho só, sem a Mãe, como aqui veio. E por quê? Porque o Filho, como Juiz, livra e condena; a Mãe, como toda é misericórdia, onde há de haver condenação retira-se e não aparece. Na parábola das Virgens saíram as prudentes e as néscias a receber o Esposo e a Esposa:            Exierunt obviam sponso et sponsae  — mas quando foi ao entrar às bodas, só se faz menção do Esposo, e da Esposa não: Intraverunt cum eo ad nuptias. — Pois, se é certo que a Esposa entrou com o Esposo, por que se não faz menção dela ao entrar? Porque nesta entrada as virgens prudentes entraram e salvaram-se, as néscias ficaram de fora, e perderam-se, e onde há salvar e perder, onde há salvação de uns e perdição de outros, não se acha presente a Esposa, que é a Virgem Maria. Assim o afirma e ensina Santo Agostinho, dando a razão porque a mesma Senhora não aparecerá com seu Filho no dia do Juízo: Quia tempus non erit miserendi, et misericordiam impetrandi jam fugiet janua Paradisi Maria, quae hoc titulo ab Ecclesia insignitur, janua caeli, et felix caeli porta: — Alude o grande doutor à mesma parábola das Virgens, em que se diz que se fechou a porta: Et clausa est janua. — E como a Virgem Maria é a porta do céu: Janua caeli — por isso se não faz menção da Esposa, nem apareceu ali, antes fugiu, como diz o santo, de tal lugar: Jam fugiet janua caeli Maria — porque era lugar em que não tinha lugar a misericórdia: Quia tempus non erit miserendi.

Esta é, pois, a razão por que no nosso caso desapareceu ou não apareceu a Senhora do Rosário, e só apareceu com ele o Filho, que tem nos braços, e com ele nomeadamente na mão direita. No dia do Juízo os que se hão de salvar estarão à mão direita de Cristo, e os que se hão de perder à esquerda: Oves a dextris, haedos autem a sinistris  — e porque ali se haviam de salvar uns e perder outros, por isso o Senhor apareceu na galé dos que se haviam de salvar, com o Rosário na mão direita. Oh! grande privilégio! Oh! grande virtude do Rosário, para se salvarem nos dias do juízo do mar, e não se perderem nas tempestades os que o navegam! O maior encarecimento das obras de misericórdia, e do singular merecimento que têm diante de Deus, é que no dia do Juízo, calando-se todas as outras virtudes, só pelas obras de misericórdia serão sentenciados os da mão direita e os da esquerda. Aos da mão direita dirá Cristo: Venite benedicti, esurivi enim, et dedistis mihi manducare  — e bastarão só as obras de misericórdia para que se salvem. Aos da mão esquerda dirá pelo contrário:   Discedite maledicti, esurivi enin, et non dedistis mihi  — e bastará só a falta das obras de misericórdia para que se percam. E tal é o encarecimento igualmente verdadeiro com que Cristo mostrou o Rosário na sua mão direita aos que nesta ocasião se salvaram. Bem creio que entre os que iam nesta galé, haveria outros pecados, e entre os que iam na segunda haveria outras virtudes, mas como em toda esta se rezava o Rosário, e naquela não, esta foi a que se salvou, e aquela a que se perdeu sem remédio, sendo a mesma onda duas vezes prodigiosa, a que executou a sentença da salvação em uma, e a da perdição na outra.

E que navegante haverá que não seja muito devoto do Rosário, e que navio em que se não reze todos os dias à vista de um espetáculo, em uma parte tão venturoso e alegre, e na outra tão lastimoso e formidável? Se quando por este mar encontramos um mastro, uma tábua, ou qualquer outro sinal de naufrágio, por mais que o mar esteja quieto e sossegado, naturalmente se faz temer, e causa tão grande pavor, qual seria o dos que iam nesta galé, vendo em um momento ir-se a pique a companheira, soçobrada e sepultada da mesma onda de que eles tão milagrosamente tinham escapado?

No dia do Juízo diz o mesmo Cristo que estarão dois lavrando no mesmo campo, e que um se salvará, outro se perderá:  Tunc duo erunt in agro: unus assumetur, et unus relinquetur. — Que é este mar, senão um grande campo, e que são os navegantes, senão os lavradores dele? Com as quilhas e com as proas o aram, e com os remos nas galés o cavam. Deus condenou o homem a que lavrasse a terra, e a cobiça, com segunda maldição, o condenou a que lavrasse também o mar: Longum maris aequor arandum: latum mutandis mercibus aequor aro.

—Vede quanta diferença vai de lavrar o mar ou a terra! O que lavra a terra, se lavra o vale, não se lhe faz monte, se lavra o monte, não se lhe faz vale. Este campo não é assim. Vedes essa veiga ou várgea tão estendida, vedes essa planície imensa, tão quieta e tão igual; pois, não vos fieis de sua quietação nem de sua igualdade, porque debaixo dela estão escondidos grandes montes. Que excelentemente o notou e disse S. Jerônimo, e com tanta elegância como doutrina: Licet in modum stagni fusum aequor arrideat, licet vix summa jacentis elementi terga crispentur, nolite credere, nolite esse securi: magnos hic campus montes habet, intus inclusum est periculum, intus est hostis. — Ainda que o mar igual e quieto — como agora — vos pareça um tanque que se não move, ainda que o leve movimento com que risonhamente se encrespa, quase lhe não altere a igualdade, não o creais, nem vos fieis dele. Olhai que é um traidor que dentro em si tem encobertos os inimigos, e debaixo dessa planície estão escondidos grandes montes : Magnos hic campus montes habet. — Quando as duas galés começaram a lavrar este campo, ele estava muito igual; mas debaixo dessa igualdade se levantaram aqueles grandes montes, e o último maior de todos, de que uma só se livrou, e outra se perdeu: Unus assumetur, et unus relinquetur.

Sendo, pois, o perigo igual, e igual em uns e outros a fraqueza ou impossibilidade da resistência, se o remédio e salvação de uns esteve em rezarem o Rosário, e o naufrágio e perdição dos outros em o não rezarem, quem haverá, torno a dizer, que por não aplicar e se aplicar a um tão fácil remédio se exponha a tão extremo e invencível perigo, e em que tantos no mesmo tempo e lugar em que estamos têm perecido? Que desesperação e que tormento tão grande será no dia do Juízo o dos que perderão a salvação pela negligência de meios tão fáceis e tão leves, como aqueles com que os outros se salvaram? E que arrependimento e desconsolação tão desesperada seria a dos mesmos que nesta ocasião se perderam, sabendo — como sem dúvida lhes seria notificado no tribunal da Divina Justiça — que, se tiveram rezado o Rosário, como os companheiros, também a eles lhes perdoaria a onda que os sepultou, e se salvariam?

Não exorto aos que aqui nos ajuntou Deus a que ofereçamos à Virgem, Senhora nossa, e ao milagroso Menino, que sem se apartar de seus braços apareceu com o Rosário na mão aos que quis livrar, não os exorto, digo, a que lhe ofereçamos este pequeno tributo, e rezemos o seu Rosário, pois todos o fazemos todos os dias, e à vista de tantos e tais exemplos se não pode duvidar que de hoje por diante o faremos com maior devoção e afeto. O que só desejo persuadir a todos é que, quando suceda vermo-nos em alguma grande e perigosa tempestade das que ameaça o tempo e o lugar, nem por isso nos vença ou desmaie o temor, confiando firmìssimamente, que nos não poderá faltar a misericordiosa proteção da Virgem, Senhora nossa, e que, por mais que os montes escondidos debaixo desta planície, se levantem até às nuvens, os poderes do seu santíssimo Rosário nos livrarão de todo o perigo. Acabemos de ouvir a Davi, que não é muito se empenhasse tanto neste glorioso assunto, como tão próprio da Mãe daquele Filho, de que ele também se chamou pai.

Propterea non timebimus dum turbabitur terra, et transferentur montes in cor maris. Sonuerunt, et turbatae sunt aquae eorum; conturbati sunt montes in fortitudine ejus. — Ainda que a tempestade seja tão grande que pareça que os montes da terra se passaram ao mar, ainda que as águas desses montes, com sonido estrondoso e horrendo, quebrem umas sobre as outras, e ainda que a fúria e violência do mesmo mar seja tão forte que atire montes contra montes, e os confunda entre si, com tudo isso nenhum de nós temerá, diz o profeta : Propterea non timebimus. — E por quê? A razão que dá é notável: Fluminis impetus laetificat civitatem Dei; sanctificavit tabernaculum suum Altissimus: Porque a cidade de Deus, em que o mesmo Deus veio morar à terra, tem um rio, cujo ímpeto converte todo o temor em alegria. — Pois, contra a força de todo o mar turbado e levantado em montes: Conturbati sunt montes in fortitudine ejus — opõe Davi o ímpeto de um rio, e de corrente plácida e alegre:            Fluminis impetus laetificat civitatem Dei? — Eu bem sei, e todos sabemos, que há rios tão poderosos cuja impetuosa corrente vence o mar, e no meio dele lhe adoça as ondas; e, assim como há rios que adocem o  mar, não será maravilha que haja um rio que o amanse. Isso mesmo faz a chuva, por ser água do céu, que amansa as tempestades. Mas que rio é este, no qual o profeta reconhece tão extraordinária virtude? O mesmo profeta o diz:  Fluminis impetus laetificat civitatem Dei; sanctificavit tabernaculum suum Altissimus. — É o rio da cidade de Deus, onde o mesmo Deus veio morar à terra, que vem a ser a cidade de Nazaré, como declaramos no princípio, e o disse o nosso texto: Transfretavit, et venit in civitatem suam.

Que muito, logo, que assim como Cristo no mesmo navio — que noutra ocasião padeceu aquela grande tempestade — quando levava a proa em Nazaré, chegou ao porto sem perigo e com bonança, o mesmo experimentem, e com a mesma felicidade escapem de todos os perigos os que navegam debaixo da proteção da Senhora de Nazaré, a qual, como também deixamos provado, é a Senhora do Rosário, porque em Nazaré começou, e a Nazaré deram este nome as flores? E para que ninguém duvide que estas flores não são outras senão as rosas, este mesmo salmo, em que Davi celebra a virtude que têm as influências de Nazaré contra as tempestades, na língua hebréia, em que foi escrito, tem por título: Pro rosis — isto é, aqui se cantam os louvores das rosas. E como a Virgem Maria, sempre Senhora do mar por virtude do seu nome: Maria, Domina maris, enquanto Senhora do Rosário tem mais particular domínio sobre as tempestades:  Propterea non tibebimus dum turbabitur terra, et transferentur montes in cor maris. — Ainda que os montes mais altos da terra se passem ao meio do mar, onde nos achamos, não temos que desconfiar nem temer, não só esperando, mas crendo firmemente que debaixo da proteção de Maria de qua natus est lesus, passaremos felizmente este temeroso golfo — transfretavit — e chegaremos enfim ao porto desejado da nossa cidade, que por tantos títulos não é menos sua: Et venit in civitatem suam


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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão IX - Maria Rosa Mística"

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