domingo, 29 de setembro de 2013

Padre Antônio Vieira: "Sermão III - Maria Rosa Mística "

SERMÃO III - MARIA ROSA MÍSTICA

Quinimmo, beati qui audiunt verbum Dei.


CAPÍTULO I

Vantagens da oração mental sobre a vocal. Os dois altares do Templo de  Salomão A oração mental e vocal nas figuras do Testamento Velho. Já ouvimos  quão alta é a oração vocal do Rosário; hoje veremos quão profunda é a mental.

Quanta é a diferença que tem — posto que estejam tão juntos — na rosa o cheiro e a virtude, na árvore a folha e o fruto, no mar a concha e a pérola, no céu a aurora e o dia, no homem o corpo e a alma, e, para que o digamos por seus próprios termos, quanta é a vantagem que faz o entendimento à voz, tanta é a que tem — posto que irmãs entre si — a oração mental sobre a vocal. A vocal é o exterior da oração, a mental o interior; a vocal é a parte sensível, a mental a que não se sente; a vocal é um corpo formado no ar, a mental o espírito que a informa e lhe dá vida. A vocal recita preces, a mental contempla mistérios; a vocal fala, a mental medita; a vocal lê, a mental imprime; a vocal pede, a mental convence. A vocal pode ser forçada, a mental sempre é voluntária; a vocal pode não sair do coração, a mental entra nele e o penetra, e, se é duro, o abranda. A vocal exercita a memória, a mental discorre com o entendimento e move a vontade, a vocal caminha pela estrada aberta, a mental cava no campo, e não só cultiva a terra, mas descobre tesouros.

No Templo de Salomão havia dois altares um interior junto ao Sancta Sanctorum, em que se queimavam timiamas, outro exterior, no átrio, em que se matavam reses. Os que oram mentalmente, diz Orígenes, sacrificam no altar de dentro; os que oram com vozes, no de fora: Cum corde oravero, ad altare interius ingredior; cum autem quis clara voce et verbis cum sono prolatis offerre videtur hostiam in altari quod foris est. — Apenas há figura no Testamento Velho em que se não veja retratada esta grande diferença. A oração vocal é a voz do Precursor no deserto, a mental é o conceito da mesma voz, que reconhece o Messias e lhe manda seguir os passos; a vocal é a boca do leão de Sansão, a mental são as abelhas que nela fabricam os favos, mais doces pelo mistério que pelo mel; a vocal é o estalo da funda de Davi, a mental é a pedra que rompe a testa ao gigante, e, porque lhe penetrou o cérebro, o deitou em terra; a vocal são as trombetas de Jericó, que batem os muros, a mental é a espada de Josué, que degola os inimigos e sacrifica os despojos; a vocal é o pregão de Saul, a mental é a guerra apregoada, a que debela os amonitas, que liberta Jabes e descativa os cercados. Enfim, da vocal sobem ao céu vapores, da mental se acendem lá relâmpagos e descem raios, que alumiam os olhos, que ferem os peitos, que amortecem as paixões e desfazem em cinza os vícios.

Estes são os efeitos da oração do Rosário, que não só devemos celebrar, mas distinguir enquanto vocal e mental. Enquanto vocal, é maior no número; enquanto mental, no peso; enquanto vocal, reza muitas vezes duas orações; enquanto mental, contempla e medita quinze mistérios; enquanto vocal, fala e solicita o cuidado de Cristo com Marta; enquanto mental está sem nenhum outro cuidado aos pés de Cristo, e ouve com Maria. Uma orava com a boca, e outra orava  com os ouvidos. E isto é o que determino dizer e declarar hoje. Já vimos quão alta é a oração vocal do Rosário; hoje veremos quão profunda é a mental. Marcela disse: Beatus venter: Cristo respondeu: Beati qui audiunt. Marcela levantou a voz para que Cristo a ouvisse, e o Senhor abriu-lhe os ouvidos para que ela aprendesse. Aquele notável quinimmo bem mostrou que a lição era nova e mais subida; e assim o será também a do nosso discurso. No passado vimos como se reza o Rosário com a boca: Extollens vocem — neste veremos como se há de rezar o mesmo Rosário pelos ouvidos: Beati qui audiunt. — Para que nos ouça a Virgem Santíssima — cuja é a obra e o invento — e nos assista com sua graça, digamos: Ave Maria.


CAPÍTULO II

Assunto do sermão: rezar o Rosário pelos ouvidos. Quanta importância tiveram os ouvidos na concepção do Verbo.

Assim como pelos ouvidos de Eva entrou no mundo o veneno e a morte, assim pelos ouvidos da Virgem veio ao mundo o remédio e a vida. De que modo sai da boca do Padre o Verbo Divino. Por que pede Davi a Deus que ouça a sua misericórdia pela manhã?

Beati qui audiunt verbum Dei.

Rezar o Rosário pelos ouvidos, como prometi, é o assunto deste sermão, mais novo pelo desuso ou abuso, que pela novidade da matéria. Este foi o fim principal para que se instituiu a devoção do Rosário, de poucos bem rezado, e de quase todos mal entendido. Não foi instituído só para nós falarmos com Deus, e Deus nos ouvir a nós, senão para que Deus fale conosco, e nós ouçamos o que nos diz Deus: Qui audiunt verbum Dei. — Para restituir, pois, o Rosário à sua primitiva perfeição, ou para persuadir esta novidade aos que a tiverem por tal e para falar em matéria de si não muito clara com toda a clareza, dividirei o discurso em três partes. Na primeira, mostrarei que o Rosário se pode rezar pelos ouvidos; na segunda, que se deve rezar pelos ouvidos: na terceira, como se há de rezar pelos ouvidos: Beati que audiunt.

Começando pela possibilidade, no primeiro mistério do mesmo Rosário, e na soberana Instituidora dele, temos o maior e mais perfeito exemplar da grande parte que nesta altíssima obra têm os ouvidos. De dois modos concebeu a Virgem Maria o Verbo Divino, que também de dois modos é palavra de Deus: Verbum Dei. Concebeu-o no ventre e concebeu-o na mente.

Concebeu-o no ventre sacratíssimo, com privilégio singular a nenhuma outra criatura concedido: Beatus venter qui te portavit — e concebeu-o na mente, com aquela eminentíssima perfeição a que nenhuma outra alma pode chegar nem aspirar, posto que todas sejam capazes de conceber o mesmo Verbo mentalmente. E para que vejamos quanta parte tiveram os ouvidos em uma e outra conceição, ouçamos a S. Bernardo: Missus est coluber tortuosus a diabulo ut venenum per aures mulieris in ejus mentem transfunderet: No princípio do mundo foi mandada a serpente pelo demônio, para que, pelos ouvidos da mulher, lhe infundisse na mente o veneno. — E depois? — Vede a elegância da contraposição. — Missus est Gabriel angelus a Deo, ut Verbum Patris per aurem Virginis in ventrem et mentem ipsius eructare: E depois foi mandado o Anjo Gabriel por Deus, para que, pelos ouvidos da Virgem, assim no ventre como na mente se introduzisse o Verbo do Padre. — E a razão, proporção e correspondência por que a divina sabedoria o traçou e dispôs assim foi: Ut eadem via et antidotum intrare, qua venenum intraverat: para que pelo mesmo sentido do ouvir, por onde entrara a peçonha, entrasse também a triaga. — Eva ouviu, Maria ouviu: Eva ao demônio, Maria ao anjo; Eva recebeu na mente o engano, e no ventre o fruto maldito; Maria concebeu na mente a verdade, e no ventre o fruto bendito: Benedictus fructus ventris tui. — E com esta admirável contraposição de demônio o anjo, de mulher a virgem, de fruto a fruto, de corpo a corpo, e de mente a mente, assim como pelos ouvidos da primeira mulher entrou no mundo o veneno e a morte, assim pelos ouvidos da segunda — e sem segunda — veio ao mesmo mundo o remédio e a vida.

E se além da proporção e correspondência quisermos especular e apurar mais com que propriedade e energia ordenou Deus que os ouvidos da Senhora tivessem tanta parte neste primeiro mistério, donde manaram todos os outros do Rosário, da natureza e ofício do mesmo sentido de ouvir tirou a resposta S. Bruno, filosofando excelentemente, e falando com a Virgem desta maneira: Suscipe Verbum in corde et in utero, o Virgo, quia per aurem ingredietur in te quod nascetur ex te: Verbum enim est, et via verbi auris est: Ouvi, ó Virgem, o anjo; recebei o que vos diz e anuncia na mente e nas entranhas, e não duvideis que o Filho, que há de nascer de vós, haja de entrar pelos ouvidos em vós. — Por quê? Porque esse Filho, que há de ser vosso, é a Palavra do Padre e a porta e o caminho por onde entra a palavra, são os ouvidos: Verbum enim est, et via verbi auris est.

Deste modo rezam o Rosário pelos ouvidos aqueles que o exercitam todo, e não de meias; isto é, aqueles que não se contentam só com repetir de boca as orações vocais, mas consideram e meditam atentamente os mistérios, e ouvem com a mesma atenção o que neles inspira e fala Deus. A Senhora primeiro considerou o mistério: Cogitabat qualis esset ista salutatio — e depois, pelos ouvidos, concebeu o Verbo: Fiat mihi secundum verbum tuum. E nós, da mesma maneira, considerando primeiro mentalmente aquele mistério, e os outros do Rosário, concebemos pelos ouvidos o mesmo, e não outro Verbo, porque ouvimos o que por meio da meditação dos mesmos mistérios fala Deus conosco.

Sucede na nossa meditação, em admirável prova do que dizemos, o mesmo que ao Eterno Padre na produção do Verbo Divino. O Verbo Divino, que é a eterna palavra de Deus, de que modo vos parece que sai da boca do Padre. Ego ex ore Altissimi prodivi? Não pode haver semelhança nem propriedade mais própria. Contempla o Eterno Padre dentro em si mesmo a essência, os atributos, as perfeições e todos os outros mistérios da divindade, que só ele compreende, e desta contemplação compreensiva, com que Deus cuida em si, e se conhece e vê a si, nasce o Verbo Divino, que é a Palavra de Deus e todo o seu dizer: Dicere Deo est cogitando intueri, in quantum, scilicet, intuitu cogitationis divinae concipitur Verbum Dei — diz Santo Tomás. Pois, assim como da compreensão, com que Deus contempla intuitivamente os mistérios da divindade, se produz e nasce o Verbo, assim da meditação com que nós, na parte mental do Rosário, contemplamos os mistérios da Humanidade, unida à mesma Divindade, nasce o Verbo e Palavra de Deus, com que interiormente nos fala, e nós interiormente concebemos e mentalmente ouvimos: Qui audiunt verbum Dei.

Altamente está dito. Mas, quem nos confirmará esta tão sublime verdade? Seja o maior e mais experimentado espírito em uma e outra oração: Auditam fac mihi mane misericordiam tuam (Sl 142, 8): Fazei, Senhor — diz Davi — que eu de manhã ouça a vossa misericórdia. — Dois grandes reparos encerram estas quatro palavras. Todos, quando oram, pedem a Deus que, por sua misericórdia, os ouça; porém, Davi não diz que a misericórdia de Deus o ouça a ele, senão que ele ouça a misericórdia de Deus: Auditam fac mihi misericordiam tuam: Fazei que a vossa misericórdia seja ouvida de mim. — De sorte que a misericórdia de Deus é a que há de falar, e Davi o que há de ouvir. A razão deste extraordinário modo de pedir, ou dizer, depende do segundo reparo: Auditam fac mihi mane: Fazei que eu ouça a vossa misericórdia pela manhã. — E que mais tem para este requerimento a hora da manhã que as outras? Davi orava pela manhã, ao meio—dia e à tarde. Vespere, et mane, et meridie, narrabo. — Davi orava sete vezes no dia: Septies in die laudem dixi tibi. — Pois, se Davi orava tantas vezes, e em tão diferentes horas do dia, por que não pode nem requer, ou por que não presume nem espera que Deus lhe fale a ele, e ele ouça a Deus, senão na hora de pela manhã: Auditam fac mihi mane misericordiam tuam? O mesmo Davi o disse, e com tanta razão como nós o temos dito. Este santo rei orava de vários modos, já vocalmente, rezando salmos, já mentalmente, meditando, e a hora que particularmente tinha dedicado à meditação era a hora da manhã: In matutinis meditabor in te — e como pela manhã é que meditava, pela manhã é que esperava que Deus lhe havia de falar a ele, e ele havia de ouvir a Deus: Auditam fac mihi mane misericordiam tuam. — Tão certo é que com os que meditam fala Deus, e porque meditam, e quando meditam, o ouvem.


CAPÍTULO III

O que diz Davi e o que não diz em sua meditação. Ao que medita não lhe fala Deus de outra parte, nem de fora, senão dentro nele. O que tanto desejaram e não alcançaram os profetas, é o que gozam os professores da devoção do Rosário, se se aplicam a ela tão inteiramente como devem. Os que dizem que meditam e não ouvem. Sendo o Verbo de Deus, a palavra de Deus, ninguém pode considerar suas obras nem meditar seus mistérios que o não ouça. As duas portas da palavra.

Beati qui audiunt verbum Dei.

Daqui se segue que, quanto forem mais altos os mistérios que meditarem, tanto mais altas serão também as ilustrações com que Deus lhes falará aos ouvidos. Qual era a matéria das meditações de Davi naquele tempo: Meditatus sum in omnibus operibus tuis, in factis manuum tuarum meditabar. Meditava nas obras universais da onipotência, com que Deus criara e sustentava o mundo, e nas particulares da providência, com que escolhera, defendia e conservava o seu povo, que era o que Deus até então mais maravilhosamente tinha obrado. E se a meditação destas obras, posto que grandes, tão inferiores, merecia que o mesmo Deus respondesse a ela e fosse ouvido de quem as meditava, que juízo se deve fazer das inspirações, dos impulsos e das falas interiores, com que Deus penetrará os corações, e baterá suavemente os ouvidos dos que atentamente meditarem os altíssimos mistérios da Encarnação, do nascimento, da vida, da morte, da ressurreição do Filho de Deus, que são os de que se compõe o Rosário? Se as obras da criação, que só custaram a Deus uma palavra, falavam e eram com tanta admiração ouvidas de quem as meditava, as obras da Redenção, que custaram à mesma Palavra de Deus o sangue, do qual sangue, diz S. Paulo que fala melhor que o de Abel: Melius loquentem quam Abel (Hebr 12, 24) — que vozes serão as suas na atenta e profunda meditação delas, e quanto mais se farão ouvir? O mesmo profeta, que antevia os futuros que não chegou a ver, o disse: Ostende nobis, Domine, misericordiam tum, et salutare tuum da nobis. Audiam quid loquatur in me Dominus Deus: Acabai, Senhor, de mostrar aos homens até onde chegam os extremos de vossa misericórdia; acabai de nos dar e mandar ao mundo o nosso ou o vosso Salvador, pois é vosso Filho: Salutare tuum da nobis. — E então quando ele vier — se vier, Davi, em vossos dias — e nascer e morrer, e obrar todos os outros mistérios da Redenção, que é o que esperais da sua vinda, e da vista e consideração desses mesmos mistérios? — O que principalmente espero, e sobretudo desejo, é o que hei de ouvir interiormente quando ele dentro em mim me falar: Audiam quid loquatur in me Dominus Deus. — Notai o que diz Davi e o que não diz. Não diz que suspirava com tantas ânsias pela vinda do Messias, para ouvir o que ele havia de pregar exteriormente ouvido, senão para lhe ouvir o que lhe havia de falar interiormente meditado: Audiam quid loquatur in me. — Como se dissera não me alvoroça o que há de dizer a todos, senão o que me há de dizer a mim; nem tanto o que me há de dizer a mim, quanto o que me há de dizer em mim: in me. A Moisés falou-lhe Deus da sarça, a Jó falou-lhe de uma nuvem, ao Sumo Sacerdote falava-lhe do Propiciatório, ao que medita não lhe fala Deus de outra parte, nem de fora, senão dentro nele; in me — porque dentro dele está a meditação, por meio da qual lhe fala. Combinai o loquatur in me com o meditabor in te: eu meditarei nele, e ele falará em mim: eu com o silêncio e ele com a voz, eu calando e ele falando, ele dizendo e eu ouvindo: Audiam quid loquatur in me. Isto é o que considerava aquele tão grande rei como profeta, o qual, porém, não chegou a ter a ventura de ver e ouvir o por que tanto suspirava. Por isso aos apóstolos, que a tiveram, disse o Senhor: Dico vobis quod multi prophetae et reges voluerunt videre quae vos videtis, et non viderunt, et audire quae auditis, et non audierunt (Lc 10, 24): Para que conheçais e estimeis o bem de que gozais, vos digo que muitos profetas e reis desejaram ver o que vós vedes, e não o viram, e ouvir o que vós ouvis, e não o ouviram. — Um destes reis e um destes profetas, e o principal de todos eles, foi Davi, de quem o mesmo Cristo era e se chamou filho; e esta ventura que tanto desejou e não alcançou o rei mais mimoso e o profeta mais alumiado de Deus é a que gozam os professores da devoção do Rosário, se se aplicam a ela tão inteiramente como devem. Davi desejava ver os mistérios de Cristo, e ouvir o que interiormente lhe dizia: Audiam quid loquatur in me; e todos os que atentamente meditam os mistérios do Rosário, por meio da mesma meditação, vêem a Cristo e ouvem a Cristo. Vêem a Cristo porque, meditando seus mistérios, o fazem presente; e ouvem a Cristo porque os mesmos mistérios meditados falam: e se alguém não ouve o que o Senhor lhe diz por eles, é que os não medita.

Dirá, porém, algum dos que se têm por exercitados nesta meditação, que ele medita, mas não ouve. E para escusar este silêncio ou falta de ouvir, dirá também que os mistérios do Rosário todos são obras de Cristo, e não palavras, e que a meditação pode representar e ver o que ele fez, mas não pode representar nem ouvir o que ele não disse. A este argumento que não parece totalmente sofístico, responde Santo Agostinho, e com tanta agudeza como sua. Quem é Cristo? É o Verbo de Deus, e a palavra do Padre: logo, ninguém pode considerar suas obras nem meditar seus mistérios que o não ouça. E por quê? Porque a palavra não pode obrar senão falando; e como todas as obras da palavra falam, todas se ouvem: Quia ipse Christus Verbum Dei est, etiam factum verbi verbum nobis est. Porque Cristo é palavra de Deus, também as obras dessa palavra são palavras, porque a palavra não pode obrar senão falando. E se essas obras, que são palavras, alguém as não ouve, é porque lhes não entende a língua: Habent enim si intelligantur linguam suam. — Reparai na exceção de Agostinho, com que ficam excluídos os que dizem que meditam e não ouvem. Essas obras e esses mistérios de Cristo, si intelligantur: se se entendem, falam, se se não entendem, são mudos. As palavras que somente são palavras podem-se ouvir, ainda que se não entendam; as obras  que são palavras, se não se entendem, não se ouvem. Por isso vós não ouvis, porque não entendeis; e a causa por que não entendeis, é porque não meditais. Meditai e observai bem o que se vos representa em cada mistério, e logo ouvireis. A mesma Palavra divina o diz assim: Beatus homo qui audit me (Prov 8, 34): Bem-aventurado o homem que me ouve. — E que há de fazer o homem, Palavra divina, para vos ouvir? — Duas coisas: Vigiar e observar às minhas portas: Qui vigilat ad fores meas, et observat ad postes ostii mei. — A palavra tem duas portas, uma por onde sai e outra por onde entra: a porta por onde sai, é a boca, e, no nosso caso, o mistério, a porta por onde entra, é o ouvido, e, no nosso caso, a meditação. Se vós não meditais, como quereis ouvir? Meditai e observai vigilante e atentamente o mistério, e logo entendereis e ouvireis o que Deus vos diz nele: Qui vigilat, qui observat, qui audit. — E, ouvindo desta maneira, sereis dobradamente bem-aventurados, por testemunho de ambas as Escrituras: Beatus homo Qui audit me, beati qui audiunt ver bum Dei.


CAPÍTULO IV

Deve-se rezar o Rosário pelos ouvidos, não só por ser conveniente e mais útil, mas por ser totalmente necessário.

Distinção entre o falar e ouvir nas palavras do filósofo Sofar, amigo de Jó. Para Deus é mais aprazível a conversação dos simples, porque falam pouco e ouvem muito. Abraão, o homem que mais cortesmente soube falar com Deus. O justo não é justo porque fala muito, senão porque medita muito. 0 rezar sem meditar, não é oração, é verbosidade. Deus, aos que concedeu o ouvir, tira-lhes o falar, como a Moisés na sarça ardente. Os sussurros de Deus, frutos da oração vocal à mental.

Temos declarado a teórica do Rosário rezado pelos ouvidos. Mas antes que passemos à praxe, para que a recebamos e aceitemos melhor, será bem que vejamos as razões por que deve ser praticado por este modo, não só vocal, senão mentalmente, não só rezando, senão meditando, nem só falando, senão ouvindo. Digo, pois, que se deve rezar o Rosário pelos ouvidos, não só por ser mais conveniente e mais útil, mas por ser totalmente necessário. Mais conveniente da parte de Deus, porque assim lhe é mais agradável; mais útil da parte nossa, porque assim nos é mais proveitoso; e totalmente necessário, da parte do Rosário, porque, falando só, e não ouvindo, não será Rosário.

Prova esta última proposição — pela qual é bem comecemos, como fundamento das demais — aquele antiquíssimo filósofo Sofar, um dos três amigos de Jó, e distingue e aperta o ponto com tal energia, que ninguém em toda a Escritura o fez melhor: Numquid qui multa loquitur, non audiet? Aut vir verbosus justificabitur? Utinam Deus loqueretur tecum, et aperiret labia sua tibi (Jó 11, 2. 5)! É possível que tu, que falas muito, não queres ouvir? E cuidas que o teu muito falar te há de fazer justo? Oh! se Deus abrira a boca e falara contigo! — Cada palavra desta sentença é uma declarada censura contra o abuso geral com que se reza o Rosário. O instituto santíssimo e prudentíssimo desta soberana devoção dividiu-a em orações e mistérios, para que nós, como compostos de corpo e alma, ora falássemos vocalmente com Deus, ora o ouvíssemos mentalmente. E seria bem falarmos nós tudo e não ouvirmos nada: Numquid qui multa loquitur, non audiet? Pois isto é o que fazem ou desfazem os que só falam, e não meditam; os que só rezam com a boca, e não pelos ouvidos. Toda a oração, como já a definimos com S. Gregório Niceno, é um colóquio e conversação do homem com Deus; e a lei da boa e cortês conversação é falar e ouvir. E se a personagem que nos admite à prática for muito superior, que ensina a cortesia e a reverência? Falar pouco e ouvir muito. Notável coisa é que goste Deus de conversar com os simples: Cum simplicibus sermocinatio ejus! Não é muito mais aprazível a conversação dos doutos, dos eruditos, dos discretos? Para Deus, não.

Esses falam muito e ouvem pouco; os simples falam pouco e ouvem muito. Esses ouvem-se a si, e Deus quer quem o ouça a ele. Por isso gosta da conversação dos simples.

O homem que mais cortesmente sou falar com Deus foi Abraão: Loquar ad Dominum, cum sim pulvis et cinis — e vede como falava e como ouvia. A primeira vez que Deus apareceu a Abraão foi em Harã, e diz o texto: Dixit autem Dominus ad Abram (Gên 12, 1): Disse o Senhor a Abrão. — A segunda vez apareceu-lhe em Siquém, e diz o texto : Apparuit autem Dominus Abram, et dixit ei (Ibid. 7): Apareceu o Senhor a Abrão, disse-lhe. — A terceira vez apareceu-lhe em Canaã, e diz o texto: Dixitque Dominus ad Abram (Gên13, 14): E disse o Senhor a Abrão. — A Quarta vez apareceu-lhe na mesma terra, e diz o texto: Factus est sermo Domini ad Abram dicens; dixitque Abram: Domine Deus (Gên 15, 1 s): Disse Deus a Abrão, e Abrão disse a Deus. — Não sei se reparais nestas quatro aparições, e se achais nelas alguma diferença. Eu confesso que tenho lido estes textos algumas vezes, e nunca adverti o que advertiu Caetano e pede a todos que advirtam : Considera, prudens lector, quod in praeteritis tribus visionibus semper Abraham fuit auditor tantum; in hac autem quarta et audit et respondet: Considere o prudente leitor — diz Caetano — que Abraão nas primeiras três aparições Deus, ouviu e não falou palavra, e só nesta quarta — ouviu e falou. Pois se falou nesta, por que falou também nas outras? Porque falava com Deus Quem fala com Deus há de ouvir muito e falar pouco para falar uma vez há de ouvir quatro. Quem tanto ouve, e tão pouco fala merece que Deus lhe apareça muitas vezes. Ide agora, e falai o Rosário inteiro sem pausa, sem aguardar compasso, sem dar lugar a Deus a que também ele nos diga alguma coisa; e se vós falais tudo, e Deus não fala, como o haveis de ouvir?

Vai por diante Sofar: Aut vir verbosus justificabitur? Porventura cuidais que essa verbosidade e esse muito falar vos há de fazer justo? — Não. O justo não o faz

o muito que fala, senão o falar o muito que medita: Os justi meditabitur sapientiam, et lingua ejus loquetur judicium. Encontrada coisa parece atribuir a meditação à boca, e o juízo à língua: o juízo é o que medita; a boca e a língua a que fala. Mas o justo de tal maneira ajunta a meditação com a oração, e o mental do juízo com o vocal das palavras, que ainda com boca e com a língua medita, e não porque fala muito, senão porque medita muito, é justo. Não justo porque fala muito: Numquid vir verbosus justificabitur? — mas justo porque medita muito: Os justi meditabitur sapientiam. — Mas, para que é ir buscar a prova nas Escrituras, se a temos mais perto na experiência? Contai os que rezam o Rosário, e contai os justos. São tantos os justos como os que rezam o Rosário? É certo — ainda mal — que por cada cento que rezam o Rosário me não dareis um justo. E donde vem esta desigualdade tão grande, tão enorme e tão indigna? É porque Vir verbosus non justificabitur. Rezam e não meditam, e o rezar sem meditar, não é orar, é falar: em vez de ser oração é verbosidade. O que se reza sem meditação, sai da boca; o que primeiro se medita, sai do coração; e, ainda que seja uma só palavra, é oferta que se pode dedicar a Deus: Eructavit cor meum verbum bonum; dico opera mea regi. Então, cuidam os que isto fazem que a devoção do Rosário está em o rezar ou falar todo inteiro. Os que assim o rezam, sem meditar, falsamente se arrogam o nome de devotos da Senhora e do seu Rosário. O Rosário que a Senhora instituiu não é esse: logo, não são devotos do Rosário. Pois, que são? Quando muito são rezadores, e por isso, ou cegos ou mercieiros; mas justos não. Lembrem-se daquela sentença: Cum oratis, nolite multum loqui (Mt 6, 7): Quando orais não faleis muito. — E de quem é esta sentença? É do mesmo Cristo, que diz: Oportet semper orare (Lc 18, 1): Importa orar sempre. — E o mesmo Senhor, que nos manda orar sempre, manda que quando oramos não falemos muito, porque o falar não é orar. Por isso nem ele nos ouve nem nós o ouvimos.

Oh! se ouvíramos alguma vez a Deus! Isto é o que desejava e exclamava Sofar: Utinam Deus loqueretur tecum, et aperiret labia sua tibi (Jó ll, 5)! Oh! se Deus abrira uma vez a boca, e falara contigo! — E qual era a razão deste seu desejo? Porque falava com os que falam muito e não querem ouvir; e sabia que, tanto que ouvissem a Deus, mais haviam de querer ouvir que falar. Com ser Deus autor da natureza, no falar e no ouvir tem mui diferentes efeitos. Todo o mudo naturalmente é surdo, e todo o que ouve a Deus naturalmente emudece. A natureza aos que privou do falar tira-lhes o ouvir, e Deus aos que concedeu o ouvir tira-lhes o falar. Quando Deus apareceu a Moisés na sarça, e o mandou com a embaixada a Faraó, escusou-se Moisés com que não sabia falar: Non sum eloquens ab heri et nudiustertius. Mas contra isto está o que se refere nos Atos dos Apóstolos, que Moisés tinha estudado todas as ciências dos egípcios, e era nelas e na sua língua poderosamente eloqüente: Et eruditus est Moyses omni sapientia Aegypticrum, et erat potens in verbis (At 7, 22). — Pois, se Moisés era tão sabiamente eloqüente, e tão eloqüentemente sábio, como diz agora que não sabe falar? Ele mesmo deu a razão: Ex quo locutus es ad servum tuum, impeditioris et tardioris linguae sum (Êx 4 , 10): É verdade, Senhor, que eu antes deste dia falava expeditamente; mas depois que vós vos dignastes de me falar, e eu vos ouvi, no mesmo ponto se me tolheu a fala e atou a língua. — E porque Sofar sabia os segredos desta filosofia, por isso desejava que falasse Deus uma vez aos que só falam e não ouvem: Nunquid qui multa loquitur non audit? Utinam Deus loqueretur tecum! – A Virgem Senhora nossa não instituiu o seu Rosário só para falarmos rezando, senão para ouvirmos meditando; e o Rosário que é só de boca, e não de ouvidos, é tão diminuto e imperfeito que não merece o nome de Rosário, porque, não meditando os mistérios, falta a parte principal e essencial dele. Antes quero a terça parte do teu Rosário meditado, disse a Senhora a um seu devoto, e ainda menos da terceira parte, que todo ele inteiro sem meditação. E este conselho não só devem tomar todos, mas é necessário que o tomem, sob pena de o seu Rosário não ser Rosário.

Podem-me dizer, contudo, alguns dos que rezam e não meditam, que rezando o Rosário, sem meditar os mistérios, sentem, contudo, grandes afetos em seu espírito, assim de compunção para com Deus como de piedade e confiança para com sua Santíssima Mãe. Oh! como vos enganais convosco mesmos, mas venturosamente! Pergunto: e esse cuidar em Deus e na Virgem Maria, não é parte de meditação, posto que breve? Assim o prova e convence a Santa Madre Teresa contra os mesmos que em seu tempo rezavam vocalmente, e tinham medo da oração mental. Os afetos de devoção e piedade que sentem, quando assim rezam, também são efeitos da meditação, posto que imperfeita, e vozes ou sonidos breves e sutilíssimos com que Deus então lhes fala ou passa pelos ouvidos. Por isso no Livro de Jó se chamam estas falas de Deus, não vozes, senão sussurros, e esses que se ouvem furtivamente: Et quasi furtive suscepit auris mea venas susurri ejus. — Assim que, quando sentis esses afetos, já, sem o entender, começais a rezar pelos ouvidos, que por isso diz: Suscepit auris mea; e são uns como furtos, que faz a oração vocal à mental, saindo-se da sua esfera, que por isso diz: Quasi furtive; e são as veias do sonido, que ainda não chegam a ser voz desarticulada, que por isso diz: Venas susurri ejus. Mas daí mesmo se colhe que, se tão doce é o que se chupa nas veias, que será o beber na fonte? E se tanto obram na alma só os sussurros, as vozes declaradas que farão? Necessário é, logo, à essência do Rosário que perfeita e inteiramente se reze pelos ouvidos, para ser verdadeiro Rosário.


CAPÍTULO V

Conveniência do Rosário rezado pelos ouvidos. O que diz Cristo por boca de Jó. Os ouvidos, colocados de uma e outra parte da cabeça, são as balanças em que havemos de pesar o muito que fez Deus por nós. O devoto do Rosário comparado à rola dos Cantares. Por que promete o Esposo à Esposa, não outras jóias, senão arrecadas de ouro sobreprateado? Por que alega Cristo à Esposa os títulos de irmã, amiga e pomba imaculada? As lágrimas do presépio e as gotas de sangue figuradas pelo orvalho da noite.

E se da parte do Rosário é totalmente necessário rezar-se pelos ouvidos, da parte de Deus não é menos conveniente, porque só rezado assim lhe agrada e é aceito. Nenhuma coisa Cristo, Senhor nosso, mais deseja de nós que a justa estimação e ponderação do muito que fez e padeceu por nós: Utinam appenderentur peccata mea, quibus iram merui, et calamitas quam patior in statera! Quasi arena maris haec gravior appareret: Oh! quem me dera que as penas que padeço e os pecados por que padeço se puseram em fiel balança! E se veria claramente que excede tanto o peso das penas ao dos pecados quantas são as areias do mar! — Isto disse Jó em nome de Cristo, ou Cristo por boca de Jó, porque só em Cristo se verifica, e em Jó de nenhum modo. Em Jó não, porque qualquer mal de culpa, ainda que seja venial, excede sem comparação a todo o mal de pena, quanto é possível. E em Cristo sim, porque a mínima ação de Cristo, por ser de preço infinito, excede infinitamente a todos os pecados do mundo, pelos quais padeceu e pagou. E como, bastando a mínima ação de Cristo para remir mil mundos, foi tal o seu amor para com os homens que quis nascer, morrer, e obrar todos os outros mistérios de humildade, paciência e caridade que no Rosário se representam e consideram, a meditação atenta e a justa ponderação de todos eles é o que mais deseja de nós o soberano Redentor, e para isso nos pede os pesemos em fiel balança: Utinam appenderentur in statera!

Mas que parte tem ou podem ter nesta balança os ouvidos? Muito grande. Assim o declaram as mesmas palavras na língua em que falou Jó e é uma filosofia tão admirável como natural. Onde a nossa versão lê: in statera, o texto original tem: in bilancibus, in auribus. Bilances, são os dois escudos da balança em que as coisas se pesam; aures são as orelhas, instrumentos dos ouvidos. E por que se comparam ou declaram os dois ouvidos pelos dois escudos da balança? Porque este é o ofício que lhes deu a natureza, e a forma e o lugar em que os colocou. Como a natureza pôs a razão e o juízo, que é o fiel da balança, na cabeça, pôs-lhe também de uma e da outra parte os ouvidos, como dois escudos da mesma balança e como dois assessores do mesmo juízo. Mas, antes que fechemos o passo, ouçamos o grande comentador de Jó, o doutíssimo Pineda: Cum trutinam requirit, certe aequum auditorem et incorruptum aurium judicium requirit: est enim inter aures veluti inter duas lances media trutina rationis, et judicii, quod in capite residet. Ergo duae aures, ut quae audiuntur diligenti mentis trutina expendenda sint, homini concessae sunt. — Quer dizer: deu o autor da natureza ao homem dois ouvidos, e pô-los de uma e outra parte da cabeça, porque na cabeça tem seu assento a razão e o juízo; e assim o juízo, posto no meio, e os ouvidos, de uma e outra parte, vem a fazer uma balança natural, em que as coisas se pesam fielmente. — Esta é pois a razão por que o benigníssimo Redentor, que tomou sobre si a satisfação de nossos pecados, e pagou tanto mais do que devia, e padeceu tanto mais do que era necessário, e obrou em todos os mistérios de nossa Redenção tantos excessos quantos só podia inventar o seu amor, para mais obrigar o nosso, esta é a razão por que tanto deseja que na atenta meditação os pesemos, e por que, com o nome de balanças nos pede os ouvidos, para que, como em justas balanças, ponderemos os mesmos mistérios, e como por atentos ouvidos ouçamos o que eles nos dizem: Utinam appenderentur in bilancibus, in auribus.

E para que vejamos em próprios termos quanto Cristo, Senhor nosso, mais deseja e estima no Rosário esta ponderação dos ouvidos que a reza somente vocal do mesmo Rosário, assim como já ouvimos por boca de Jó o seu desejo, ouçamo-lo agora por boca de Salomão. Trata altamente Salomão esta diferença no primeiro capítulo dos Cantares, e como as suas comparações ali são tão extraordinárias, a que vos parece que compararia uma alma devota do Rosário, das que só o rezam vocalmente? Comparou-a a uma rola com o Rosário ao pescoço: Genae tuae sicut turturis — eis aí a rola; Collum tuum sicut monilia  — eis aí o Rosário. E por que não pareça que dar nome de Rosário ao que ali se chama colar é interpretação alheia do texto, o original hebreu, em que escreveu Salomão, diz que era feito de pérolas furadas e enfiadas: Margaritas perforatas, et filo copulatas — treslada Sanctes Pagnino, doutíssimo naquela língua. Assim que, nem o Rosário podia ser mais próprio nem mais precioso. Era também rezado com grande piedade e devoção, que por isso, quem o trazia ao pescoço é comparado à rola, cujos arrulhos são piedosos, e mais gemidos que vozes: Sicut turturis.

Isto é o que disse o Esposo, que é Cristo, à Esposa que é a alma; mas o que logo se segue, e acrescentou o mesmo Esposo, é digno de grande consideração e reparo: Murenulas aureas faciemus tibi, vermiculatas argento (Cânt l, 10): O que agora vos hei de fazer, Esposa minha, são umas arrecadas para as orelhas, e essas hão de ser de ouro, esmaltadas de prata.

— Não reparo em Cristo sobrepratear o ouro, como nós sobredouramos a prata, posto que isto tenha o mistério que logo veremos. Mas o que primeiro faz ao nosso caso é a conseqüência destas palavras sobre as que acabamos de referir. Se o Esposo acaba de louvar as pérolas do colar e os gemidos da rola, se o colar é o Rosário, e os gemidos a oração vocal, piedosa e devota — como explicam S. Gregório, S. Basílio, Teodoreto, e todos os padres comumente — por que se não dá por satisfeito disto o Esposo, e, querendo ornar e enriquecer a Esposa com novas jóias, as que trata de lhe fazer não são outras, senão as arrecadas? Porque as arrecadas, diz S. Bernardo, são jóias e ornato dos ouvidos. E como pelos ouvidos entram à alma as falas interiores de Deus na meditação, ainda que o Rosário que a Esposa traz ao pescoço seja de pérolas, e a voz com que o reza de rola piedosa e enternecida, não se satisfaz o Senhor inteiramente de que o reze só de boca, senão também pelos ouvidos. De boca sim, repetindo devotamente as orações vocais, em que a alma fala com Deus; mas muito mais pelos ouvidos, meditando atentamente os mistérios, em que Deus fala com a alma e ela ouve o que lhe diz.

E para que se veja que estes mistérios não são outros senão os do Rosário, todos de Deus enquanto homem, por isso as arrecadas eram de ouro sobreprateado: Aureas vermiculatas argento. — O ouro é a divindade, a prata a humanidade; e está o ouro debaixo da prata, porque debaixo da humanidade de Cristo está encoberta a divindade. Mas porque a mesma divindade, enquanto o Senhor viveu neste mundo, de tal maneira andava encoberta debaixo da humanidade que não deixava de reluzir nas obras da onipotência, essa é também a propriedade e elegância com que o prateado não era todo contínuo, senão aberto a partes, a modo só de esmalte ou filigrana, que isto quer dizer vermiculatas. Maior advertência ainda, e maior propriedade. Onde a Vulgata lê vermiculatas, diz a versão chamada Quinta Editio: cum distinctionibus argenti: com distinções de prata. De sorte que nas jóias, com que de novo se ornaram os ouvidos da Esposa, havia distinções, e essas distinções estavam na prata, e não no ouro. Por quê? Excelentemente. Porque na divindade, que é substância simplicíssima, não há distinção, e na humanidade e seus mistérios sim; e mais nos do Rosário, de que propriamente falava: uns gozosos, outros dolorosos, outros gloriosos, e em cada uma destas distinções outros cinco mistérios também distintos: Cum distinctionibus argenti. Em suma: que assim como em todos estes mistérios, por meio da meditação, fala Deus distintamente à alma, assim para todos e cada um deles lhes quer ter bem dispostos e preparados os ouvidos, e não só ornados, mas sobreornados: Murenulas aureas faciemus tibi. Até aqui o Esposo.

Agora fala a Esposa, e diga ela também o que o Esposo lhe diz quando lhe fala aos ouvidos: Vox dilecti mei pulsantis: Aperi mihi, soror mea, amica mea, columba mea, immaculata mea. Fala a voz de Cristo, e bate às portas da alma, que são os ouvidos: Voz dilecti mei pulsantis: o que lhe pede é que abra: Aperi mihi — e os motivos ou títulos que lhe alega para a persuadir é chamar-lhe irmã: soror mea; amiga: amica mea; pomba e imaculada: columba mea, immaculata mea. E por que alega Cristo estes títulos, e não outros, quando bate com a voz aos ouvidos da alma? É coisa verdadeiramente maravilhosa. Alega-lhe estes títulos, e não outros, porque neles se contêm distinta e nomeadamente todos os mistérios do Rosário: no primeiro título os Gozosos, no segundo dos Dolorosos, no terceiro os Gloriosos. Assim o notou, muito antes de haver Rosário, Justo Orgelitano, e o declarou tão sucinta como elegantemente: Soror, quia de sanguine ejus; amica, quia per mortem ejus reconciliata; columba, quia de Spiritu Sancto immaculata: Chama-lhe irmã porque na Encarnação unindo a si o Verbo a nossa humanidade, se fez irmão nosso: Soror, quia de sanguine ejus. — E estes são os primeiros mistérios do Rosário. Chama-lhe amiga, porque por meio da morte e Paixão de Cristo se reconciliou a natureza humana com Deus: Amica, quia per mortem ejus reconciliata. — E estes são os segundos mistérios. Chama-lhe, finalmente, pomba e imaculada, porque por meio da vinda e graça do Espírito Santo se lhe tiraram as manchas do pecado: Columba, quia de Spiritu Sancto immaculata. — E estes são os terceiros mistérios. Com estes títulos e motivos de seu amor bateu o Esposo às portas da alma para que lhas abrisse, e com estes somente, e nenhuns outros, porque não tem Cristo outra máquina nem outra bataria mais forte para render nossas almas que os mistérios do Rosário. Os nossos ouvidos são os batidos, e a sua voz é a que bate: Vox dilecti mei pulsantis.

Mas porque a Esposa nesta ocasião se mostrou menos diligente em acudir à voz do Esposo e lhe abrir as portas, que faria o Amante divino para prosseguir e conseguir a empresa em que tão empenhado estava o seu amor? Caso sobre todo o encarecimento notável, e no mesmo Deus estupendo! Torna o Senhor a instar no mesmo requerimento, e os motivos que de novo alega não são outros, senão os mesmos mistérios do Rosário mais vivamente representados: Quia caput meum plenum est rore, et cincinni mei guttis noctium (Cânt 5, 2): Compadecei-vos de mim — diz — Esposa minha, porque trago a cabeça coberta de orvalho, e me estão correndo pelos cabelos em fio as gotas das noites. — E que orvalho e que gotas, não da noite, senão das noites são estas? O orvalho — diz Filo Carpácio — é o da madrugada gloriosa em que Cristo ressuscitou: Caput Christi plenum est rore in resurrectione, quae mane facta est, cum ros in terram descendit. As gotas das noites não hão mister comentador, porque bem se está vendo que são as gotas das lágrimas da noite do nascimento, e as gotas do sangue na noite do Hôrto: Et factus est sudor ejus, sicut guttae sanguinis decurrentis in terram. De maneira que nas lágrimas do Presépio, acompanhadas de músicas de anjos, lhe alegou os mistérios Gozosos; nas gotas do sangue, espremidas da dor, da aflição e da agonia no Horto, os mistérios Dolorosos; e no orvalho da madrugada da Ressurreição alegre e triunfante, os Gloriosos. E não alegou nem disse mais o Esposo, porque para penetrar os nossos ouvidos e render os nossos corações, em chegando a nos representar e repetir uma e outra vez os mistérios do Rosário, não tem Cristo mais que alegar nem mais que dizer. Ainda desta segunda vez se escusou contudo a Esposa, e não abriu; mas, tanto que considerou e meditou o que tinha ouvido, não só abriu a porta, mas, saindo de casa, e como fora de si, pelas ruas, sendo de noite, e pelas portas da cidade, estando cercadas de guardas, roubada e, sobrerroubada, ferida, assim foi buscar o Esposo, até que o achou. E se tanto caso faz Deus, e tanto consegue de nós pelos mistérios do Rosário ouvidos e meditados, que muito é que estime mais e lhe seja mais aceito o Rosário por este modo, que rezado só vocalmente.


CAPÍTULO VI

Benefícios da meditação dos mistérios do Rosário. Diz Davi que o seu coração meditava dentro nele, porque muitos não têm o seu coração dentro em si, senão fora de si. Cristo mais quer ser ouvido que comungado. Razões do lastimoso milagre dos que comungam e não se sentem abrasados. Por que dizem os discípulos de Emaús que lhes ardia o coração quando o Senhor lhes falava, e não quando comungavam seu corpo? O salmo das vozes de Deus. O aperfeiçoamento dos ouvidos. Se Cristo, no Sacramento, antes quer ser ouvido que comungado, como não estimará mais no Rosário o ser ouvido que ouvi-lo rezar?

Finalmente, que da nossa parte nos seja mais útil esta mesma meditação dos mistérios, e ouvir o que Deus nos diz por ela, só o poderá duvidar quem ignore o que todos sabem, que por falta de consideração se perde o mundo. Já dissemos ou já nos disse Davi que na sua meditação lhe falava Deus. E se lhe perguntamos quais eram os efeitos que experimentava neste meditar e neste ouvir, ele mesmo no-lo dirá, e não sem grande confusão dos que rezam o Rosário e o perdem, porque o não meditam: Concaluit cor meum intra me, et in meditatione mea exardescet ignis (S1 38, 4): Meditei — diz Davi — e por meio da meditação se me acendeu no peito tal fogo, que o meu coração dentro em mim ardia. — Nota aqui advertidamente o Cardeal Hugo, e repara muito em dizer Davi que o seu coração ardia dentro nele: Cor meum intra me: O meu coração dentro em mim. — Pois, onde havia de estar o vosso coração, Davi, senão dentro em vós? — Podia estar lá por onde ele andou noutro tempo, quando eu não meditava; podia estar lá por onde andam também os corações de muitos que rezam o Rosário, sem meditação no mesmo tempo em que o rezam: Multi enim sunt qui non habent cor intra se, sed extra, ad temporalia et mundana quaecumque, nec possunt calefieri: Diz Davi que o seu coração, quando meditava, ardia dentro nele, porque muitos não têm o seu coração dentro em si, senão fora de si, e muito longe. Fora de si, porque não cuidam em si, e muito longe de si, porque todos seus cuidados andam só atentos e aplicados às coisas temporais e mundanas, que amam. — Donde vem que, assim divertidos e esquecidos do que só importa, não podem conceber o fogo divino, que de frios os aquente, de duros os abrande e de cegos os alumie, que são os dois efeitos da meditação. O primeiro, tirar e trazer o coração de lá por onde anda distraído e perdido, e metê-lo dentro em nós: Cor meum intra me — o segundo, de frio, duro e cego, pegar nele o fogo do amor divino, alumiá-lo, acendê-lo e abrasá-lo: Et in meditatione mea exardescet ignis.

Isto é o que faz a meditação, e nenhuma mais própria e eficazmente que a dos mistérios do Rosário. Nos primeiros, e gozosos, da infância de Cristo, como não se acenderá o fogo nas palhas do presépio? Nos segundos, e dolorosos, da Paixão, como não se ateará com muito mais força nos espinhos e lenhos da cruz? Nos terceiros, e gloriosos, da Ressurreição e Ascensão, como não subirão as chamas até o céu, donde desçam por reflexão, como desceram, em línguas de fogo? Coisa digna de grande reparo é que, descendo o Espírito Santo, viesse em forma de fogo e em figura de línguas. Mas assim havia de ser para obrar o a que vinha. Em fogo, porque vinha acender os nossos corações, e em línguas, porque, para acender os corações, há de entrar pelos ouvidos. Onde, porém, acharei eu algum meio que convença a verdade desta conclusão, e a persuada eficazmente a todos os que rezam o Rosário?

Muito há, Senhor, que, parece, me esqueço de que estais presente, pois não recorro aos auxílios de vossa divina sabedoria, para dar a maior autoridade a quanto tem dito o meu discurso. Mas advertidamente me fui dilatando até este ponto, que é mais particularmente vosso. Encarnado e sacramentado, sempre sois Verbo, e, posto que no silêncio desse Sancta Sanctorum parece que não falais, também aí quereis ser ouvido. E como o intento de vosso amor nessa esfera de fogo, posto que coberta de neve, é acender nossos corações, dai-me licença para que pregue a este auditório que mais quereis ser ouvido que comungado. Se mais vos agrada o Rosário dos ouvidos que o da boca, por que não direi eu o mesmo desse Sacramento? Assim o digo, fiéis, e assim o provo, ou assim vos explico e declaro o que tão provado está em nós quanto não devera: Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur (Lc 12, 49): Diz Cristo que veio lançar fogo à terra, e que nenhuma outra coisa quer senão que se acenda. — Pois, se este fogo divino está todo naquela sarça, e multiplicado em todas as partes da terra, como se não acende a terra? Numquid potest homo abscondere ignem in sinu, ut vestimenta illius non ardeant (Prov 6, 27)? Porventura — diz o Espírito Santo — pode um homem esconder o fogo no seio, sem que se lhe abrasem as vestiduras? — Pois, como recebemos nós tantas vezes, e metemos dentro no peito aquele fogo, sem que o mesmo peito se abrase? A razão deste lastimoso milagre é porque não ouvimos a quem comungamos. Comungamos a Cristo, mas não ouvimos a Cristo; e Cristo, para acender corações, mais eficácia tem ouvido que comungado. Vede claramente.

Caminhava Cristo para Emaús, também disfarçado como ali está, até que os dois discípulos fizeram alto para passar a noite. Deixou-se o Senhor convidar, assentou-se à mesa, consagrou o pão, partiu-o entre ambos, e, conhecido, desapareceu. Tudo isto encerra grandes mistérios, mas o que eu considero ainda espera pela segunda parte da história. Voltam os dois discípulos para Jerusalém, já não tristes, mas cheios de alegria e alvoroço, já não fracos na esperança, mas confirmados na fé, e, conferindo o que lhes tinha sucedido, diziam entre si: Nonne cor nostrum ardens erat in nobis dum loqueretur in via (Lc 24, 32)? Não vistes como nos ardia o coração quando nos falava pelo caminho? — Tende mão: aqui reparo e argúo os mesmos discípulos. Duas coisas tinha Cristo feito, uma no caminho, outra na mesa, e esta ainda maior, porque no caminho praticava com eles; na mesa, deu-lhes seu próprio corpo sacramentado. Pois, se dizem que lhes ardia o coração quando o Senhor lhes falava, por que não dizem que lhes ardia quando comungaram seu corpo? Quando comungaram estava Cristo mais perto do seu coração, quando lhes falava estava mais longe; quando comungaram estava dentro neles, quando lhes falava ia somente com eles: Ibat cum illis (Lc 24, 15). — Pois, se lhes não ardia o coração quando comungaram, por que lhes ardia quando somente o ouviam? Por isso mesmo: porque o ouviam. E para acender e abrasar corações, parece, tem mais eficácia Cristo ouvido que Cristo comungado. Comungado desce ao peito, ouvido acende o coração. E se ouvido em um só mistério do Rosário, que era o da sua Ressurreição, causa tão prodigiosos efeitos, que será em todos os mistérios? Ouçamos a Cristo no Rosário e ouçamo-lo no Sacramento; e para ouvirmos o que nos diz, meditemos aqueles mistérios, e meditemos este, que, ainda que parece mudo, todo é vozes.

Ouvi agora o que muitas vezes ouvistes e reparai no que nunca reparastes. É o salmo vinte e oito: Afferte Domino, filli Dei, afferte Domino filios arietum. Afferte Domino gloriam et honorem; afferte Domino gloriam nomini ejus; adorate Dominum in atrio sancto ejus (S1 28, 1): Oferecei ao Senhor, filhos de Deus, oferecei ao Senhor cordeiros, oferecei-lhe honra e glória, e adorai-o no seu santo templo. — Dizem comumente os expositores que exortava aqui o profeta à freqüência dos sacrifícios do seu tempo. Mas eu digo que nem falava com os homens do seu tempo, nem dos sacrifícios do seu tempo, senão do nosso; e provo uma e outra coisa. Não falava com os homens do seu tempo, porque lhes chama filhos de Deus: Afferte Domino, filii Dei — e o ser filhos de Deus é próprio dos cristãos e da lei da graça, como diz S. João: Dedit eis potestatem filios Dei fieri (Jo 1, 12). Nem falava dos sacrifícios da lei velha, porque faz menção de um só sacrifício, e esse de cordeiro, que é o de que também disse o outro S. João: Ecce Agnus Dei, ecce qui tollit peccata mundi. — E não encontra a propriedade desta significação o falar em plural, porque essa é uma das maravilhas deste sacrifício, e deste Cordeiro: ser um só, e estar multiplicado em toda a parte, como se foram muitos. Isto posto, lede agora o resto de todo o salmo, e vereis que em todo ele não faz outra coisa o mesmo profeta que encarecer-nos a voz e as muitas vozes do Senhor: Vox Domini super aquas; vox domini in virtute; vox Domini in magnificentia; vox Domini confringentis cedros; vox Domini intercidentis flammam ignis; vox Domini concutientis desertum; vox Domini praeparantis cervos. Pois, se o tema e o assunto do profeta é o sacrifício e Sacramento do altar, como todo o seu discurso nem é da verdade e realidade do mistério, nem do amor, nem da fineza, nem das maravilhas e infinitos milagres que nele se encerram, senão das suas vozes e mais vozes, sete vezes repetidas? Que tem que ver o Sacramento com as vozes, ou as vozes com o Sacramento? Esta mesma admiração mostra bem o mal que entendemos no Diviníssimo Sacramento o que primeiro que tudo e mais que tudo devêramos entender. Cuidamos que Cristo no Sacramento está mudo, e sua presença ali toda é vozes.

Cuidamos que satisfazemos à nossa obrigação com sacrificar, com adorar, com comungar, sem tratarmos de ouvir, e isto é o que o Senhor mais deseja e espera de nós. Por isso o profeta, deixando tudo o mais que pudera dizer de suas excelências, só nos prega e apregoa as suas vozes, como eu também faço agora, porque esta é a doutrina e o aviso mais importante à nossa desatenção, e o espertador mais necessário aos nossos ouvidos. Muito estima Cristo no Sacramento o ser adorado, o ser venerado, o ser servido e festejado, e, sobretudo, o ser comungado; mas o ser ouvido, muito mais.

Mais que isto parece que dizem outras palavras do mesmo Davi; mas não  dizem mais que isto, e o provam admiravelmente: Sacrificium et oblationem noluisti; aures autem perfecisti mihi (S1 39,7): Vós, Senhor — diz Davi — não quisestes oblações nem sacrifícios, mas aperfeiçoastes-me os ouvidos. — Quando Deus, em frase da Escritura, diz que quer uma coisa e não quer outra, não quer dizer que não quer totalmente esta segunda, senão que antes quer e mais quer a primeira. Assim diz: Misericordiam volo, et non sacrificium  — não porque Deus não queira o sacrifício, mas porque quer, mais que o sacrifício, a misericórdia. E do mesmo modo se há de entender a sentença proposta de Davi: Sacrificium et oblationem noluisti; aures autem perfecisti mihi. — Quer dizer: — Vós, Senhor, mais quisestes a perfeição dos meus ouvidos que a oblação dos vossos sacrifícios. — De sorte que, sendo o Sacrifício e Sacramento do Altar a maior coisa que Deus pode receber de nós enquanto Sacrifício, e a maior que nós podemos receber de Deus enquanto Sacramento, diz contudo Deus que mais quer os nossos ouvidos, e que por isso no-los aperfeiçoa: Aures autem perfecisti mihi.— Vede se tive eu fundamento para dizer que mais quer Cristo de nós o ser ouvido que o ser comungado. Mas qual é ou pode ser a razão?

Comungar a Cristo é receber o que Cristo é; ouvir a Cristo é perceber o que Cristo diz. Como pode logo ser melhor ouvir o que diz que perceber o que é? A instância é forte, mas a solução fácil e verdadeira está nas mesmas palavras: Aures autem perfecisti mihi. — Há ouvir com ouvidos perfeitos e ouvir com ouvidos imperfeitos: ouvir com ouvidos imperfeitos, é ouvir somente, sem obrar; ouvir com ouvidos perfeitos, é ouvir e efetuar o que se ouve. E quando se ouve desta maneira, melhor é ouvir a Cristo que comungar e receber a Cristo. O mesmo Cristo o disse. A mulher do Evangelho louvou a Senhora por trazer dentro em si a Cristo: Beatus venter qui te portavit — e o Senhor replicou, dizendo: Quinimmo beati qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud: que melhor era ouvir a palavra de Deus, e guardá-la. — Logo, melhor é ouvir a Cristo, guardando o que diz, que comungar a Cristo, recebendo em si o que ele é.

E daqui ficam convencidos todos os que rezam o Rosário quanto mais útil e importante lhes é rezá-lo pelos ouvidos. Que comparação tem o Rosário somente rezado com a boca, com o mesmo Cristo, e todo Cristo, não só tomado na boca, mas passado ao peito, e recebido e entranhado dentro em nós? Pois, se Cristo no Sacramento antes quer ser ouvido que comungado, como não quererá e estimará mais no Rosário o ser ouvido que ouvi-lo rezar? E se a razão desta diferença é ter mais eficácia Cristo ouvido para penetrar e acender nossos corações, que coração haverá tão frio, tão duro, tão cego, que não queira receber pelos ouvidos este divino incêndio? O que importa logo a todos os que rezam o Rosário, é aplicar os ouvidos meditando, e aperfeiçoá-los executando o que ouvirem: Aures autem perfecisti mihi  — porque deste modo se farão dignos de ouvir da boca de Cristo: Beati qui audiunt verbum Dei.


CAPÍTULO VII

O profeta Habacuc, o que melhor e mais claramente praticou a oração mental. De que nos argúi Deus nos mistérios do Rosário? De que mistérios falou o profeta quando diz que ficou mudo de pavor e de pasmo? Parece-me que, suposta a evidência destes três motivos: da parte nossa, cujo proveito devemos procurar, tão útil; da parte de Deus, a quem queremos agradar, tão conveniente; e da parte do mesmo Rosário, cuja devoção professamos, tão necessário, nenhum entendimento haverá que se não deixe convencer, e nenhuma vontade que não esteja afeiçoada ao inteiro e perfeito exercício do mesmo Rosário, não só rezando as orações, mas meditando os mistérios, nem só falando vocalmente com Deus, mas ouvindo mentalmente o que ele nos diz.

Vindo, pois, à praxe desta grande obra — grande, mas nem por isso dificultosa — quem melhor e mais claramente a praticou foi o profeta Habacuc, o qual no capítulo segundo, e no texto original, diz desta maneira: Super speculam meam stabo, et figam gradum super gyrum, et contemplabor ut videam quid dicatur mihi, et quid respondeam ad arguentem me: Subirei — diz o profeta — à minha atalaia — assim chama ao lugar de oração, porque ela é alta, e esta vida milícia; e como da vigilância da sentinela depende a segurança da cidade, sem oração, e vigilante oração, não está a alma segura: Super speculam meam stabo. A palavra speculam, donde tomou o nome a especulação, declara o gênero da oração de que fala; e que não fala da oração vocal, senão da mental, cujo ofício é especular, considerar, meditar. Supõe que esta atalaia da oração a que sobe, é formada em um círculo — como se tratara propriamente do Rosário — e diz que não há de rodear e correr o círculo, senão parar e fixar o pé nele: Figam gradum super gyrum — porque os que rezam só vocalmente vão dando volta ao círculo do Rosário sem parar; porém, os que meditam e especulam, param, com a consideração, a cada mistério. Assim parado, pois, diz que há de contemplar: contemplabor — e que o fim de toda a sua contemplação será ouvir o que Deus lhe fala: Ut videam quid loquatur mihi — e saber o que há de responder quando o mesmo Deus o argüir: Et quid respondeam ad arguentem me.

Isto é o que diz, e o que fazia o profeta, e isto o que, sem dizer nem falar, há de fazer quem meditar os mistérios do Rosário.

Parar a cada um meditando-o, e ouvir o que Deus lhe diz e o que lhe argúe: Quid loquatur mihi, et arguentem me. — Ponhamos o exemplo desta praxe nos primeiros mistérios. No mistério da Encarnação diz-me Deus que se fez homem por amor de mim, e para me fazer filho de Deus. E de que me argúi? De que, fazendo por mim o que não fez pelos anjos, e devendo eu, como filho de Deus, viver uma vida divina, nem vivo como filho de Deus, nem vivo como anjo, nem vivo como homem, senão talvez como bruto. No mistério da Visitação o que me diz é que no mesmo instante em que se viu feito homem, partiu logo às montanhas a santificar o Batista e livrá-lo do pecado original. E de que me argúi? De que indo ele antes de nascer a tirar do pecado um homem que ainda não era nascido, eu tenha tão pouco horror ao pecado, não alheio, senão próprio, não original, senão atual, e, o que e pior ainda, habitual, que me deixe estar e continuar nele, sem temor, sem cuidado, sem pena, antes alegre e contente, como se alegrou o Batista. No mistério do Nascimento o que me diz é que nasceu em um portal por não ter casa, e esteve reclinado em uma mangedoura por não ter berço. E de que me argúi? De que eu me não contente com a comodidade natural e com o necessário para a vida, senão com a superfluidade, com o luxo, com os excessos, esquecido de que nasci para a alma morar no céu, e o corpo na sepultura, não falando na ambição dos que edificam palácios soberbos, nem na inveja dos que os não podem edificar. No mistério da Presentação no Templo diz-me que obedeceu à lei sem ser obrigado a ela, e que aos quarenta dias de nascido se consagrou todo a Deus. E de que me argúi? De que, comparados aqueles quarenta dias com os meus quarenta anos, e com os meus cinqüenta, e ainda mais, eu me lembre tão pouco do que prometi quando me disseram: Ingredere in Sanctam Ecclesiam  — e que, havendo renunciado a Satanás, e a todas suas pompas, essas são as que mais professo, não se sabendo em que lei vivo, ou se tenho alguma lei, e se o templo e altar que adoro é o de Deus ou do ídolo. No mistério, enfim, do Menino bem perdido e melhor achado, o que me diz é que deixou sua própria Mãe — e tal Mãe — por tratar só de Deus e defender sua causa. E de que me argúi? De que quem o perdeu sem culpa o buscasse com tanta dor, e que não tenha eu dor de o ter perdido tantas vezes, e por tão graves culpas, e tão repetidas; que o perca por muito meu gosto, e, podendo-o achar tão facilmente, o não busque, e sobretudo, que ame tanto minha própria perdição que, buscando-me ele por tantas vias, eu me não deixe achar.

E se tão sentidamente fala, e tão penetrantemente argúi a infância de um Deus Menino, que só nesse último mistério falou, e nos primeiros ainda não tinha língua para falar, que será nos outros mistérios, em que bradam as prisões, os açoites, os espinhos, os cravos, a cruz, o sangue! E que vozes levantarão até o céu as chagas conservadas no corpo glorioso e levadas ao empíreo, para de lá tornarem a aparecer no dia do Juízo? O pasmo que todas estas coisas causam em quem profundamente as medita, e o horror com que estes espantosos brados se sentem tinir nos ouvidos: Ut tinniant ambae aures ejus  — só o mesmo profeta o soube declarar dignamente, e o faz no capítulo seguinte.

A este capítulo, que é singularmente notável — e para que todos o notassem — com estilo nunca usado, nem do mesmo, nem de outro profeta, pôs ele por título: Oratio — oração, e diz assim: Domine, audivi auditionem tuam, et timui; consideravi opera tua, et expavi (Hab 3, 1 LXX): Senhor, eu ouvi a vossa audição — digamo-lo assim, pois a nossa língua não tem outra palavra com que explicar a do profeta — Senhor, eu ouvi a vossa audição, e temi; considerei as vossas obras, e fiquei mudo de pavor e de pasmo. — Ele pasmou, e o texto de todo o capítulo é muito para nós pasmarmos. Primeiramente, se o profeta lhe tinha posto por título oração, por que não diz que Deus o ouviu a ele, senão que ele ouviu a Deus? Por que não diz: Senhor, vós ouvistes a minha oração — senão: Senhor, eu ouvi a vossa audição: Audivi auditionem tuam? — Aqui vereis como o mesmo profeta, que pouco antes disse que contemplava, o seu modo de orar era pelos ouvidos. Orava sim, mas não falava. Deus era o que falava, e ele somente ouvia; e por isso a sua oração era audição: Audivi auditionem tuam, et timui.

Mas, se o seu temor e o seu horror era causado do que ouvia a Deus, e o que Deus lhe dizia era tirado do que ele meditava, e o que meditava eram as obras de Deus: Consideravi opera tua, et expavi — que obras eram estas tão temerosas e espantosas, que o assombravam e enchiam de horror? Porventura criar o céu e a terra, e tudo quanto nela vemos, com uma palavra, e lançar do paraíso ao primeiro homem e todos seus descendentes pelo fruto só de uma maçã? Porventura alagar o mesmo mundo com o dilúvio universal, matando tudo quanto nele vivia, e salvá-lo todo dentro em uma arca? Porventura abrir o Mar Vermelho com o golpe de uma vara, para que o seu povo o passasse a pé enxuto, e afogar nele todo o poder dos exércitos de Faraó e seus carros? Nenhuma destas coisas, nem infinitas coisas que Deus obrou do mesmo gênero, eram as que assombravam o profeta. Pois, quais eram? Se ele o não dissera, ninguém o pudera entender nem ainda imaginar. Eram somente as obras de Deus, de que se compõe o Rosário e meditamos nos seus mistérios.

Eram os mistérios da Encarnação, em que Deus, para reparar o homem, não só se fez homem, mas menino e criança, que foi infinitamente mais que criar com uma palavra o mundo: In medio annorum notum facies; in medio duorum animalium cognosceris. Deus, nascido e reclinado nas palhas em meio de dois animais, e aí reconhecido de anjos, de pastores, de reis. Eram os mistérios da Paixão e da Cruz, em que destruiu o pecado, a morte e o demônio, e salvou o gênero humano, que foi mais que afogar o mundo com o dilúvio, e salvá-lo em uma arca: Cornua in manibus ejus; ibi abscondita est fortitudo ejus. Ante faciem ejus ibit mors; et egredietur diabolus ante pedes ejus. Deus, com os braços pregados em um madeiro, mas ali com a morte e o demônio maniatados e prostrados a seus pés. Eram os mistérios da Ressurreição, em que, como Deus, saiu da sepultura vivo, imortal e glorioso, e, como triunfador do inferno, rico de despojos, que foi muito mais que abrir o Mar Vermelho, sepultar nele os carros de Faraó e levar tantos milhares de cativos libertados no seu triunfo: Suscitans suscitabis arcum tuum, juramenta tribubus quae locutus es: ascendens super equos tuos, et quadrigae tuae salvatio . — Deus, ressuscitando a sua humanidade, que foi o arco com que pelejou, e ressuscitando-a, como tinha prometido às mesmas tribos que o crucificaram, e trazendo após si em carroças triunfais os que tinha libertado dos cárceres do limbo.

Estas eram as obras mais maravilhosas de Deus, estes os mistérios do mesmo Deus feito homem, gozosos, dolorosos e gloriosos, que o profeta contemplava e meditava, pasmado e mudo; estas eram as vozes que ouvia, nascidas da consideração dos mesmos mistérios — que são todos os do Rosário — e a este modo de meditar e ouvir chamou ele por excelência oração — oratio — porque o mais excelente modo de orar não é vocalmente e com a boca, senão mentalmente e pelos ouvidos: Audivi auditionem tuam.


CAPÍTULO VIII

Duas dificuldades, que são as que só se podem oferecer para impedir tão santo e tão importante exercício: a ignorância e as ocupações. O engano dos que não meditam porque não sabem. Não só é engano dizer que não sabemos meditar, como muitas vezes meditamos sem o saber. A escusa das ocupações. Resposta do duque de Alba ao rei da Franca na batalha de Vitemberga. As orações da Igreja nas solenidades do Rosário.

Agora parece que se seguia exortar a esta mesma praxe de rezar o Rosário, não só rezando, senão meditando e ouvindo.

Mas, porque eu não quero desacreditar nem a devoção nem o juízo dos que até agora o não exercitaram assim, os quais suponho persuadidos, somente satisfarei a duas dificuldades — quando não sejam tentações do demônio — que são as que só se podem oferecer para impedir tão santo e tão importante exercício. Quem as aponta não é menos que o Espírito Santo, por boca do mesmo profeta que acabamos de alegar, e no mesmo capítulo. Já disse que este capítulo tinha por título oratio, oração. E diz mais alguma coisa? Duas, e ambas notáveis. Uma no texto latino: Oratio pro ignorantiis: oração para as ignorâncias e outra do texto hebreu:  Oratio pro occupationibus: oração para as ocupações. — Pois esta oração em que se reza o Rosário pelos ouvidos, e este título extraordinário que lhe pôs em cima o profeta, só traz o sobrescrito para as ignorâncias e para as ocupações, e só para elas foi particularmente composto? Sim. Porque estas são as duas escusas por que os mistérios do Rosário se não meditam. Uns dizem que não meditam porque não sabem meditar: pro ignorantiis — outros dizem que não meditam, porque têm muitas ocupações, e não podem: pro occupationibus — e eu não quero outra peroração, senão mostrar a estes ignorantes e a estes ocupados, que uns e outros se enganam e se mentem a si mesmos.

Enganam-se os que dizem que não meditam porque não sabem: pro ignorantiis — e é engano ou ilusão manifesta. Meditar não é outra coisa que cuidar um homem no que lhe importa ou deseja, e nenhum há que não medite. O pleiteante medita na sua demanda; o requerente medita no seu despacho; o mercador medita nos seus comércios; o estudante medita nos seus estudos; o pai de famílias medita no sustento de sua casa; o oficial, o marinheiro, o lavrador, o soldado, todos meditam. De sorte que para meditar não é necessário ser anacoreta nem santo. Os muito viciosos também meditam nos seus mesmos vícios: os vãos meditam na vaidade: Meditati sunt inania; os falsos meditam nos enganos: Dolos tota die meditabantur; o inimigo medita nos ódios: Meditatur discordias (39); o ladrão medita nos roubos: Rapinas meditatur ; e todo o mau, de qualquer gênero, medita na sua maldade: Iniquitatem meditatus est in cubili suo. — Tão fácil como isto é meditar os mistérios do Rosário. Cuidai e considerai neles, e meditastes. Nem importa ou faz diferença que aqueles mistérios sejam obras e ações de Cristo, e não vossas; porque todas as fez nossa o seu amor; e quando fossem alheias, nem por isso dificultariam a meditação. Não discorreis vós e ajuizais sobre as ações do rei, do general, do prelado, do ministro, do pregador, e sobre todas quantas vedes no vosso vizinho? Pois, olhai do mesmo modo para as ações de Cristo, considerai com atenção quem é, o que faz, o que diz, o que padece, e por amor de quem, e os sentimentos e afetos que esta mesma consideração vos excitar no entendimento ou na vontade estas são as vozes interiores com que Deus vos fala, e, se vós os ouvis como deveis, fizestes uma perfeita meditação.

Assim que não só é engano dizerdes que não sabeis meditar, mas antes vos digo que muitas vezes meditais sem o saber.

Dizei-me: quando pelo Natal visitais um presépio, não vos enternece aquela pobreza, aquela humildade, aquele desamparo?

Quando pela quaresma vedes uma procissão dos passos, aquela temerosa e lastimosa figura de Cristo com a cruz às costas não vos move à piedade e compunção? E quando no dia da Ascensão assistis à Hora, a subida daquele Senhor ao céu não vos faz saudades e desejos de outra hora, em que vades também estar com ele? Pois tudo isto é meditar, e em todas as três diferenças dos mistérios do Rosário. Mas sucede-vos o mesmo que a Samuel nos seus princípios. Três vezes falou Deus a Samuel chamando-o por seu nome, e ele cuidou que era Heli, e não Deus, porque ainda lhe não conhecia a fala, diz o texto sagrado: Porro Samuel necdum sciebat Dominum, neque revelatus fuerat ei sermo Domini. — Assim vos fala Deus, e o ouvis, e meditando cuidais que não sabeis meditar, porque tendes metido no conceito que a meditação e a oração mental é uma coisa muito dificultosa. Fazei isto mesmo sempre e com mais vagar e maior atenção em todos os mistérios, e quando tomardes o Rosário na mão, dizei somente a Deus o que Heli ensinou a Samuel que dissesse: Loquere, Domine, quia audit servus tuus (l Rs 3, 10): Falai, Senhor, porque vosso servo ouve.

A escusa das ocupações: pro occupationibus — ainda tem menos fundamento, e de que se há de dar mais estreita conta a Deus. Lembra-me a este propósito que no dia da famosa batalha de Vitemberga, em que perdeu a liberdade e o vão nome de imperador o eleitor de Saxônia, tendo durado o conflito nove horas, correu fama que o sol estivera parado por algum espaço; e, perguntando el-rei de França ao duque de Alba, que fora o general do exército cesáreo, se era verdade o que se dizia do sol, respondeu: — Sir, eu nesse dia tive tanto que fazer na terra que me não ficou lugar de olhar para o céu. — Assim o cuidam — posto que o não digam tão discretamente — os que se escusam de não meditar por muito ocupados. É certo que as ocupações que impedem o olhar para o céu não devem ser muito acomodadas para ir ao céu. A Josué, que governou maiores exércitos que quem isto disse, e que ganhou mais vitórias que seu amo Carlos, e de quem se não duvida que fez parar o sol, o que Deus lhe encomendou, sobretudo, foi que de dia e de noite meditasse na sua lei: Non recedat volumen legis hujus ab ore tuo, sed meditaberis in eo diebus ac noctibus. — E a razão que o mesmo Deus lhe deu é muito para ser advertida dos que têm grandes ocupações: Ut intelligas cuncta quae agis (Jos 1 , 7): Para que entendas tudo o que houveres de fazer. — Por isso não é de maravilhar que se vejam tantas coisas feitas sem entendimento e contra todo o entendimento, pois os que se ocupam ou são ocupados nelas não meditam no que devem. E se Josué, que conquistou trinta e três reinos na Terra de Promissão, e a repartiu a seiscentas mil famílias das doze tribos, no meio de tantas e tão graves ocupações militares, políticas e econômicas, tinha tempo de dia e tempo de noite para meditar, bem se deixa ver quão falso e quão afetado é o pretexto dos que se escusam da meditação com a ocupação.

Examinem-se as ocupações dos mais ocupados, e achar-se-á que deixam tempo para o jogo, e tempo para a comédia, e tempo para a conversação, e tempo para outros divertimentos que levam mais o cuidado, e só para a meditação dos mistérios, e da vida do Filho de Deus e de sua Mãe, com que reformar a nossa, não deixam tempo. Se no meio das maiores ocupações sobrevem a doença, não se trata da cura? Se no meio das maiores ocupações bate o inimigo às portas, não se tomam as armas? Sendo, pois, a meditação o remédio mais eficaz de todas as enfermidades do espírito, e a arma mais de prova contra todos os combates com que nos faz guerra o demônio, quem será tão inimigo de si mesmo que deixe a meditação pela ocupação? A hora de comer e as horas de dormir nenhuma ocupação as impede; e qual é o sustento e sono da alma, senão a meditação interior e quieta das coisas divinas? Nas mesmas ocupações temporais, se concorrem muitas juntas, não se deixam as que menos importam, para acudir à de maior importância? Por que hão logo de impedir as ocupações do mundo a que não importa menos que a própria salvação? Será bem, diz Tertuliano, que viva só para os outros quem há de morrer para si? Nemo aliis nascitur moriturus sibi. A maior ocupação que há nem pode haver no mundo é a do pastor universal de toda a Igreja. E vede o que escreve S. Bernardo ao Papa Eugênio nos livros da Consideração: In quo trahere te habent occupationes istae maledictae, si tamen pergis ita dare te totum illis, nihil tui tibi relinquens. — Se Vossa Santidade continua a se dar todo às ocupações, sem deixar nada de si para si, essas malditas ocupações o levarão aonde vão os malditos. E se este nome merece as ocupações do governo eclesiástico, santo e santíssimo, quando por demasiada aplicação a elas chegam a impedir a meditação e consideração do que toca à alma própria, escusai-vos lá de meditar com as vossas ocupações, em tudo temporais e do mundo!

Suposto, pois, que nem a ocupação nem a ignorância podem servir de escusa para não meditar, importa que todos os devotos do Rosário se ocupem e empreguem na meditação e consideração de seus soberanos mistérios, e que em tudo sigam o exemplo e praxe do profeta, que dizia: Contemplabor ut videam quid dicatur mihi (Hab 2, 1): Meditarei e contemplarei para ver e ouvir com evidência o que Deus me diz. — E para que ninguém cuide que só com rezar as orações satisfaz à obrigação do Rosário, ouçam todos os que na mesma Missa, agora instituída para a solenidade própria do Rosário, diz e pede a Deus a Igreja. Na primeira oração pública diz assim: Ita ipsius Rosarii sacra mysteria contemplemur in terris, ut post hujus vitae cursum eorum fructus percipere mereamur. E na última, também pública: Concede per haec sancta Rosarii Genetricis tuae mysteria, ut continue eadem contemplantes, perpetuae nobis fiant causa laetitiae. E na oração secreta: Sanctissimae Matris tuae Rosarii solemnia recolentes, interiori Spiritus Sancti invocatione sanctifica. De sorte que em toda a Missa do Rosário, não fazendo menção alguma a Igreja das orações vocais e exteriores, só pede graça e favor a Deus para a meditação interior e contemplação dos mistérios: Mysteria contemplemur, mysteria contemplantes, interiori Spiritus Sancti invocatione sanctifica — porque na meditação, consideração e contemplação dos mistérios do Rosário consiste a parte principal, substancial e essencial desta soberana devoção; e esta parte mental e interior é a que dá vigor e eficácia à parte exterior e vocal, como a alma ao corpo. A razão é porque Deus não costuma ouvir senão a quem o ouve. Assim o mostrou o milagroso crucifixo que, despregando as mãos, tapou os ouvidos, dizendo ao que lhe pedia perdão e não tinha perdoado: Non audiam te, quia non audisti me. E como nós na parte mental meditando, ouvimos a Deus, também Deus nos ouve a nós na vocal. Tanto depende a impetração das orações do Rosário da meditação dos mistérios, ou tanto depende o Rosário rezado pela boca do Rosário rezado pelos ouvidos.


CAPÍTULO IX

Abramos os ouvidos e os apliquemos com grande atenção ao que Cristo nos diz nos quinze mistérios do Rosário. O que ouviram os Reis Magos na meditação de um só mistério do Rosário. A voz dos passos de Deus.

O que só resta é que abramos os ouvidos, e os apliquemos com grande atenção e devoção ao que Cristo, Senhor nosso, nos diz em todos os quinze mistérios do Rosário, que são os principais passos de sua vida, morte e ressurreição gloriosa. E, posto que em alguns deles, assim antes como depois de nascido, parece que o Senhor está mudo e não fala, todos os mesmos passos falam, e todos têm voz, e nos dão vozes. Depois de pecarem os primeiros pais, diz o texto sagrado que ouviram a voz de Deus que passeava pelo paraíso: Cum audissent vocem Dei deambulantis in paradiso (Gên 3, 8). — Qual fosse esta voz não o declara o texto; mas a exposição mais literal é que era o som dos mesmos passos com que o Senhor, em figura humana, vinha buscar o homem perdido. Esta foi a voz que eles ouviram, e os obrigou a se esconderem.

Em nenhum passo esteve Cristo mais mudo que no do Nascimento, e por isso os anjos disseram aos pastores que achariam no presépio um menino que não falava: Invenietis infantem (Lc 2, 12). Mas neste mesmo passo ou mistério do Rosário vede como o Infante que não falava falou, e de quanta importância foi o que disse.

Ofereceram os reis três diferentes dons, em que eram significados os mistérios do Rosário: no ouro, os Gozosos, na mirra, os Dolorosos, no incenso, os Gloriosos. E que é o que ouviram, e a quem? Responso accepto in somnis ne redirent ad Herodem, per aliam viam reversi sunt in regionem suam. A quem ouviram — como nota S. Jerônimo — foi ao mesmo Cristo, que, mudo no exterior, lhes falou interiormente aos ouvidos da alma, e por isso in somnis, na maior abstração e silêncio de todos os sentidos do corpo. E o que ouviram foi que não tornassem a Herodes, de cuja tirania se podiam justamente temer, e que por outro caminho voltassem seguros para a sua pátria, como fizeram: Per aliam viam reversi sunt in regionem suam. — Isto é o que ouviram, na meditação de um só mistério do Rosário, aqueles três reis sábios. E digo na meditação, porque não lemos no Evangelho que falassem ali vocalmente uma só palavra, e só lemos as que ouviram. Ouviram o que lhes importava à vida, e ouviram o que lhes importava à alma. Vieram gentios, adoraram fiéis, e tornaram santos. Oh! quantas vezes tem obrado a meditação do Rosário esta mesma maravilha! Quantos que andavam muito desviados do caminho do céu, que é a nossa pátria, depois que meditaram aqueles sagrados mistérios, conheceram a diferença e erro de seus caminhos, e tomaram a verdadeira estrada da salvação! O fim para que o Filho de Deus veio ao mundo foi para nos ensinar o caminho do céu; e isto é o que nos ensinam todos os passos de sua vida. Não ouçamos as vozes destes passos de Deus para fugir e nos esconder, como fez Adão, que por isso perdeu o paraíso. Ouçamo-las para imitar e seguir os mesmos passos e emendar os nossos, como fazia Davi: Cogitavi vias meas, et converti pedes meos in testimonia tua — porque este é só o caminho certo e seguro por onde se consegue a bem-aventurança, que o mesmo Senhor só promete aos que ouvem e observam suas palavras: Beati qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud.


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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão III - Maria Rosa Mística"

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