SERMÃO III - MARIA ROSA
MÍSTICA
Quinimmo, beati qui audiunt verbum Dei.
CAPÍTULO I
Vantagens
da oração mental sobre a vocal. Os dois altares do Templo de Salomão A oração mental e vocal nas figuras do
Testamento Velho. Já ouvimos quão alta é
a oração vocal do Rosário; hoje veremos quão profunda é a mental.
Quanta
é a diferença que tem — posto que estejam tão juntos — na rosa o cheiro e a
virtude, na árvore a folha e o fruto, no mar a concha e a pérola, no céu a
aurora e o dia, no homem o corpo e a alma, e, para que o digamos por seus
próprios termos, quanta é a vantagem que faz o entendimento à voz, tanta é a
que tem — posto que irmãs entre si — a oração mental sobre a vocal. A vocal é o
exterior da oração, a mental o interior; a vocal é a parte sensível, a mental a
que não se sente; a vocal é um corpo formado no ar, a mental o espírito que a
informa e lhe dá vida. A vocal recita preces, a mental contempla mistérios; a
vocal fala, a mental medita; a vocal lê, a mental imprime; a vocal pede, a mental
convence. A vocal pode ser forçada, a mental sempre é voluntária; a vocal pode
não sair do coração, a mental entra nele e o penetra, e, se é duro, o abranda.
A vocal exercita a memória, a mental discorre com o entendimento e move a
vontade, a vocal caminha pela estrada aberta, a mental cava no campo, e não só
cultiva a terra, mas descobre tesouros.
No
Templo de Salomão havia dois altares um interior junto ao Sancta Sanctorum, em que se queimavam timiamas, outro exterior, no
átrio, em que se matavam reses. Os que oram mentalmente, diz Orígenes,
sacrificam no altar de dentro; os que oram com vozes, no de fora: Cum corde oravero, ad altare interius
ingredior; cum autem quis clara voce et verbis cum sono prolatis offerre
videtur hostiam in altari quod foris est. — Apenas há figura no Testamento
Velho em que se não veja retratada esta grande diferença. A oração vocal é a
voz do Precursor no deserto, a mental é o conceito da mesma voz, que reconhece
o Messias e lhe manda seguir os passos; a vocal é a boca do leão de Sansão, a
mental são as abelhas que nela fabricam os favos, mais doces pelo mistério que
pelo mel; a vocal é o estalo da funda de Davi, a mental é a pedra que rompe a
testa ao gigante, e, porque lhe penetrou o cérebro, o deitou em terra; a vocal
são as trombetas de Jericó, que batem os muros, a mental é a espada de Josué,
que degola os inimigos e sacrifica os despojos; a vocal é o pregão de Saul, a
mental é a guerra apregoada, a que debela os amonitas, que liberta Jabes e
descativa os cercados. Enfim, da vocal sobem ao céu vapores, da mental se
acendem lá relâmpagos e descem raios, que alumiam os olhos, que ferem os
peitos, que amortecem as paixões e desfazem em cinza os vícios.
Estes
são os efeitos da oração do Rosário, que não só devemos celebrar, mas
distinguir enquanto vocal e mental. Enquanto vocal, é maior no número; enquanto
mental, no peso; enquanto vocal, reza muitas vezes duas orações; enquanto
mental, contempla e medita quinze mistérios; enquanto vocal, fala e solicita o
cuidado de Cristo com Marta; enquanto mental está sem nenhum outro cuidado aos
pés de Cristo, e ouve com Maria. Uma orava com a boca, e outra orava com os ouvidos. E isto é o que determino dizer
e declarar hoje. Já vimos quão alta é a oração vocal do Rosário; hoje veremos quão
profunda é a mental. Marcela disse: Beatus
venter: Cristo respondeu: Beati qui
audiunt. Marcela levantou a voz para que Cristo a ouvisse, e o Senhor
abriu-lhe os ouvidos para que ela aprendesse. Aquele notável quinimmo bem
mostrou que a lição era nova e mais subida; e assim o será também a do nosso
discurso. No passado vimos como se reza o Rosário com a boca: Extollens vocem — neste veremos como se
há de rezar o mesmo Rosário pelos ouvidos: Beati
qui audiunt. — Para que nos ouça a Virgem Santíssima — cuja é a obra e o
invento — e nos assista com sua graça, digamos: Ave Maria.
CAPÍTULO II
Assunto
do sermão: rezar o Rosário pelos ouvidos. Quanta importância tiveram os ouvidos
na concepção do Verbo.
Assim
como pelos ouvidos de Eva entrou no mundo o veneno e a morte, assim pelos
ouvidos da Virgem veio ao mundo o remédio e a vida. De que modo sai da boca do
Padre o Verbo Divino. Por que pede Davi a Deus que ouça a sua misericórdia pela
manhã?
Beati qui audiunt verbum Dei.
Rezar
o Rosário pelos ouvidos, como prometi, é o assunto deste sermão, mais novo pelo
desuso ou abuso, que pela novidade da matéria. Este foi o fim principal para
que se instituiu a devoção do Rosário, de poucos bem rezado, e de quase todos
mal entendido. Não foi instituído só para nós falarmos com Deus, e Deus nos
ouvir a nós, senão para que Deus fale conosco, e nós ouçamos o que nos diz
Deus: Qui audiunt verbum Dei. — Para
restituir, pois, o Rosário à sua primitiva perfeição, ou para persuadir esta
novidade aos que a tiverem por tal e para falar em matéria de si não muito
clara com toda a clareza, dividirei o discurso em três partes. Na primeira,
mostrarei que o Rosário se pode rezar pelos ouvidos; na segunda, que se deve
rezar pelos ouvidos: na terceira, como se há de rezar pelos ouvidos: Beati que audiunt.
Começando
pela possibilidade, no primeiro mistério do mesmo Rosário, e na soberana
Instituidora dele, temos o maior e mais perfeito exemplar da grande parte que
nesta altíssima obra têm os ouvidos. De dois modos concebeu a Virgem Maria o
Verbo Divino, que também de dois modos é palavra de Deus: Verbum Dei. Concebeu-o no ventre e concebeu-o na mente.
Concebeu-o
no ventre sacratíssimo, com privilégio singular a nenhuma outra criatura
concedido: Beatus venter qui te portavit
— e concebeu-o na mente, com aquela eminentíssima perfeição a que nenhuma outra
alma pode chegar nem aspirar, posto que todas sejam capazes de conceber o mesmo
Verbo mentalmente. E para que vejamos quanta parte tiveram os ouvidos em uma e
outra conceição, ouçamos a S. Bernardo: Missus
est coluber tortuosus a diabulo ut venenum per aures mulieris in ejus mentem
transfunderet: No princípio do mundo foi mandada a serpente pelo demônio,
para que, pelos ouvidos da mulher, lhe infundisse na mente o veneno. — E depois?
— Vede a elegância da contraposição. — Missus
est Gabriel angelus a Deo, ut Verbum Patris per aurem Virginis in ventrem et
mentem ipsius eructare: E depois foi mandado o Anjo Gabriel por Deus, para
que, pelos ouvidos da Virgem, assim no ventre como na mente se introduzisse o
Verbo do Padre. — E a razão, proporção e correspondência por que a divina
sabedoria o traçou e dispôs assim foi: Ut
eadem via et antidotum intrare, qua venenum intraverat: para que pelo mesmo
sentido do ouvir, por onde entrara a peçonha, entrasse também a triaga. — Eva
ouviu, Maria ouviu: Eva ao demônio, Maria ao anjo; Eva recebeu na mente o
engano, e no ventre o fruto maldito; Maria concebeu na mente a verdade, e no
ventre o fruto bendito: Benedictus fructus
ventris tui. — E com esta admirável contraposição de demônio o anjo, de
mulher a virgem, de fruto a fruto, de corpo a corpo, e de mente a mente, assim
como pelos ouvidos da primeira mulher entrou no mundo o veneno e a morte, assim
pelos ouvidos da segunda — e sem segunda — veio ao mesmo mundo o remédio e a
vida.
E
se além da proporção e correspondência quisermos especular e apurar mais com
que propriedade e energia ordenou Deus que os ouvidos da Senhora tivessem tanta
parte neste primeiro mistério, donde manaram todos os outros do Rosário, da
natureza e ofício do mesmo sentido de ouvir tirou a resposta S. Bruno,
filosofando excelentemente, e falando com a Virgem desta maneira: Suscipe Verbum in corde et in utero, o
Virgo, quia per aurem ingredietur in te quod nascetur ex te: Verbum enim est,
et via verbi auris est: Ouvi, ó Virgem, o anjo; recebei o que vos diz e
anuncia na mente e nas entranhas, e não duvideis que o Filho, que há de nascer
de vós, haja de entrar pelos ouvidos em vós. — Por quê? Porque esse Filho, que
há de ser vosso, é a Palavra do Padre e a porta e o caminho por onde entra a
palavra, são os ouvidos: Verbum enim est,
et via verbi auris est.
Deste
modo rezam o Rosário pelos ouvidos aqueles que o exercitam todo, e não de
meias; isto é, aqueles que não se contentam só com repetir de boca as orações
vocais, mas consideram e meditam atentamente os mistérios, e ouvem com a mesma
atenção o que neles inspira e fala Deus. A Senhora primeiro considerou o
mistério: Cogitabat qualis esset ista
salutatio — e depois, pelos ouvidos, concebeu o Verbo: Fiat mihi secundum verbum tuum. E nós, da mesma maneira,
considerando primeiro mentalmente aquele mistério, e os outros do Rosário,
concebemos pelos ouvidos o mesmo, e não outro Verbo, porque ouvimos o que por
meio da meditação dos mesmos mistérios fala Deus conosco.
Sucede
na nossa meditação, em admirável prova do que dizemos, o mesmo que ao Eterno
Padre na produção do Verbo Divino. O Verbo Divino, que é a eterna palavra de
Deus, de que modo vos parece que sai da boca do Padre. Ego ex ore Altissimi prodivi? Não pode haver
semelhança nem propriedade mais própria. Contempla o Eterno Padre dentro em si
mesmo a essência, os atributos, as perfeições e todos os outros mistérios da
divindade, que só ele compreende, e desta contemplação compreensiva, com que
Deus cuida em si, e se conhece e vê a si, nasce o Verbo Divino, que é a Palavra
de Deus e todo o seu dizer: Dicere Deo
est cogitando intueri, in quantum, scilicet, intuitu cogitationis divinae
concipitur Verbum Dei — diz Santo Tomás. Pois, assim como da compreensão,
com que Deus contempla intuitivamente os mistérios da divindade, se produz e
nasce o Verbo, assim da meditação com que nós, na parte mental do Rosário,
contemplamos os mistérios da Humanidade, unida à mesma Divindade, nasce o Verbo
e Palavra de Deus, com que interiormente nos fala, e nós interiormente
concebemos e mentalmente ouvimos: Qui
audiunt verbum Dei.
Altamente
está dito. Mas, quem nos confirmará esta tão sublime verdade? Seja o maior e
mais experimentado espírito em uma e outra oração: Auditam fac mihi mane misericordiam tuam (Sl 142, 8): Fazei, Senhor
— diz Davi — que eu de manhã ouça a vossa misericórdia. — Dois grandes reparos
encerram estas quatro palavras. Todos, quando oram, pedem a Deus que, por sua
misericórdia, os ouça; porém, Davi não diz que a misericórdia de Deus o ouça a
ele, senão que ele ouça a misericórdia de Deus: Auditam fac mihi misericordiam tuam: Fazei que a vossa misericórdia
seja ouvida de mim. — De sorte que a misericórdia de Deus é a que há de falar,
e Davi o que há de ouvir. A razão deste extraordinário modo de pedir, ou dizer,
depende do segundo reparo: Auditam fac
mihi mane: Fazei que eu ouça a vossa misericórdia pela manhã. — E que mais
tem para este requerimento a hora da manhã que as outras? Davi orava pela
manhã, ao meio—dia e à tarde. Vespere, et
mane, et meridie, narrabo. — Davi orava sete vezes no dia: Septies in die laudem dixi tibi. — Pois,
se Davi orava tantas vezes, e em tão diferentes horas do dia, por que não pode
nem requer, ou por que não presume nem espera que Deus lhe fale a ele, e ele
ouça a Deus, senão na hora de pela manhã: Auditam
fac mihi mane misericordiam tuam? O mesmo Davi o disse, e com tanta razão
como nós o temos dito. Este santo rei orava de vários modos, já vocalmente,
rezando salmos, já mentalmente, meditando, e a hora que particularmente tinha
dedicado à meditação era a hora da manhã: In
matutinis meditabor in te — e como pela manhã é que meditava, pela manhã é
que esperava que Deus lhe havia de falar a ele, e ele havia de ouvir a Deus: Auditam fac mihi mane misericordiam tuam.
— Tão certo é que com os que meditam fala Deus, e porque meditam, e quando
meditam, o ouvem.
CAPÍTULO III
O
que diz Davi e o que não diz em sua meditação. Ao que medita não lhe fala Deus
de outra parte, nem de fora, senão dentro nele. O que tanto desejaram e não
alcançaram os profetas, é o que gozam os professores da devoção do Rosário, se
se aplicam a ela tão inteiramente como devem. Os que dizem que meditam e não
ouvem. Sendo o Verbo de Deus, a palavra de Deus, ninguém pode considerar suas
obras nem meditar seus mistérios que o não ouça. As duas portas da palavra.
Beati qui audiunt verbum Dei.
Daqui
se segue que, quanto forem mais altos os mistérios que meditarem, tanto mais
altas serão também as ilustrações com que Deus lhes falará aos ouvidos. Qual
era a matéria das meditações de Davi naquele tempo: Meditatus sum in omnibus operibus tuis, in factis manuum tuarum
meditabar. Meditava nas obras universais da onipotência, com que Deus criara
e sustentava o mundo, e nas particulares da providência, com que escolhera,
defendia e conservava o seu povo, que era o que Deus até então mais
maravilhosamente tinha obrado. E se a meditação destas obras, posto que
grandes, tão inferiores, merecia que o mesmo Deus respondesse a ela e fosse
ouvido de quem as meditava, que juízo se deve fazer das inspirações, dos
impulsos e das falas interiores, com que Deus penetrará os corações, e baterá
suavemente os ouvidos dos que atentamente meditarem os altíssimos mistérios da
Encarnação, do nascimento, da vida, da morte, da ressurreição do Filho de Deus,
que são os de que se compõe o Rosário? Se as obras da criação, que só custaram
a Deus uma palavra, falavam e eram com tanta admiração ouvidas de quem as
meditava, as obras da Redenção, que custaram à mesma Palavra de Deus o sangue,
do qual sangue, diz S. Paulo que fala melhor que o de Abel: Melius loquentem quam Abel (Hebr 12, 24)
— que vozes serão as suas na atenta e profunda meditação delas, e quanto mais
se farão ouvir? O mesmo profeta, que antevia os futuros que não chegou a ver, o
disse: Ostende nobis, Domine,
misericordiam tum, et salutare tuum da nobis. Audiam quid loquatur in me
Dominus Deus: Acabai, Senhor, de mostrar aos homens até onde chegam os
extremos de vossa misericórdia; acabai de nos dar e mandar ao mundo o nosso ou
o vosso Salvador, pois é vosso Filho: Salutare
tuum da nobis. — E então quando ele vier — se vier, Davi, em vossos dias —
e nascer e morrer, e obrar todos os outros mistérios da Redenção, que é o que
esperais da sua vinda, e da vista e consideração desses mesmos mistérios? — O
que principalmente espero, e sobretudo desejo, é o que hei de ouvir
interiormente quando ele dentro em mim me falar: Audiam quid loquatur in me Dominus Deus. — Notai o que diz Davi e o
que não diz. Não diz que suspirava com tantas ânsias pela vinda do Messias,
para ouvir o que ele havia de pregar exteriormente ouvido, senão para lhe ouvir
o que lhe havia de falar interiormente meditado: Audiam quid loquatur in me. — Como se dissera não me alvoroça o que
há de dizer a todos, senão o que me há de dizer a mim; nem tanto o que me há de
dizer a mim, quanto o que me há de dizer em mim: in me. A Moisés falou-lhe Deus
da sarça, a Jó falou-lhe de uma nuvem, ao Sumo Sacerdote falava-lhe do
Propiciatório, ao que medita não lhe fala Deus de outra parte, nem de fora,
senão dentro nele; in me — porque dentro dele está a meditação, por meio da
qual lhe fala. Combinai o loquatur in me
com o meditabor in te: eu meditarei nele, e ele falará em mim: eu com o
silêncio e ele com a voz, eu calando e ele falando, ele dizendo e eu ouvindo: Audiam quid loquatur in me. Isto é o que
considerava aquele tão grande rei como profeta, o qual, porém, não chegou a ter
a ventura de ver e ouvir o por que tanto suspirava. Por isso aos apóstolos, que
a tiveram, disse o Senhor: Dico vobis
quod multi prophetae et reges voluerunt videre quae vos videtis, et non
viderunt, et audire quae auditis, et non audierunt (Lc 10, 24): Para que
conheçais e estimeis o bem de que gozais, vos digo que muitos profetas e reis
desejaram ver o que vós vedes, e não o viram, e ouvir o que vós ouvis, e não o
ouviram. — Um destes reis e um destes profetas, e o principal de todos eles,
foi Davi, de quem o mesmo Cristo era e se chamou filho; e esta ventura que
tanto desejou e não alcançou o rei mais mimoso e o profeta mais alumiado de
Deus é a que gozam os professores da devoção do Rosário, se se aplicam a ela
tão inteiramente como devem. Davi desejava ver os mistérios de Cristo, e ouvir
o que interiormente lhe dizia: Audiam
quid loquatur in me; e todos os que atentamente meditam os mistérios do
Rosário, por meio da mesma meditação, vêem a Cristo e ouvem a Cristo. Vêem a
Cristo porque, meditando seus mistérios, o fazem presente; e ouvem a Cristo
porque os mesmos mistérios meditados falam: e se alguém não ouve o que o Senhor
lhe diz por eles, é que os não medita.
Dirá,
porém, algum dos que se têm por exercitados nesta meditação, que ele medita,
mas não ouve. E para escusar este silêncio ou falta de ouvir, dirá também que
os mistérios do Rosário todos são obras de Cristo, e não palavras, e que a
meditação pode representar e ver o que ele fez, mas não pode representar nem
ouvir o que ele não disse. A este argumento que não parece totalmente sofístico,
responde Santo Agostinho, e com tanta agudeza como sua. Quem é Cristo? É o
Verbo de Deus, e a palavra do Padre: logo, ninguém pode considerar suas obras
nem meditar seus mistérios que o não ouça. E por quê? Porque a palavra não pode
obrar senão falando; e como todas as obras da palavra falam, todas se ouvem: Quia ipse Christus Verbum Dei est, etiam factum
verbi verbum nobis est. Porque Cristo é palavra de Deus, também as obras
dessa palavra são palavras, porque a palavra não pode obrar senão falando. E se
essas obras, que são palavras, alguém as não ouve, é porque lhes não entende a
língua: Habent enim si intelligantur
linguam suam. — Reparai na exceção de Agostinho, com que ficam excluídos os
que dizem que meditam e não ouvem. Essas obras e esses mistérios de Cristo, si intelligantur: se se entendem, falam,
se se não entendem, são mudos. As palavras que somente são palavras podem-se
ouvir, ainda que se não entendam; as obras que são palavras, se não se entendem, não se
ouvem. Por isso vós não ouvis, porque não entendeis; e a causa por que não
entendeis, é porque não meditais. Meditai e observai bem o que se vos
representa em cada mistério, e logo ouvireis. A mesma Palavra divina o diz
assim: Beatus homo qui audit me (Prov
8, 34): Bem-aventurado o homem que me ouve. — E que há de fazer o homem,
Palavra divina, para vos ouvir? — Duas coisas: Vigiar e observar às minhas
portas: Qui vigilat ad fores meas, et observat
ad postes ostii mei. — A palavra tem duas portas, uma por onde sai e outra
por onde entra: a porta por onde sai, é a boca, e, no nosso caso, o mistério, a
porta por onde entra, é o ouvido, e, no nosso caso, a meditação. Se vós não
meditais, como quereis ouvir? Meditai e observai vigilante e atentamente o
mistério, e logo entendereis e ouvireis o que Deus vos diz nele: Qui vigilat, qui observat, qui audit. —
E, ouvindo desta maneira, sereis dobradamente bem-aventurados, por testemunho
de ambas as Escrituras: Beatus homo Qui
audit me, beati qui audiunt ver bum Dei.
CAPÍTULO IV
Deve-se
rezar o Rosário pelos ouvidos, não só por ser conveniente e mais útil, mas por
ser totalmente necessário.
Distinção
entre o falar e ouvir nas palavras do filósofo Sofar, amigo de Jó. Para Deus é
mais aprazível a conversação dos simples, porque falam pouco e ouvem muito.
Abraão, o homem que mais cortesmente soube falar com Deus. O justo não é justo
porque fala muito, senão porque medita muito. 0 rezar sem meditar, não é
oração, é verbosidade. Deus, aos que concedeu o ouvir, tira-lhes o falar, como
a Moisés na sarça ardente. Os sussurros de Deus, frutos da oração vocal à
mental.
Temos
declarado a teórica do Rosário rezado pelos ouvidos. Mas antes que passemos à
praxe, para que a recebamos e aceitemos melhor, será bem que vejamos as razões
por que deve ser praticado por este modo, não só vocal, senão mentalmente, não
só rezando, senão meditando, nem só falando, senão ouvindo. Digo, pois, que se
deve rezar o Rosário pelos ouvidos, não só por ser mais conveniente e mais
útil, mas por ser totalmente necessário. Mais conveniente da parte de Deus,
porque assim lhe é mais agradável; mais útil da parte nossa, porque assim nos é
mais proveitoso; e totalmente necessário, da parte do Rosário, porque, falando
só, e não ouvindo, não será Rosário.
Prova
esta última proposição — pela qual é bem comecemos, como fundamento das demais
— aquele antiquíssimo filósofo Sofar, um dos três amigos de Jó, e distingue e
aperta o ponto com tal energia, que ninguém em toda a Escritura o fez melhor: Numquid qui multa loquitur, non audiet? Aut vir verbosus justificabitur? Utinam Deus
loqueretur tecum, et aperiret labia sua tibi (Jó 11, 2. 5)! É possível que
tu, que falas muito, não queres ouvir? E cuidas que o teu muito falar te há de
fazer justo? Oh! se Deus abrira a boca e falara contigo! — Cada palavra desta
sentença é uma declarada censura contra o abuso geral com que se reza o
Rosário. O instituto santíssimo e prudentíssimo desta soberana devoção
dividiu-a em orações e mistérios, para que nós, como compostos de corpo e alma,
ora falássemos vocalmente com Deus, ora o ouvíssemos mentalmente. E seria bem
falarmos nós tudo e não ouvirmos nada: Numquid
qui multa loquitur, non audiet? Pois isto é o que fazem ou desfazem os que
só falam, e não meditam; os que só rezam com a boca, e não pelos ouvidos. Toda
a oração, como já a definimos com S. Gregório Niceno, é um colóquio e
conversação do homem com Deus; e a lei da boa e cortês conversação é falar e
ouvir. E se a personagem que nos admite à prática for muito superior, que
ensina a cortesia e a reverência? Falar pouco e ouvir muito. Notável coisa é
que goste Deus de conversar com os simples:
Cum simplicibus sermocinatio ejus! Não é muito mais aprazível a conversação
dos doutos, dos eruditos, dos discretos? Para Deus, não.
Esses
falam muito e ouvem pouco; os simples falam pouco e ouvem muito. Esses ouvem-se
a si, e Deus quer quem o ouça a ele. Por isso gosta da conversação dos simples.
O
homem que mais cortesmente sou falar com Deus foi Abraão: Loquar ad Dominum, cum sim pulvis et cinis — e vede como falava e
como ouvia. A primeira vez que Deus apareceu a Abraão foi em Harã, e diz o
texto: Dixit autem Dominus ad Abram
(Gên 12, 1): Disse o Senhor a Abrão. — A segunda vez apareceu-lhe em Siquém, e
diz o texto : Apparuit autem Dominus
Abram, et dixit ei (Ibid. 7): Apareceu o Senhor a Abrão, disse-lhe. — A
terceira vez apareceu-lhe em Canaã, e diz o texto: Dixitque Dominus ad Abram (Gên13, 14): E disse o Senhor a Abrão. —
A Quarta vez apareceu-lhe na mesma terra, e diz o texto: Factus est sermo Domini ad Abram dicens; dixitque Abram: Domine Deus
(Gên 15, 1 s): Disse Deus a Abrão, e Abrão disse a Deus. — Não sei se reparais
nestas quatro aparições, e se achais nelas alguma diferença. Eu confesso que
tenho lido estes textos algumas vezes, e nunca adverti o que advertiu Caetano e
pede a todos que advirtam : Considera,
prudens lector, quod in praeteritis tribus visionibus semper Abraham fuit
auditor tantum; in hac autem quarta et audit et respondet: Considere o
prudente leitor — diz Caetano — que Abraão nas primeiras três aparições Deus,
ouviu e não falou palavra, e só nesta quarta — ouviu e falou. Pois se falou
nesta, por que falou também nas outras? Porque falava com Deus Quem fala com
Deus há de ouvir muito e falar pouco para falar uma vez há de ouvir quatro.
Quem tanto ouve, e tão pouco fala merece que Deus lhe apareça muitas vezes. Ide
agora, e falai o Rosário inteiro sem pausa, sem aguardar compasso, sem dar
lugar a Deus a que também ele nos diga alguma coisa; e se vós falais tudo, e
Deus não fala, como o haveis de ouvir?
Vai
por diante Sofar: Aut vir verbosus
justificabitur? Porventura cuidais que essa verbosidade e esse muito falar
vos há de fazer justo? — Não. O justo não o faz
o
muito que fala, senão o falar o muito que medita: Os justi meditabitur sapientiam, et lingua ejus loquetur judicium.
Encontrada coisa parece atribuir a meditação à boca, e o juízo à língua: o
juízo é o que medita; a boca e a língua a que fala. Mas o justo de tal maneira
ajunta a meditação com a oração, e o mental do juízo com o vocal das palavras,
que ainda com boca e com a língua medita, e não porque fala muito, senão porque
medita muito, é justo. Não justo porque fala muito: Numquid vir verbosus justificabitur? — mas justo porque medita
muito: Os justi meditabitur sapientiam.
— Mas, para que é ir buscar a prova nas Escrituras, se a temos mais perto na
experiência? Contai os que rezam o Rosário, e contai os justos. São tantos os
justos como os que rezam o Rosário? É certo — ainda mal — que por cada cento
que rezam o Rosário me não dareis um justo. E donde vem esta desigualdade tão
grande, tão enorme e tão indigna? É porque Vir
verbosus non justificabitur. Rezam e não meditam, e o rezar sem meditar,
não é orar, é falar: em vez de ser oração é verbosidade. O que se reza sem meditação,
sai da boca; o que primeiro se medita, sai do coração; e, ainda que seja uma só
palavra, é oferta que se pode dedicar a Deus: Eructavit cor meum verbum bonum; dico opera mea regi. Então, cuidam
os que isto fazem que a devoção do Rosário está em o rezar ou falar todo
inteiro. Os que assim o rezam, sem meditar, falsamente se arrogam o nome de
devotos da Senhora e do seu Rosário. O Rosário que a Senhora instituiu não é
esse: logo, não são devotos do Rosário. Pois, que são? Quando muito são
rezadores, e por isso, ou cegos ou mercieiros; mas justos não. Lembrem-se
daquela sentença: Cum oratis, nolite
multum loqui (Mt 6, 7): Quando orais não faleis muito. — E de quem é esta
sentença? É do mesmo Cristo, que diz: Oportet
semper orare (Lc 18, 1): Importa orar sempre. — E o mesmo Senhor, que nos
manda orar sempre, manda que quando oramos não falemos muito, porque o falar
não é orar. Por isso nem ele nos ouve nem nós o ouvimos.
Oh!
se ouvíramos alguma vez a Deus! Isto é o que desejava e exclamava Sofar: Utinam Deus loqueretur tecum, et aperiret
labia sua tibi (Jó ll, 5)! Oh! se Deus abrira uma vez a boca, e falara
contigo! — E qual era a razão deste seu desejo? Porque falava com os que falam
muito e não querem ouvir; e sabia que, tanto que ouvissem a Deus, mais haviam
de querer ouvir que falar. Com ser Deus autor da natureza, no falar e no ouvir
tem mui diferentes efeitos. Todo o mudo naturalmente é surdo, e todo o que ouve
a Deus naturalmente emudece. A natureza aos que privou do falar tira-lhes o
ouvir, e Deus aos que concedeu o ouvir tira-lhes o falar. Quando Deus apareceu
a Moisés na sarça, e o mandou com a embaixada a Faraó, escusou-se Moisés com
que não sabia falar: Non sum eloquens ab
heri et nudiustertius. Mas contra isto está o que se refere nos Atos dos
Apóstolos, que Moisés tinha estudado todas as ciências dos egípcios, e era
nelas e na sua língua poderosamente eloqüente: Et eruditus est Moyses omni sapientia Aegypticrum, et erat potens in
verbis (At 7, 22). — Pois, se Moisés era tão sabiamente eloqüente, e tão
eloqüentemente sábio, como diz agora que não sabe falar? Ele mesmo deu a razão:
Ex quo locutus es ad servum tuum,
impeditioris et tardioris linguae sum (Êx 4 , 10): É verdade, Senhor, que
eu antes deste dia falava expeditamente; mas depois que vós vos dignastes de me
falar, e eu vos ouvi, no mesmo ponto se me tolheu a fala e atou a língua. — E
porque Sofar sabia os segredos desta filosofia, por isso desejava que falasse
Deus uma vez aos que só falam e não ouvem: Nunquid
qui multa loquitur non audit? Utinam Deus loqueretur tecum! – A Virgem
Senhora nossa não instituiu o seu Rosário só para falarmos rezando, senão para
ouvirmos meditando; e o Rosário que é só de boca, e não de ouvidos, é tão
diminuto e imperfeito que não merece o nome de Rosário, porque, não meditando
os mistérios, falta a parte principal e essencial dele. Antes quero a terça
parte do teu Rosário meditado, disse a Senhora a um seu devoto, e ainda menos
da terceira parte, que todo ele inteiro sem meditação. E este conselho não só
devem tomar todos, mas é necessário que o tomem, sob pena de o seu Rosário não
ser Rosário.
Podem-me
dizer, contudo, alguns dos que rezam e não meditam, que rezando o Rosário, sem
meditar os mistérios, sentem, contudo, grandes afetos em seu espírito, assim de
compunção para com Deus como de piedade e confiança para com sua Santíssima
Mãe. Oh! como vos enganais convosco mesmos, mas venturosamente! Pergunto: e
esse cuidar em Deus e na Virgem Maria, não é parte de meditação, posto que
breve? Assim o prova e convence a Santa Madre Teresa contra os mesmos que em
seu tempo rezavam vocalmente, e tinham medo da oração mental. Os afetos de
devoção e piedade que sentem, quando assim rezam, também são efeitos da
meditação, posto que imperfeita, e vozes ou sonidos breves e sutilíssimos com
que Deus então lhes fala ou passa pelos ouvidos. Por isso no Livro de Jó se
chamam estas falas de Deus, não vozes, senão sussurros, e esses que se ouvem
furtivamente: Et quasi furtive suscepit auris
mea venas susurri ejus. — Assim que, quando sentis esses afetos, já, sem o
entender, começais a rezar pelos ouvidos, que por isso diz: Suscepit auris mea; e são uns como
furtos, que faz a oração vocal à mental, saindo-se da sua esfera, que por isso
diz: Quasi furtive; e são as veias do
sonido, que ainda não chegam a ser voz desarticulada, que por isso diz: Venas susurri ejus. Mas daí mesmo se
colhe que, se tão doce é o que se chupa nas veias, que será o beber na fonte? E
se tanto obram na alma só os sussurros, as vozes declaradas que farão? Necessário
é, logo, à essência do Rosário que perfeita e inteiramente se reze pelos
ouvidos, para ser verdadeiro Rosário.
CAPÍTULO V
Conveniência
do Rosário rezado pelos ouvidos. O que diz Cristo por boca de Jó. Os ouvidos,
colocados de uma e outra parte da cabeça, são as balanças em que havemos de
pesar o muito que fez Deus por nós. O devoto do Rosário comparado à rola dos
Cantares. Por que promete o Esposo à Esposa, não outras jóias, senão arrecadas
de ouro sobreprateado? Por que alega Cristo à Esposa os títulos de irmã, amiga
e pomba imaculada? As lágrimas do presépio e as gotas de sangue figuradas pelo
orvalho da noite.
E
se da parte do Rosário é totalmente necessário rezar-se pelos ouvidos, da parte
de Deus não é menos conveniente, porque só rezado assim lhe agrada e é aceito.
Nenhuma coisa Cristo, Senhor nosso, mais deseja de nós que a justa estimação e
ponderação do muito que fez e padeceu por nós: Utinam appenderentur peccata mea, quibus iram merui, et calamitas quam
patior in statera! Quasi arena maris haec gravior appareret: Oh! quem me
dera que as penas que padeço e os pecados por que padeço se puseram em fiel
balança! E se veria claramente que excede tanto o peso das penas ao dos pecados
quantas são as areias do mar! — Isto disse Jó em nome de Cristo, ou Cristo por
boca de Jó, porque só em Cristo se verifica, e em Jó de nenhum modo. Em Jó não,
porque qualquer mal de culpa, ainda que seja venial, excede sem comparação a
todo o mal de pena, quanto é possível. E em Cristo sim, porque a mínima ação de
Cristo, por ser de preço infinito, excede infinitamente a todos os pecados do
mundo, pelos quais padeceu e pagou. E como, bastando a mínima ação de Cristo
para remir mil mundos, foi tal o seu amor para com os homens que quis nascer,
morrer, e obrar todos os outros mistérios de humildade, paciência e caridade
que no Rosário se representam e consideram, a meditação atenta e a justa
ponderação de todos eles é o que mais deseja de nós o soberano Redentor, e para
isso nos pede os pesemos em fiel balança: Utinam
appenderentur in statera!
Mas
que parte tem ou podem ter nesta balança os ouvidos? Muito grande. Assim o
declaram as mesmas palavras na língua em que falou Jó e é uma filosofia tão
admirável como natural. Onde a nossa versão lê: in statera, o texto original tem: in bilancibus, in auribus. Bilances, são os dois escudos da balança
em que as coisas se pesam; aures são
as orelhas, instrumentos dos ouvidos. E por que se comparam ou declaram os dois
ouvidos pelos dois escudos da balança? Porque este é o ofício que lhes deu a
natureza, e a forma e o lugar em que os colocou. Como a natureza pôs a razão e
o juízo, que é o fiel da balança, na cabeça, pôs-lhe também de uma e da outra
parte os ouvidos, como dois escudos da mesma balança e como dois assessores do
mesmo juízo. Mas, antes que fechemos o passo, ouçamos o grande comentador de
Jó, o doutíssimo Pineda: Cum trutinam
requirit, certe aequum auditorem et incorruptum aurium judicium requirit: est
enim inter aures veluti inter duas lances media trutina rationis, et judicii,
quod in capite residet. Ergo duae aures, ut quae audiuntur diligenti mentis
trutina expendenda sint, homini concessae sunt. — Quer dizer: deu o autor
da natureza ao homem dois ouvidos, e pô-los de uma e outra parte da cabeça,
porque na cabeça tem seu assento a razão e o juízo; e assim o juízo, posto no
meio, e os ouvidos, de uma e outra parte, vem a fazer uma balança natural, em
que as coisas se pesam fielmente. — Esta é pois a razão por que o benigníssimo
Redentor, que tomou sobre si a satisfação de nossos pecados, e pagou tanto mais
do que devia, e padeceu tanto mais do que era necessário, e obrou em todos os
mistérios de nossa Redenção tantos excessos quantos só podia inventar o seu
amor, para mais obrigar o nosso, esta é a razão por que tanto deseja que na
atenta meditação os pesemos, e por que, com o nome de balanças nos pede os
ouvidos, para que, como em justas balanças, ponderemos os mesmos mistérios, e
como por atentos ouvidos ouçamos o que eles nos dizem: Utinam appenderentur in bilancibus, in auribus.
E
para que vejamos em próprios termos quanto Cristo, Senhor nosso, mais deseja e
estima no Rosário esta ponderação dos ouvidos que a reza somente vocal do mesmo
Rosário, assim como já ouvimos por boca de Jó o seu desejo, ouçamo-lo agora por
boca de Salomão. Trata altamente Salomão esta diferença no primeiro capítulo
dos Cantares, e como as suas comparações ali são tão extraordinárias, a que vos
parece que compararia uma alma devota do Rosário, das que só o rezam
vocalmente? Comparou-a a uma rola com o Rosário ao pescoço: Genae tuae sicut turturis — eis aí a
rola; Collum tuum sicut monilia — eis aí o Rosário. E por que não pareça que
dar nome de Rosário ao que ali se chama colar é interpretação alheia do texto,
o original hebreu, em que escreveu Salomão, diz que era feito de pérolas
furadas e enfiadas: Margaritas
perforatas, et filo copulatas — treslada Sanctes Pagnino, doutíssimo
naquela língua. Assim que, nem o Rosário podia ser mais próprio nem mais
precioso. Era também rezado com grande piedade e devoção, que por isso, quem o
trazia ao pescoço é comparado à rola, cujos arrulhos são piedosos, e mais
gemidos que vozes: Sicut turturis.
Isto
é o que disse o Esposo, que é Cristo, à Esposa que é a alma; mas o que logo se
segue, e acrescentou o mesmo Esposo, é digno de grande consideração e reparo: Murenulas aureas faciemus tibi, vermiculatas
argento (Cânt l, 10): O que agora vos hei de fazer, Esposa minha, são umas
arrecadas para as orelhas, e essas hão de ser de ouro, esmaltadas de prata.
—
Não reparo em Cristo sobrepratear o ouro, como nós sobredouramos a prata, posto
que isto tenha o mistério que logo veremos. Mas o que primeiro faz ao nosso
caso é a conseqüência destas palavras sobre as que acabamos de referir. Se o
Esposo acaba de louvar as pérolas do colar e os gemidos da rola, se o colar é o
Rosário, e os gemidos a oração vocal, piedosa e devota — como explicam S.
Gregório, S. Basílio, Teodoreto, e todos os padres comumente — por que se não
dá por satisfeito disto o Esposo, e, querendo ornar e enriquecer a Esposa com
novas jóias, as que trata de lhe fazer não são outras, senão as arrecadas?
Porque as arrecadas, diz S. Bernardo, são jóias e ornato dos ouvidos. E como
pelos ouvidos entram à alma as falas interiores de Deus na meditação, ainda que
o Rosário que a Esposa traz ao pescoço seja de pérolas, e a voz com que o reza
de rola piedosa e enternecida, não se satisfaz o Senhor inteiramente de que o
reze só de boca, senão também pelos ouvidos. De boca sim, repetindo devotamente
as orações vocais, em que a alma fala com Deus; mas muito mais pelos ouvidos,
meditando atentamente os mistérios, em que Deus fala com a alma e ela ouve o
que lhe diz.
E
para que se veja que estes mistérios não são outros senão os do Rosário, todos
de Deus enquanto homem, por isso as arrecadas eram de ouro sobreprateado: Aureas vermiculatas argento. — O ouro é
a divindade, a prata a humanidade; e está o ouro debaixo da prata, porque
debaixo da humanidade de Cristo está encoberta a divindade. Mas porque a mesma
divindade, enquanto o Senhor viveu neste mundo, de tal maneira andava encoberta
debaixo da humanidade que não deixava de reluzir nas obras da onipotência, essa
é também a propriedade e elegância com que o prateado não era todo contínuo,
senão aberto a partes, a modo só de esmalte ou filigrana, que isto quer dizer vermiculatas. Maior advertência ainda, e
maior propriedade. Onde a Vulgata lê vermiculatas,
diz a versão chamada Quinta Editio: cum
distinctionibus argenti: com distinções de prata. De sorte que nas jóias,
com que de novo se ornaram os ouvidos da Esposa, havia distinções, e essas
distinções estavam na prata, e não no ouro. Por quê? Excelentemente. Porque na
divindade, que é substância simplicíssima, não há distinção, e na humanidade e
seus mistérios sim; e mais nos do Rosário, de que propriamente falava: uns
gozosos, outros dolorosos, outros gloriosos, e em cada uma destas distinções
outros cinco mistérios também distintos: Cum
distinctionibus argenti. Em suma: que assim como em todos estes mistérios,
por meio da meditação, fala Deus distintamente à alma, assim para todos e cada
um deles lhes quer ter bem dispostos e preparados os ouvidos, e não só ornados,
mas sobreornados: Murenulas aureas
faciemus tibi. Até aqui o Esposo.
Agora
fala a Esposa, e diga ela também o que o Esposo lhe diz quando lhe fala aos
ouvidos: Vox dilecti mei pulsantis: Aperi
mihi, soror mea, amica mea, columba mea, immaculata mea. Fala a voz de
Cristo, e bate às portas da alma, que são os ouvidos: Voz dilecti mei pulsantis: o que lhe pede é que abra: Aperi mihi — e os motivos ou títulos que
lhe alega para a persuadir é chamar-lhe irmã: soror mea; amiga: amica mea;
pomba e imaculada: columba mea,
immaculata mea. E por que alega Cristo estes títulos, e não outros, quando
bate com a voz aos ouvidos da alma? É coisa verdadeiramente maravilhosa.
Alega-lhe estes títulos, e não outros, porque neles se contêm distinta e
nomeadamente todos os mistérios do Rosário: no primeiro título os Gozosos, no
segundo dos Dolorosos, no terceiro os Gloriosos. Assim o notou, muito antes de
haver Rosário, Justo Orgelitano, e o declarou tão sucinta como elegantemente: Soror, quia de sanguine ejus; amica, quia
per mortem ejus reconciliata; columba, quia de Spiritu Sancto immaculata:
Chama-lhe irmã porque na Encarnação unindo a si o Verbo a nossa humanidade, se
fez irmão nosso: Soror, quia de sanguine
ejus. — E estes são os primeiros mistérios do Rosário. Chama-lhe amiga,
porque por meio da morte e Paixão de Cristo se reconciliou a natureza humana
com Deus: Amica, quia per mortem ejus
reconciliata. — E estes são os segundos mistérios. Chama-lhe, finalmente,
pomba e imaculada, porque por meio da vinda e graça do Espírito Santo se lhe
tiraram as manchas do pecado: Columba,
quia de Spiritu Sancto immaculata. — E estes são os terceiros mistérios.
Com estes títulos e motivos de seu amor bateu o Esposo às portas da alma para
que lhas abrisse, e com estes somente, e nenhuns outros, porque não tem Cristo
outra máquina nem outra bataria mais forte para render nossas almas que os
mistérios do Rosário. Os nossos ouvidos são os batidos, e a sua voz é a que
bate: Vox dilecti mei pulsantis.
Mas
porque a Esposa nesta ocasião se mostrou menos diligente em acudir à voz do
Esposo e lhe abrir as portas, que faria o Amante divino para prosseguir e
conseguir a empresa em que tão empenhado estava o seu amor? Caso sobre todo o
encarecimento notável, e no mesmo Deus estupendo! Torna o Senhor a instar no
mesmo requerimento, e os motivos que de novo alega não são outros, senão os
mesmos mistérios do Rosário mais vivamente representados: Quia caput meum plenum est rore, et cincinni mei guttis noctium
(Cânt 5, 2): Compadecei-vos de mim — diz — Esposa minha, porque trago a cabeça
coberta de orvalho, e me estão correndo pelos cabelos em fio as gotas das
noites. — E que orvalho e que gotas, não da noite, senão das noites são estas?
O orvalho — diz Filo Carpácio — é o da madrugada gloriosa em que Cristo
ressuscitou: Caput Christi plenum est
rore in resurrectione, quae mane facta est, cum ros in terram descendit. As
gotas das noites não hão mister comentador, porque bem se está vendo que são as
gotas das lágrimas da noite do nascimento, e as gotas do sangue na noite do Hôrto: Et factus est sudor ejus, sicut
guttae sanguinis decurrentis in terram. De maneira que nas lágrimas do
Presépio, acompanhadas de músicas de anjos, lhe alegou os mistérios Gozosos;
nas gotas do sangue, espremidas da dor, da aflição e da agonia no Horto, os
mistérios Dolorosos; e no orvalho da madrugada da Ressurreição alegre e triunfante,
os Gloriosos. E não alegou nem disse mais o Esposo, porque para penetrar os
nossos ouvidos e render os nossos corações, em chegando a nos representar e
repetir uma e outra vez os mistérios do Rosário, não tem Cristo mais que alegar
nem mais que dizer. Ainda desta segunda vez se escusou contudo a Esposa, e não
abriu; mas, tanto que considerou e meditou o que tinha ouvido, não só abriu a
porta, mas, saindo de casa, e como fora de si, pelas ruas, sendo de noite, e
pelas portas da cidade, estando cercadas de guardas, roubada e, sobrerroubada,
ferida, assim foi buscar o Esposo, até que o achou. E se tanto caso faz Deus, e
tanto consegue de nós pelos mistérios do Rosário ouvidos e meditados, que muito
é que estime mais e lhe seja mais aceito o Rosário por este modo, que rezado só
vocalmente.
CAPÍTULO VI
Benefícios
da meditação dos mistérios do Rosário. Diz Davi que o seu coração meditava
dentro nele, porque muitos não têm o seu coração dentro em si, senão fora de
si. Cristo mais quer ser ouvido que comungado. Razões do lastimoso milagre dos
que comungam e não se sentem abrasados. Por que dizem os discípulos de Emaús
que lhes ardia o coração quando o Senhor lhes falava, e não quando comungavam
seu corpo? O salmo das vozes de Deus. O aperfeiçoamento dos ouvidos. Se Cristo,
no Sacramento, antes quer ser ouvido que comungado, como não estimará mais no
Rosário o ser ouvido que ouvi-lo rezar?
Finalmente,
que da nossa parte nos seja mais útil esta mesma meditação dos mistérios, e
ouvir o que Deus nos diz por ela, só o poderá duvidar quem ignore o que todos
sabem, que por falta de consideração se perde o mundo. Já dissemos ou já nos
disse Davi que na sua meditação lhe falava Deus. E se lhe perguntamos quais
eram os efeitos que experimentava neste meditar e neste ouvir, ele mesmo no-lo
dirá, e não sem grande confusão dos que rezam o Rosário e o perdem, porque o
não meditam: Concaluit cor meum intra me,
et in meditatione mea exardescet ignis (S1 38, 4): Meditei — diz Davi — e
por meio da meditação se me acendeu no peito tal fogo, que o meu coração dentro
em mim ardia. — Nota aqui advertidamente o Cardeal Hugo, e repara muito em
dizer Davi que o seu coração ardia dentro nele: Cor meum intra me: O meu coração dentro em mim. — Pois, onde havia
de estar o vosso coração, Davi, senão dentro em vós? — Podia estar lá por onde
ele andou noutro tempo, quando eu não meditava; podia estar lá por onde andam
também os corações de muitos que rezam o Rosário, sem meditação no mesmo tempo
em que o rezam: Multi enim sunt qui non
habent cor intra se, sed extra, ad temporalia et mundana quaecumque, nec
possunt calefieri: Diz Davi que o seu coração, quando meditava, ardia
dentro nele, porque muitos não têm o seu coração dentro em si, senão fora de
si, e muito longe. Fora de si, porque não cuidam em si, e muito longe de si,
porque todos seus cuidados andam só atentos e aplicados às coisas temporais e
mundanas, que amam. — Donde vem que, assim divertidos e esquecidos do que só
importa, não podem conceber o fogo divino, que de frios os aquente, de duros os
abrande e de cegos os alumie, que são os dois efeitos da meditação. O primeiro,
tirar e trazer o coração de lá por onde anda distraído e perdido, e metê-lo
dentro em nós: Cor meum intra me — o
segundo, de frio, duro e cego, pegar nele o fogo do amor divino, alumiá-lo,
acendê-lo e abrasá-lo: Et in meditatione
mea exardescet ignis.
Isto
é o que faz a meditação, e nenhuma mais própria e eficazmente que a dos
mistérios do Rosário. Nos primeiros, e gozosos, da infância de Cristo, como não
se acenderá o fogo nas palhas do presépio? Nos segundos, e dolorosos, da
Paixão, como não se ateará com muito mais força nos espinhos e lenhos da cruz?
Nos terceiros, e gloriosos, da Ressurreição e Ascensão, como não subirão as
chamas até o céu, donde desçam por reflexão, como desceram, em línguas de fogo?
Coisa digna de grande reparo é que, descendo o Espírito Santo, viesse em forma
de fogo e em figura de línguas. Mas assim havia de ser para obrar o a que
vinha. Em fogo, porque vinha acender os nossos corações, e em línguas, porque,
para acender os corações, há de entrar pelos ouvidos. Onde, porém, acharei eu
algum meio que convença a verdade desta conclusão, e a persuada eficazmente a
todos os que rezam o Rosário?
Muito
há, Senhor, que, parece, me esqueço de que estais presente, pois não recorro
aos auxílios de vossa divina sabedoria, para dar a maior autoridade a quanto
tem dito o meu discurso. Mas advertidamente me fui dilatando até este ponto,
que é mais particularmente vosso. Encarnado e sacramentado, sempre sois Verbo,
e, posto que no silêncio desse Sancta
Sanctorum parece que não falais, também aí quereis ser ouvido. E como o
intento de vosso amor nessa esfera de fogo, posto que coberta de neve, é
acender nossos corações, dai-me licença para que pregue a este auditório que
mais quereis ser ouvido que comungado. Se mais vos agrada o Rosário dos ouvidos
que o da boca, por que não direi eu o mesmo desse Sacramento? Assim o digo,
fiéis, e assim o provo, ou assim vos explico e declaro o que tão provado está
em nós quanto não devera: Ignem veni
mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur (Lc 12, 49): Diz Cristo
que veio lançar fogo à terra, e que nenhuma outra coisa quer senão que se
acenda. — Pois, se este fogo divino está todo naquela sarça, e multiplicado em todas
as partes da terra, como se não acende a terra? Numquid
potest homo abscondere ignem in sinu, ut vestimenta illius non ardeant (Prov 6, 27)? Porventura — diz o Espírito Santo — pode um homem
esconder o fogo no seio, sem que se lhe abrasem as vestiduras? — Pois, como
recebemos nós tantas vezes, e metemos dentro no peito aquele fogo, sem que o
mesmo peito se abrase? A razão deste lastimoso milagre é porque não ouvimos a
quem comungamos. Comungamos a Cristo, mas não ouvimos a Cristo; e Cristo, para acender
corações, mais eficácia tem ouvido que comungado. Vede claramente.
Caminhava
Cristo para Emaús, também disfarçado como ali está, até que os dois discípulos
fizeram alto para passar a noite. Deixou-se o Senhor convidar, assentou-se à
mesa, consagrou o pão, partiu-o entre ambos, e, conhecido, desapareceu. Tudo
isto encerra grandes mistérios, mas o que eu considero ainda espera pela
segunda parte da história. Voltam os dois discípulos para Jerusalém, já não
tristes, mas cheios de alegria e alvoroço, já não fracos na esperança, mas
confirmados na fé, e, conferindo o que lhes tinha sucedido, diziam entre si: Nonne cor nostrum ardens erat in nobis dum
loqueretur in via (Lc 24, 32)? Não vistes como nos ardia o coração quando
nos falava pelo caminho? — Tende mão: aqui reparo e argúo os mesmos discípulos.
Duas coisas tinha Cristo feito, uma no caminho, outra na mesa, e esta ainda
maior, porque no caminho praticava com eles; na mesa, deu-lhes seu próprio
corpo sacramentado. Pois, se dizem que lhes ardia o coração quando o Senhor
lhes falava, por que não dizem que lhes ardia quando comungaram seu corpo?
Quando comungaram estava Cristo mais perto do seu coração, quando lhes falava
estava mais longe; quando comungaram estava dentro neles, quando lhes falava ia
somente com eles: Ibat cum illis (Lc
24, 15). — Pois, se lhes não ardia o coração quando comungaram, por que lhes
ardia quando somente o ouviam? Por isso mesmo: porque o ouviam. E para acender
e abrasar corações, parece, tem mais eficácia Cristo ouvido que Cristo
comungado. Comungado desce ao peito, ouvido acende o coração. E se ouvido em um
só mistério do Rosário, que era o da sua Ressurreição, causa tão prodigiosos
efeitos, que será em todos os mistérios? Ouçamos a Cristo no Rosário e
ouçamo-lo no Sacramento; e para ouvirmos o que nos diz, meditemos aqueles
mistérios, e meditemos este, que, ainda que parece mudo, todo é vozes.
Ouvi
agora o que muitas vezes ouvistes e reparai no que nunca reparastes. É o salmo
vinte e oito: Afferte Domino, filli Dei,
afferte Domino filios arietum. Afferte Domino gloriam et honorem; afferte
Domino gloriam nomini ejus; adorate Dominum in atrio sancto ejus (S1 28,
1): Oferecei ao Senhor, filhos de Deus, oferecei ao Senhor cordeiros,
oferecei-lhe honra e glória, e adorai-o no seu santo templo. — Dizem comumente
os expositores que exortava aqui o profeta à freqüência dos sacrifícios do seu
tempo. Mas eu digo que nem falava com os homens do seu tempo, nem dos
sacrifícios do seu tempo, senão do nosso; e provo uma e outra coisa. Não falava
com os homens do seu tempo, porque lhes chama filhos de Deus: Afferte Domino, filii Dei — e o ser
filhos de Deus é próprio dos cristãos e da lei da graça, como diz S. João: Dedit eis potestatem filios Dei fieri
(Jo 1, 12). Nem falava dos sacrifícios da lei velha, porque faz menção de um só
sacrifício, e esse de cordeiro, que é o de que também disse o outro S. João:
Ecce Agnus Dei, ecce qui tollit peccata
mundi. — E não encontra a propriedade desta significação o falar em plural,
porque essa é uma das maravilhas deste sacrifício, e deste Cordeiro: ser um só,
e estar multiplicado em toda a parte, como se foram muitos. Isto posto, lede
agora o resto de todo o salmo, e vereis que em todo ele não faz outra coisa o
mesmo profeta que encarecer-nos a voz e as muitas vozes do Senhor: Vox Domini super aquas; vox domini in
virtute; vox Domini in magnificentia; vox Domini confringentis cedros; vox
Domini intercidentis flammam ignis; vox Domini concutientis desertum; vox
Domini praeparantis cervos. Pois, se o tema e o assunto do profeta é o
sacrifício e Sacramento do altar, como todo o seu discurso nem é da verdade e
realidade do mistério, nem do amor, nem da fineza, nem das maravilhas e
infinitos milagres que nele se encerram, senão das suas vozes e mais vozes, sete
vezes repetidas? Que tem que ver o Sacramento com as vozes, ou as vozes com o
Sacramento? Esta mesma admiração mostra bem o mal que entendemos no Diviníssimo
Sacramento o que primeiro que tudo e mais que tudo devêramos entender. Cuidamos
que Cristo no Sacramento está mudo, e sua presença ali toda é vozes.
Cuidamos
que satisfazemos à nossa obrigação com sacrificar, com adorar, com comungar,
sem tratarmos de ouvir, e isto é o que o Senhor mais deseja e espera de nós.
Por isso o profeta, deixando tudo o mais que pudera dizer de suas excelências,
só nos prega e apregoa as suas vozes, como eu também faço agora, porque esta é
a doutrina e o aviso mais importante à nossa desatenção, e o espertador mais
necessário aos nossos ouvidos. Muito estima Cristo no Sacramento o ser adorado,
o ser venerado, o ser servido e festejado, e, sobretudo, o ser comungado; mas o
ser ouvido, muito mais.
Mais
que isto parece que dizem outras palavras do mesmo Davi; mas não dizem mais que isto, e o provam
admiravelmente: Sacrificium et oblationem
noluisti; aures autem perfecisti mihi (S1 39,7): Vós, Senhor — diz Davi —
não quisestes oblações nem sacrifícios, mas aperfeiçoastes-me os ouvidos. —
Quando Deus, em frase da Escritura, diz que quer uma coisa e não quer outra,
não quer dizer que não quer totalmente esta segunda, senão que antes quer e
mais quer a primeira. Assim diz: Misericordiam
volo, et non sacrificium — não
porque Deus não queira o sacrifício, mas porque quer, mais que o sacrifício, a
misericórdia. E do mesmo modo se há de entender a sentença proposta de Davi: Sacrificium et oblationem noluisti; aures
autem perfecisti mihi. — Quer dizer: — Vós, Senhor, mais quisestes a
perfeição dos meus ouvidos que a oblação dos vossos sacrifícios. — De sorte
que, sendo o Sacrifício e Sacramento do Altar a maior coisa que Deus pode
receber de nós enquanto Sacrifício, e a maior que nós podemos receber de Deus
enquanto Sacramento, diz contudo Deus que mais quer os nossos ouvidos, e que
por isso no-los aperfeiçoa: Aures autem
perfecisti mihi.— Vede se tive eu fundamento para dizer que mais quer
Cristo de nós o ser ouvido que o ser comungado. Mas qual é ou pode ser a razão?
Comungar
a Cristo é receber o que Cristo é; ouvir a Cristo é perceber o que Cristo diz.
Como pode logo ser melhor ouvir o que diz que perceber o que é? A instância é
forte, mas a solução fácil e verdadeira está nas mesmas palavras: Aures autem perfecisti mihi. — Há ouvir
com ouvidos perfeitos e ouvir com ouvidos imperfeitos: ouvir com ouvidos
imperfeitos, é ouvir somente, sem obrar; ouvir com ouvidos perfeitos, é ouvir e
efetuar o que se ouve. E quando se ouve desta maneira, melhor é ouvir a Cristo
que comungar e receber a Cristo. O mesmo Cristo o disse. A mulher do Evangelho
louvou a Senhora por trazer dentro em si a Cristo: Beatus venter qui te portavit — e o Senhor replicou, dizendo: Quinimmo beati qui audiunt verbum Dei et
custodiunt illud: que melhor era ouvir a palavra de Deus, e guardá-la. —
Logo, melhor é ouvir a Cristo, guardando o que diz, que comungar a Cristo, recebendo
em si o que ele é.
E
daqui ficam convencidos todos os que rezam o Rosário quanto mais útil e
importante lhes é rezá-lo pelos ouvidos. Que comparação tem o Rosário somente
rezado com a boca, com o mesmo Cristo, e todo Cristo, não só tomado na boca,
mas passado ao peito, e recebido e entranhado dentro em nós? Pois, se Cristo no
Sacramento antes quer ser ouvido que comungado, como não quererá e estimará
mais no Rosário o ser ouvido que ouvi-lo rezar? E se a razão desta diferença é
ter mais eficácia Cristo ouvido para penetrar e acender nossos corações, que
coração haverá tão frio, tão duro, tão cego, que não queira receber pelos
ouvidos este divino incêndio? O que importa logo a todos os que rezam o
Rosário, é aplicar os ouvidos meditando, e aperfeiçoá-los executando o que
ouvirem: Aures autem perfecisti mihi — porque deste modo se farão dignos de ouvir
da boca de Cristo: Beati qui audiunt
verbum Dei.
CAPÍTULO VII
O
profeta Habacuc, o que melhor e mais claramente praticou a oração mental. De
que nos argúi Deus nos mistérios do Rosário? De que mistérios falou o profeta
quando diz que ficou mudo de pavor e de pasmo? Parece-me que, suposta a
evidência destes três motivos: da parte nossa, cujo proveito devemos procurar,
tão útil; da parte de Deus, a quem queremos agradar, tão conveniente; e da
parte do mesmo Rosário, cuja devoção professamos, tão necessário, nenhum
entendimento haverá que se não deixe convencer, e nenhuma vontade que não
esteja afeiçoada ao inteiro e perfeito exercício do mesmo Rosário, não só
rezando as orações, mas meditando os mistérios, nem só falando vocalmente com
Deus, mas ouvindo mentalmente o que ele nos diz.
Vindo,
pois, à praxe desta grande obra — grande, mas nem por isso dificultosa — quem
melhor e mais claramente a praticou foi o profeta Habacuc, o qual no capítulo
segundo, e no texto original, diz desta maneira: Super speculam meam stabo, et figam gradum super gyrum, et contemplabor
ut videam quid dicatur mihi, et quid respondeam ad arguentem me: Subirei —
diz o profeta — à minha atalaia — assim chama ao lugar de oração, porque ela é
alta, e esta vida milícia; e como da vigilância da sentinela depende a
segurança da cidade, sem oração, e vigilante oração, não está a alma segura: Super speculam meam stabo. A palavra speculam, donde tomou o nome a
especulação, declara o gênero da oração de que fala; e que não fala da oração
vocal, senão da mental, cujo ofício é especular, considerar, meditar. Supõe que
esta atalaia da oração a que sobe, é formada em um círculo — como se tratara
propriamente do Rosário — e diz que não há de rodear e correr o círculo, senão
parar e fixar o pé nele: Figam gradum
super gyrum — porque os que rezam só vocalmente vão dando volta ao círculo
do Rosário sem parar; porém, os que meditam e especulam, param, com a
consideração, a cada mistério. Assim parado, pois, diz que há de contemplar: contemplabor — e que o fim de toda a sua
contemplação será ouvir o que Deus lhe fala: Ut videam quid loquatur mihi — e saber o que há de responder quando
o mesmo Deus o argüir: Et quid respondeam
ad arguentem me.
Isto
é o que diz, e o que fazia o profeta, e isto o que, sem dizer nem falar, há de
fazer quem meditar os mistérios do Rosário.
Parar
a cada um meditando-o, e ouvir o que Deus lhe diz e o que lhe argúe: Quid loquatur mihi, et arguentem me. —
Ponhamos o exemplo desta praxe nos primeiros mistérios. No mistério da
Encarnação diz-me Deus que se fez homem por amor de mim, e para me fazer filho
de Deus. E de que me argúi? De que, fazendo por mim o que não fez pelos anjos,
e devendo eu, como filho de Deus, viver uma vida divina, nem vivo como filho de
Deus, nem vivo como anjo, nem vivo como homem, senão talvez como bruto. No
mistério da Visitação o que me diz é que no mesmo instante em que se viu feito
homem, partiu logo às montanhas a santificar o Batista e livrá-lo do pecado
original. E de que me argúi? De que indo ele antes de nascer a tirar do pecado
um homem que ainda não era nascido, eu tenha tão pouco horror ao pecado, não
alheio, senão próprio, não original, senão atual, e, o que e pior ainda,
habitual, que me deixe estar e continuar nele, sem temor, sem cuidado, sem
pena, antes alegre e contente, como se alegrou o Batista. No mistério do
Nascimento o que me diz é que nasceu em um portal por não ter casa, e esteve
reclinado em uma mangedoura por não ter berço. E de que me argúi? De que eu me
não contente com a comodidade natural e com o necessário para a vida, senão com
a superfluidade, com o luxo, com os excessos, esquecido de que nasci para a
alma morar no céu, e o corpo na sepultura, não falando na ambição dos que
edificam palácios soberbos, nem na inveja dos que os não podem edificar. No
mistério da Presentação no Templo diz-me que obedeceu à lei sem ser obrigado a
ela, e que aos quarenta dias de nascido se consagrou todo a Deus. E de que me
argúi? De que, comparados aqueles quarenta dias com os meus quarenta anos, e
com os meus cinqüenta, e ainda mais, eu me lembre tão pouco do que prometi
quando me disseram: Ingredere in Sanctam
Ecclesiam — e que, havendo renunciado
a Satanás, e a todas suas pompas, essas são as que mais professo, não se
sabendo em que lei vivo, ou se tenho alguma lei, e se o templo e altar que
adoro é o de Deus ou do ídolo. No mistério, enfim, do Menino bem perdido e
melhor achado, o que me diz é que deixou sua própria Mãe — e tal Mãe — por
tratar só de Deus e defender sua causa. E de que me argúi? De que quem o perdeu
sem culpa o buscasse com tanta dor, e que não tenha eu dor de o ter perdido
tantas vezes, e por tão graves culpas, e tão repetidas; que o perca por muito
meu gosto, e, podendo-o achar tão facilmente, o não busque, e sobretudo, que
ame tanto minha própria perdição que, buscando-me ele por tantas vias, eu me
não deixe achar.
E
se tão sentidamente fala, e tão penetrantemente argúi a infância de um Deus
Menino, que só nesse último mistério falou, e nos primeiros ainda não tinha
língua para falar, que será nos outros mistérios, em que bradam as prisões, os
açoites, os espinhos, os cravos, a cruz, o sangue! E que vozes levantarão até o
céu as chagas conservadas no corpo glorioso e levadas ao empíreo, para de lá
tornarem a aparecer no dia do Juízo? O pasmo que todas estas coisas causam em
quem profundamente as medita, e o horror com que estes espantosos brados se
sentem tinir nos ouvidos: Ut tinniant
ambae aures ejus — só o mesmo
profeta o soube declarar dignamente, e o faz no capítulo seguinte.
A
este capítulo, que é singularmente notável — e para que todos o notassem — com
estilo nunca usado, nem do mesmo, nem de outro profeta, pôs ele por título: Oratio — oração, e diz assim: Domine, audivi auditionem tuam, et timui;
consideravi opera tua, et expavi (Hab 3, 1 LXX): Senhor, eu ouvi a vossa
audição — digamo-lo assim, pois a nossa língua não tem outra palavra com que
explicar a do profeta — Senhor, eu ouvi a vossa audição, e temi; considerei as
vossas obras, e fiquei mudo de pavor e de pasmo. — Ele pasmou, e o texto de
todo o capítulo é muito para nós pasmarmos. Primeiramente, se o profeta lhe
tinha posto por título oração, por que não diz que Deus o ouviu a ele, senão
que ele ouviu a Deus? Por que não diz: Senhor, vós ouvistes a minha oração —
senão: Senhor, eu ouvi a vossa audição: Audivi
auditionem tuam? — Aqui vereis como o mesmo profeta, que pouco antes disse
que contemplava, o seu modo de orar era pelos ouvidos. Orava sim, mas não
falava. Deus era o que falava, e ele somente ouvia; e por isso a sua oração era
audição: Audivi auditionem tuam, et timui.
Mas,
se o seu temor e o seu horror era causado do que ouvia a Deus, e o que Deus lhe
dizia era tirado do que ele meditava, e o que meditava eram as obras de Deus: Consideravi opera tua, et expavi — que
obras eram estas tão temerosas e espantosas, que o assombravam e enchiam de
horror? Porventura criar o céu e a terra, e tudo quanto nela vemos, com uma
palavra, e lançar do paraíso ao primeiro homem e todos seus descendentes pelo
fruto só de uma maçã? Porventura alagar o mesmo mundo com o dilúvio universal,
matando tudo quanto nele vivia, e salvá-lo todo dentro em uma arca? Porventura
abrir o Mar Vermelho com o golpe de uma vara, para que o seu povo o passasse a
pé enxuto, e afogar nele todo o poder dos exércitos de Faraó e seus carros?
Nenhuma destas coisas, nem infinitas coisas que Deus obrou do mesmo gênero,
eram as que assombravam o profeta. Pois, quais eram? Se ele o não dissera,
ninguém o pudera entender nem ainda imaginar. Eram somente as obras de Deus, de
que se compõe o Rosário e meditamos nos seus mistérios.
Eram
os mistérios da Encarnação, em que Deus, para reparar o homem, não só se fez
homem, mas menino e criança, que foi infinitamente mais que criar com uma
palavra o mundo: In medio annorum notum
facies; in medio duorum animalium cognosceris. Deus, nascido e reclinado
nas palhas em meio de dois animais, e aí reconhecido de anjos, de pastores, de
reis. Eram os mistérios da Paixão e da Cruz, em que destruiu o pecado, a morte
e o demônio, e salvou o gênero humano, que foi mais que afogar o mundo com o
dilúvio, e salvá-lo em uma arca: Cornua
in manibus ejus; ibi abscondita est fortitudo ejus. Ante faciem ejus ibit mors;
et egredietur diabolus ante pedes ejus. Deus, com os braços pregados em um
madeiro, mas ali com a morte e o demônio maniatados e prostrados a seus pés.
Eram os mistérios da Ressurreição, em que, como Deus, saiu da sepultura vivo,
imortal e glorioso, e, como triunfador do inferno, rico de despojos, que foi
muito mais que abrir o Mar Vermelho, sepultar nele os carros de Faraó e levar
tantos milhares de cativos libertados no seu triunfo: Suscitans suscitabis arcum tuum, juramenta tribubus quae locutus es:
ascendens super equos tuos, et quadrigae tuae salvatio . — Deus,
ressuscitando a sua humanidade, que foi o arco com que pelejou, e
ressuscitando-a, como tinha prometido às mesmas tribos que o crucificaram, e
trazendo após si em carroças triunfais os que tinha libertado dos cárceres do
limbo.
Estas
eram as obras mais maravilhosas de Deus, estes os mistérios do mesmo Deus feito
homem, gozosos, dolorosos e gloriosos, que o profeta contemplava e meditava,
pasmado e mudo; estas eram as vozes que ouvia, nascidas da consideração dos
mesmos mistérios — que são todos os do Rosário — e a este modo de meditar e
ouvir chamou ele por excelência oração — oratio
— porque o mais excelente modo de orar não é vocalmente e com a boca, senão
mentalmente e pelos ouvidos: Audivi
auditionem tuam.
CAPÍTULO VIII
Duas
dificuldades, que são as que só se podem oferecer para impedir tão santo e tão
importante exercício: a ignorância e as ocupações. O engano dos que não meditam
porque não sabem. Não só é engano dizer que não sabemos meditar, como muitas
vezes meditamos sem o saber. A escusa das ocupações. Resposta do duque de Alba
ao rei da Franca na batalha de Vitemberga. As orações da Igreja nas solenidades
do Rosário.
Agora
parece que se seguia exortar a esta mesma praxe de rezar o Rosário, não só
rezando, senão meditando e ouvindo.
Mas,
porque eu não quero desacreditar nem a devoção nem o juízo dos que até agora o
não exercitaram assim, os quais suponho persuadidos, somente satisfarei a duas
dificuldades — quando não sejam tentações do demônio — que são as que só se
podem oferecer para impedir tão santo e tão importante exercício. Quem as
aponta não é menos que o Espírito Santo, por boca do mesmo profeta que acabamos
de alegar, e no mesmo capítulo. Já disse que este capítulo tinha por título oratio, oração. E diz mais alguma coisa?
Duas, e ambas notáveis. Uma no texto latino: Oratio pro ignorantiis: oração para as ignorâncias e outra do texto
hebreu: Oratio pro occupationibus: oração para as ocupações. — Pois esta oração em
que se reza o Rosário pelos ouvidos, e este título extraordinário que lhe pôs
em cima o profeta, só traz o sobrescrito para as ignorâncias e para as
ocupações, e só para elas foi particularmente composto? Sim. Porque estas são
as duas escusas por que os mistérios do Rosário se não meditam. Uns dizem que
não meditam porque não sabem meditar: pro
ignorantiis — outros dizem que não meditam, porque têm muitas ocupações, e
não podem: pro occupationibus — e eu
não quero outra peroração, senão mostrar a estes ignorantes e a estes ocupados,
que uns e outros se enganam e se mentem a si mesmos.
Enganam-se
os que dizem que não meditam porque não sabem: pro ignorantiis — e é engano ou ilusão manifesta. Meditar não é
outra coisa que cuidar um homem no que lhe importa ou deseja, e nenhum há que
não medite. O pleiteante medita na sua demanda; o requerente medita no seu
despacho; o mercador medita nos seus comércios; o estudante medita nos seus
estudos; o pai de famílias medita no sustento de sua casa; o oficial, o
marinheiro, o lavrador, o soldado, todos meditam. De sorte que para meditar não
é necessário ser anacoreta nem santo. Os muito viciosos também meditam nos seus
mesmos vícios: os vãos meditam na vaidade: Meditati
sunt inania; os falsos meditam nos enganos: Dolos tota die meditabantur; o inimigo medita nos ódios: Meditatur
discordias (39); o ladrão medita nos roubos: Rapinas meditatur ; e todo o mau, de qualquer gênero, medita na sua
maldade: Iniquitatem meditatus est in
cubili suo. — Tão fácil como isto é meditar os mistérios do Rosário. Cuidai
e considerai neles, e meditastes. Nem importa ou faz diferença que aqueles
mistérios sejam obras e ações de Cristo, e não vossas; porque todas as fez
nossa o seu amor; e quando fossem alheias, nem por isso dificultariam a
meditação. Não discorreis vós e ajuizais sobre as ações do rei, do general, do
prelado, do ministro, do pregador, e sobre todas quantas vedes no vosso
vizinho? Pois, olhai do mesmo modo para as ações de Cristo, considerai com
atenção quem é, o que faz, o que diz, o que padece, e por amor de quem, e os
sentimentos e afetos que esta mesma consideração vos excitar no entendimento ou
na vontade estas são as vozes interiores com que Deus vos fala, e, se vós os
ouvis como deveis, fizestes uma perfeita meditação.
Assim
que não só é engano dizerdes que não sabeis meditar, mas antes vos digo que
muitas vezes meditais sem o saber.
Dizei-me:
quando pelo Natal visitais um presépio, não vos enternece aquela pobreza,
aquela humildade, aquele desamparo?
Quando
pela quaresma vedes uma procissão dos passos, aquela temerosa e lastimosa
figura de Cristo com a cruz às costas não vos move à piedade e compunção? E
quando no dia da Ascensão assistis à Hora, a subida daquele Senhor ao céu não
vos faz saudades e desejos de outra hora, em que vades também estar com ele? Pois
tudo isto é meditar, e em todas as três diferenças dos mistérios do Rosário.
Mas sucede-vos o mesmo que a Samuel nos seus princípios. Três vezes falou Deus
a Samuel chamando-o por seu nome, e ele cuidou que era Heli, e não Deus, porque
ainda lhe não conhecia a fala, diz o texto sagrado: Porro Samuel necdum sciebat Dominum, neque revelatus
fuerat ei sermo Domini. — Assim vos fala Deus, e o ouvis, e meditando
cuidais que não sabeis meditar, porque tendes metido no conceito que a
meditação e a oração mental é uma coisa muito dificultosa. Fazei isto mesmo
sempre e com mais vagar e maior atenção em todos os mistérios, e quando
tomardes o Rosário na mão, dizei somente a Deus o que Heli ensinou a Samuel que
dissesse: Loquere, Domine, quia audit
servus tuus (l Rs 3, 10): Falai, Senhor, porque vosso servo ouve.
A
escusa das ocupações: pro occupationibus
— ainda tem menos fundamento, e de que se há de dar mais estreita conta a Deus.
Lembra-me a este propósito que no dia da famosa batalha de Vitemberga, em que
perdeu a liberdade e o vão nome de imperador o eleitor de Saxônia, tendo durado
o conflito nove horas, correu fama que o sol estivera parado por algum espaço;
e, perguntando el-rei de França ao duque de Alba, que fora o general do
exército cesáreo, se era verdade o que se dizia do sol, respondeu: — Sir, eu
nesse dia tive tanto que fazer na terra que me não ficou lugar de olhar para o
céu. — Assim o cuidam — posto que o não digam tão discretamente — os que se
escusam de não meditar por muito ocupados. É certo que as ocupações que impedem
o olhar para o céu não devem ser muito acomodadas para ir ao céu. A Josué, que
governou maiores exércitos que quem isto disse, e que ganhou mais vitórias que
seu amo Carlos, e de quem se não duvida que fez parar o sol, o que Deus lhe
encomendou, sobretudo, foi que de dia e de noite meditasse na sua lei: Non recedat volumen legis hujus ab ore tuo,
sed meditaberis in eo diebus ac noctibus. — E a razão que o mesmo Deus lhe
deu é muito para ser advertida dos que têm grandes ocupações: Ut intelligas cuncta quae agis (Jos 1 ,
7): Para que entendas tudo o que houveres de fazer. — Por isso não é de
maravilhar que se vejam tantas coisas feitas sem entendimento e contra todo o
entendimento, pois os que se ocupam ou são ocupados nelas não meditam no que
devem. E se Josué, que conquistou trinta e três reinos na Terra de Promissão, e
a repartiu a seiscentas mil famílias das doze tribos, no meio de tantas e tão
graves ocupações militares, políticas e econômicas, tinha tempo de dia e tempo
de noite para meditar, bem se deixa ver quão falso e quão afetado é o pretexto
dos que se escusam da meditação com a ocupação.
Examinem-se
as ocupações dos mais ocupados, e achar-se-á que deixam tempo para o jogo, e
tempo para a comédia, e tempo para a conversação, e tempo para outros
divertimentos que levam mais o cuidado, e só para a meditação dos mistérios, e
da vida do Filho de Deus e de sua Mãe, com que reformar a nossa, não deixam
tempo. Se no meio das maiores ocupações sobrevem a doença, não se trata da
cura? Se no meio das maiores ocupações bate o inimigo às portas, não se tomam
as armas? Sendo, pois, a meditação o remédio mais eficaz de todas as
enfermidades do espírito, e a arma mais de prova contra todos os combates com
que nos faz guerra o demônio, quem será tão inimigo de si mesmo que deixe a
meditação pela ocupação? A hora de comer e as horas de dormir nenhuma ocupação
as impede; e qual é o sustento e sono da alma, senão a meditação interior e
quieta das coisas divinas? Nas mesmas ocupações temporais, se concorrem muitas
juntas, não se deixam as que menos importam, para acudir à de maior
importância? Por que hão logo de impedir as ocupações do mundo a que não
importa menos que a própria salvação? Será bem, diz Tertuliano, que viva só
para os outros quem há de morrer para si? Nemo
aliis nascitur moriturus sibi. A maior ocupação que há nem pode haver no
mundo é a do pastor universal de toda a Igreja. E vede o que escreve S. Bernardo
ao Papa Eugênio nos livros da Consideração: In
quo trahere te habent occupationes istae maledictae, si tamen pergis ita dare
te totum illis, nihil tui tibi relinquens. — Se Vossa Santidade continua a
se dar todo às ocupações, sem deixar nada de si para si, essas malditas
ocupações o levarão aonde vão os malditos. E se este nome merece as ocupações
do governo eclesiástico, santo e santíssimo, quando por demasiada aplicação a
elas chegam a impedir a meditação e consideração do que toca à alma própria, escusai-vos
lá de meditar com as vossas ocupações, em tudo temporais e do mundo!
Suposto,
pois, que nem a ocupação nem a ignorância podem servir de escusa para não
meditar, importa que todos os devotos do Rosário se ocupem e empreguem na
meditação e consideração de seus soberanos mistérios, e que em tudo sigam o
exemplo e praxe do profeta, que dizia: Contemplabor
ut videam quid dicatur mihi (Hab 2, 1): Meditarei e contemplarei para ver e
ouvir com evidência o que Deus me diz. — E para que ninguém cuide que só com
rezar as orações satisfaz à obrigação do Rosário, ouçam todos os que na mesma
Missa, agora instituída para a solenidade própria do Rosário, diz e pede a Deus
a Igreja. Na primeira oração pública diz assim: Ita ipsius Rosarii sacra mysteria contemplemur in terris, ut post hujus
vitae cursum eorum fructus percipere mereamur. E na última, também pública:
Concede per haec sancta Rosarii
Genetricis tuae mysteria, ut continue eadem contemplantes, perpetuae nobis
fiant causa laetitiae. E na oração secreta: Sanctissimae Matris tuae Rosarii solemnia recolentes, interiori
Spiritus Sancti invocatione sanctifica. De sorte que em toda a Missa do
Rosário, não fazendo menção alguma a Igreja das orações vocais e exteriores, só
pede graça e favor a Deus para a meditação interior e contemplação dos
mistérios: Mysteria contemplemur,
mysteria contemplantes, interiori Spiritus Sancti invocatione sanctifica —
porque na meditação, consideração e contemplação dos mistérios do Rosário
consiste a parte principal, substancial e essencial desta soberana devoção; e
esta parte mental e interior é a que dá vigor e eficácia à parte exterior e
vocal, como a alma ao corpo. A razão é porque Deus não costuma ouvir senão a
quem o ouve. Assim o mostrou o milagroso crucifixo que, despregando as mãos,
tapou os ouvidos, dizendo ao que lhe pedia perdão e não tinha perdoado: Non audiam te, quia non audisti me. E
como nós na parte mental meditando, ouvimos a Deus, também Deus nos ouve a nós
na vocal. Tanto depende a impetração das orações do Rosário da meditação dos
mistérios, ou tanto depende o Rosário rezado pela boca do Rosário rezado pelos
ouvidos.
CAPÍTULO IX
Abramos
os ouvidos e os apliquemos com grande atenção ao que Cristo nos diz nos quinze
mistérios do Rosário. O que ouviram os Reis Magos na meditação de um só
mistério do Rosário. A voz dos passos de Deus.
O
que só resta é que abramos os ouvidos, e os apliquemos com grande atenção e
devoção ao que Cristo, Senhor nosso, nos diz em todos os quinze mistérios do
Rosário, que são os principais passos de sua vida, morte e ressurreição
gloriosa. E, posto que em alguns deles, assim antes como depois de nascido,
parece que o Senhor está mudo e não fala, todos os mesmos passos falam, e todos
têm voz, e nos dão vozes. Depois de pecarem os primeiros pais, diz o texto
sagrado que ouviram a voz de Deus que passeava pelo paraíso: Cum audissent vocem Dei deambulantis in
paradiso (Gên 3, 8). — Qual fosse esta voz não o declara o texto; mas a
exposição mais literal é que era o som dos mesmos passos com que o Senhor, em
figura humana, vinha buscar o homem perdido. Esta foi a voz que eles ouviram, e
os obrigou a se esconderem.
Em
nenhum passo esteve Cristo mais mudo que no do Nascimento, e por isso os anjos
disseram aos pastores que achariam no presépio um menino que não falava: Invenietis infantem (Lc 2, 12). Mas
neste mesmo passo ou mistério do Rosário vede como o Infante que não falava
falou, e de quanta importância foi o que disse.
Ofereceram
os reis três diferentes dons, em que eram significados os mistérios do Rosário:
no ouro, os Gozosos, na mirra, os Dolorosos, no incenso, os Gloriosos. E que é
o que ouviram, e a quem? Responso accepto
in somnis ne redirent ad Herodem, per aliam viam reversi sunt in regionem suam.
A quem ouviram — como nota S. Jerônimo — foi ao mesmo Cristo, que, mudo no
exterior, lhes falou interiormente aos ouvidos da alma, e por isso in somnis, na maior abstração e silêncio
de todos os sentidos do corpo. E o que ouviram foi que não tornassem a Herodes,
de cuja tirania se podiam justamente temer, e que por outro caminho voltassem
seguros para a sua pátria, como fizeram: Per
aliam viam reversi sunt in regionem suam. — Isto é o que ouviram, na
meditação de um só mistério do Rosário, aqueles três reis sábios. E digo na
meditação, porque não lemos no Evangelho que falassem ali vocalmente uma só
palavra, e só lemos as que ouviram. Ouviram o que lhes importava à vida, e
ouviram o que lhes importava à alma. Vieram gentios, adoraram fiéis, e tornaram
santos. Oh! quantas vezes tem obrado a meditação do Rosário esta mesma
maravilha! Quantos que andavam muito desviados do caminho do céu, que é a nossa
pátria, depois que meditaram aqueles sagrados mistérios, conheceram a diferença
e erro de seus caminhos, e tomaram a verdadeira estrada da salvação! O fim para
que o Filho de Deus veio ao mundo foi para nos ensinar o caminho do céu; e isto
é o que nos ensinam todos os passos de sua vida. Não ouçamos as vozes destes
passos de Deus para fugir e nos esconder, como fez Adão, que por isso perdeu o paraíso.
Ouçamo-las para imitar e seguir os mesmos passos e emendar os nossos, como
fazia Davi: Cogitavi vias meas, et
converti pedes meos in testimonia tua — porque este é só o caminho certo e
seguro por onde se consegue a bem-aventurança, que o mesmo Senhor só promete
aos que ouvem e observam suas palavras: Beati
qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão III - Maria Rosa Mística"
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão III - Maria Rosa Mística"
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