A SINA
Apeando-se do seu negro corcel
andaluz, ajaezado de brunida prata, o jovem fidalgo parou à porta da velha
feiticeira, e, estendendo-lhe a mão aberta, disse: lede a minha sina!
A cigana tomou-lhe a destra
e nela cravando olhos escrutadores, murmurou: amor... riqueza... glórias, tudo,
tudo tereis, se fordes amado pela dama que vos tem preso o coração.
— E, como o sabereis?
Interrogou o cavaleiro.
— A mais nobre donzela,
tornou a cigana, mais alta, mais opulenta, talvez, do que vós, porém, a vossa
gentil presença, vossa excelência e bravura bem vos tornaram merecedor de tão
valioso prêmio.
— Porém... sou amado?
volveu impaciente o mancebo.
— Oh! Sim...creio poder
afirmá-lo, respondeu a velha.
— Ah!... com certeza? Não
mentes?
— Cavaleiro! duvidais? Eu
poderei, talvez, provar-vo-lo.
— Como? ... dizei-lo breve!
exclamou o apaixonado mancebo, jogando ao avental da cigana uma luzida moeda de
ouro.
A feiticeira fez gesto
grotesco, como agradecendo, e alongando o olhar até o horizonte disse: foge o
dia; a sombra da noite já envolve a terra. Apressai-vos, cavaleiro! a nobre
senhora está solitária, pensativa... quiçá pense em vós! Tomai o caminho do
Castelo, penetrai no parque e segui até o terraço; ai, a encontrareis e dela própria
ouvireis se sois amados.
— Como! O que me
aconselhas, jamais o farei; sabeis?
— Sou cavaleiro, sou nobre,
e um nobre cavaleiro nunca praticará essa vilania!
— Mas se representásseis a
velha feiticeira, tornou a cigana, bem o poderíeis fazer .
Sobresteve o fidalgo; seu
rosto exprimiu repugnância; mas, após instantes, disse: — explicai-vos.
— Tomai este manto meu,
esta usada túnica, disfarçai-vos e ide ler à nobre senhora a buena dicha.
Mas, guardai bem vosso incógnito, do contrário, expor-voseis a tudo perder.
Ide; aqui vos esperarei; vosso ginete será bem guardado. E assim falando, a
velha cigana apresentava ao jovem cavaleiro suas esquisitas vestes .
Obediente, desprende o
fidalgo a luzida espada, desata os brunidos acicates, e, envolvendo-se nas
sombrias vestes cabalísticas, tomou o bordão e dirigiu-se ao Castelo.
Solitária, pensativa,
reclinada languidamente sobre macias almofadas de luxuoso divã franjado de
ouro, a nobre donzela tinha a vista perdida no extremo do Céu, lá onde o sol
descendo vagaroso por entre largas faixas de ouro e verde esmaecido, purpurava
com seus últimos raios as nuvenzinhas mimosas dispersas pelo horizonte.
O vulto alquebrado da feiticeira
assomou... aproximou-se e quedou imóvel.
Já o sol se ocultava
resplandecente.
A mimosa castelã suspirou
doce segredo que lhe fugiu dos lábios e se foi suavemente esconder no casto
seio de uma magnólia linda que ela ternamente beijou. Já o sol desaparecera
lentamente.
Ia a retirar-se...
susta-lhe o passo voz estranha e trêmula que assim murmura:
Pensativa estável; sentis
alguma dúvida sobre o vosso futuro, bela senhora?
Eu vo-lo esclarecerei.
Sobressaltou-se a donzela
ao ver a esquisita figura; porém, serenando, perguntou: o que me quereis dizer?
— A vossa sina! Respondeu a
pretensa feiticeira.
A fidalga estendeu a branca
mão que a feiticeira tomou estremecendo, e, examinando-a atentamente
disse: É nobre aquele que amais e por quem sois amada... .
— Amada! repetiu com eco
dulcíssimo a castelã formosa.
— Oh! muito amado, sim!
tornou com veemência a feiticeira.
— Cavaleiro que tanto vos ama
por sua nobreza e valentia, bem merece o vosso afeto, mas...
— Mas?! Dizei! exclamou a
donzela...
— Nem por sua linhagem, nem
por seus haveres vos pode igualar, continuou a velha.
— Isto o que importa? Volve
a fidalga, se o meu belo cavaleiro é nobre e valente como dizeis? Continuai.
— Amai-lo muito?...
perguntou baixinho a feiticeira.
— Se o amo? ...! Oh! Se o
amo...! disse apaixonadamente a jovem, e acrescentou como para si: demais, bem
sei que o nobre marquês Roland de Croixdorée pode muito dignamente vir a ser o
nobre esposo da filha dos Condes de Verdmont! Eu o amo, meus pais o apreciam...
porém, disse, olhando inquieta a velha feiticeira, vossa mão se torna
ardente e fria!... Ele não me ama?
— Senhora! Interrompeu
precipitadamente a feiticeira; leio nos traços de vossa mão: daqui a
alguns dias, cumprir-se-á o vosso destino: sereis esposa daquele que amais e
que muito, muito vos ama!
— Tomai! Disse a jovem
castelã, oferecendo-lhe algumas moedas de ouro; mas a fingida feiticeira
partira veloz e correndo saiu do parque, parou à porta da cigana, despiu-se dos
misteriosos andrajos, cingiu a dourada espada prendeu os brunidos acicates e,
cavalgando o impaciente andaluz, partiu á rédea solta, sem mesmo olhar a velha
cigana que, com seu gesto grotesco murmurou: — quanto é feliz!...
— Oito dias depois, no
solar, celebravam-se as pomposas núpcias do nobre e valente marquês Roland de
Croix-dorée, com a formosa Branca, herdeira dos nobilíssimos condes de
Verdmont.
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Nota:
Delminda Silveira: "Lises e Martírios" (1908)
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