O
DESVALIDO
BEM
AVENTURADOS OS MISERICÓRDIOSOS
Eu estava triste...
Tentara escrever, mas
parecia-me haver esgotado os assuntos todos.
Não tinha inspiração;
pensava mesmo não mais poder encontrar no Céu, no mar ou sobre a terra, coisa
alguma que me comovesse, me interessasse e prendesse meu espírito tomado de
displicência.
Eis que o vi pela
estrada...
— O desvalido era um
espectro vivo!
Magro, cadavérico, parecia
que naquele mísero corpo nem mais um fio de sangue circulava já, tal era a
espantosa cor de cera que, como um véu de morte, lhe cobria o rosto e as mãos
descarnadas!
Arrimado a um bordão,
caminhava lento, de instante a instante parando, vencido pela fraqueza que o
fazia acocorar-se no chão abrasado pelo sol.
E o mísero chamava os transeuntes
estendendo-lhes as esqueléticas mãos, falando com voz surda e entrecortada...
Um homem passava; o
desventurado acenou-lhe.
O caridoso transeunte
chegou-se a ele, e, complacente, escutou-lhe a cansada narrativa de amargurados
revezes.
O infeliz pedia um meio de
condução, sem o que, desfalecido, sucumbiria, em meio ao caminho.
O coração bem formado
daquele que a Providência escolhera para a prática de uma obra misericórdia,
comoveu-se, e, esquecendo por um momento seus negócios, com outros
companheiros, guiados pela virtude celeste, foram em demanda do necessário em
circunstâncias tais.
Os curiosos rodeavam já
então o desvalido a quem o Anjo dos infelizes não abandonava, pois o óbulo da
caridade ia generosamente caindo das mãos do povo na desfalecida mão, que,
entretanto, não se estendera a pedir...
É que a alma cristã é
generosa e compassiva!
Uma canoa tripulada por
dois homens benfazejos vinha receber o infeliz. O primeiro benfeitor, auxiliado
por outro de coração compadecido, ajudou o enfermo a levantar-se, conduzindo-o
até a embarcação onde o acomodaram.
E a canoa vogou, abrindo,
como um grande leque, a esteira na águas serenas da formosa baia que retratava
o Céu azul da minha terra como num enorme espelho de cristal emoldurado de esmeraldas.
O desvalido ia, o quanto
possível, consolado, pois levava no alquebrado peito a fé e a esperança
companheiras inseparáveis da caridade, cujo perfume celestial, ficando na alma
do benfeitor, inundava-a da mais pura, nobre e santa satisfação: - a de haver
praticado o bem...
Oh! Pareceu-me ver, naquele
momento, o Céu abrir-se e Deus abençoando uma vez as almas benfazejas, enquanto
os anjos alegres registravam no livro de ouro das Boas Obras o nome daqueles
que vinham de exercer a doce e sublime Caridade!
Ante aquela grandiosa cena
de dor e comiseração, a minha alma comoveu-se, e, entre duas lágrimas eu
murmurei:
Bem aventurados os
misericordiosos!
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Nota:
Delminda Silveira: "Lises e Martírios" (1908)
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