quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Teófilo Braga: "Os Dez Anõezinhos da Tia Verde-Água"

OS DEZ ANÕEZINHOS DA TIA VERDE-ÁGUA

Era uma mulher casada, mas que se dava muito mal com o marido, porque não trabalhava  nem tinha ordem no governo da casa; começava uma coisa e logo passava para outra, tudo  ficava em meio, de sorte que quando o marido vinha para casa nem tinha o jantar feito, e à  noite nem água para os pés nem a cama arranjada. As coisas foram assim, até que o homem  lhe pôs as mãos e ia-a tosando, e ela a passar muito má vida. A mulher andava triste por o   homem lhe bater, e tinha uma vizinha a quem se foi queixar, a qual era velha e se dizia que as  fadas a ajudavam. Chamavam-lhe a Tia Verde-Água:

– Ai, Tia! vocemecê é que me podia valer nesta aflição.


– Pois sim, filha; eu tenho dez anõezinhos muito arranjadores, e mando-tos para tua casa para  te ajudarem.

E a velha começou a explicar-lhe o que devia fazer para que os dez anõezinhos a ajudassem; que quando pela manha se levantasse fizesse logo a cama, em seguida acendesse o lume, depois enchesse o cântaro de água, varresse a casa, aponteasse a roupa, e no intervalo em que cozinhasse o jantar fosse dobando as suas meadas, até o marido chegar. Foi-lhe assim indicando o que havia de fazer, que em tudo isto seria ajudada sem ela o sentir pelos dez anõezinhos. A mulher assim o fez, e se bem o fez melhor lhe saiu. logo à boca da noite foi a casa da Tia Verde-Água agradecer-lhe o ter-lhe mandado os dez anõezinhos, que ela não viu nem sentiu, mas porque o trabalho correu-lhe como por encanto. Foram-se assim passando as  coisas, e o marido estava pasmado por ver a mulher tornar-se tão arranjadeira e limposa; ao  fim de oito dias ele não se teve que não lhe dissesse como ela estava outra mulher, e que assim viveriam como Deus com os anjos. A mulher contente por se ver agora feliz, e mesmo porque a féria chegava para mais, vai a casa da Tia Verde-Água agradecer-lhe o favor que lhe  fez:

– Ai, minha Tia, os seus dez anõezinhos fizeram-me um servição; trago agora tudo arranjado, e  o meu homem anda muito meu amigo. O que lhe eu pedia agora é que mos deixasse lá ficar.

A velha respondeu-lhe:

– Deixo, deixo. Pois tu ainda não viste os dez anõezinhos?

– Ainda não; o que eu queria era vê-los.

– Não sejas tola; se tu queres vê-los olha para as tuas mãos, e os teus dedos é que soo os dez  anõezinhos.

A mulher compreendeu a causa, e foi para casa satisfeita consigo por saber como é que se faz  luzir o trabalho.


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Nota:
Teófilo Braga: "Contos Tradicionais do Povo Português" (1883)  

Um comentário:

  1. Este conto é um aborto. Traduz a complacência com a violência doméstica. Justifica-a na falta da preparação da mulher em ser "dona de casa". Premeia a atitude da mulher em ser subserviente, caminho que a leva a alcançar a felicidade conjugal. Santa paciência.

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